Um dos capítulos mais importantes e controversos da história da televisão brasileira foi a venda da Record, em novembro de 1989, para o bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus.

Edir Macedo

Mais de três décadas depois, algumas divergências em torno de valores, personagens e outros detalhes relativos aos fatos que cercaram a operação ainda permanecem.

Além da cobertura da imprensa à época dos acontecimentos, também é possível recorrer a três livros para conhecer as diferentes versões existentes sobre o episódio: “A Fantástica História de Silvio Santos” (2000), escrito por Arlindo Silva; “O Marechal da Vitória” (2005), de Tom Cardoso e Roberto Hockmann; e a segunda parte da biografia de Edir Macedo (“Nada a Perder 2”, de 2013), escrita pelo bispo em conjunto com o jornalista Douglas Tavolaro.

Auge e decadência

Pelé e Paulo Machado de Carvalho

Para entender todo o contexto, é necessário fazer uma retrospectiva da trajetória da Record, uma das emissoras mais importantes da televisão brasileira e que detém uma condição singular em termos históricos: é o mais antigo canal de TV do país ainda em atividade, tendo sido fundado em 27 de setembro de 1953 pelo advogado e empresário Paulo Machado de Carvalho, o mesmo que dá o nome ao Estádio do Pacaembu. Ele ficou conhecido como “Marechal da Vitória” por ter sido o chefe da delegação brasileira nos dois primeiros títulos da Copa do Mundo de futebol – conquistados em 1958, na Suécia, e em 1962, no Chile.

Nos primórdios do meio televisivo brasileiro, antes do lançamento da Record, havia somente a Tupi, que iniciou suas atividades em 1950; e a TV Paulista, que surgiu dois anos depois. Em um crescimento rápido e surpreendente, a Record atingiu expressivos níveis de audiência já nos anos 1960, quando programas como o Festival Nacional da Canção, O Fino da Bossa e Família Trapo recebiam enorme atenção do público.

Família Trapo

Porém, no final da mesma década, entrou em um ciclo negativo que perdurou por anos a fio: tudo começou com três grandes incêndios em apenas um ano e meio, que destruíram parte significativa dos equipamentos da emissora. Os prejuízos foram enormes e provocaram alto nível de endividamento e quedas progressivas nos índices de audiência.

A partir dos anos 1970, a Globo (criada em 1965) passou a ocupar a liderança, deixando as demais emissoras para trás. Nesse sentido, o caso da Record foi um dos mais dramáticos, pois a sua decadência era cada vez mais evidente. Em 1972, Silvio Santos, que ainda trabalhava na Globo sob contrato de exclusividade, adquiriu secretamente 50% da empresa, pois a compra foi efetuada por um testa-de-ferro, o fazendeiro Joaquim Cintra Gordinho, de Amparo (SP). Posteriormente, as ações foram registradas em nome de um então cunhado de Silvio, Mário Albino Vieira.

Dificuldades financeiras

Silvio Santos

A situação não seria bem digerida por Paulo Machado de Carvalho: em 1976, ele exigiu provas de que Silvio Santos era, de fato, sócio da emissora. O fundador resolveu fazer uma interpelação judicial depois de ter sido procurado por representantes de Silvio, que lhe fez uma proposta de reforma estatutária da Record. Somente após um acordo intermediado pelo então ministro das Comunicações, Euclydes Quandt de Oliveira, é que a relação tensa entre os empresários foi apaziguada.

Contudo, sem encontrar um caminho para uma necessária reinvenção, a Record continuou a acumular dificuldades financeiras e chegou moribunda à década de 1980. Mesmo assim, passou a ser alvo do interesse de grandes investidores nacionais e internacionais. O primeiro de que se teve notícia foi o Grupo Abril, que manifestou o desejo de investir na emissora em 1983 (tentaria novamente cinco anos depois). Porém, as tratativas não avançaram em nenhuma das ocasiões.

João Havelange

Em 1985, o grupo controlador do Jornal do Brasil formou um consórcio com o empresário e dirigente esportivo João Havelange (1916-2016) para adquirir as cotas da Record que pertenciam ao dono do SBT, mas mesmo com o pagamento de um sinal de US$ 1 milhão, o acerto não vingou.

[anuncio_5]

Suspeitava-se no mercado que a mexicana Televisa também estaria envolvida na transação, algo negado pela companhia, que admitiu apenas ter a intenção de vender suas produções para o canal.

De acordo com o livro “O Marechal da Vitória”, foi Silvio Santos quem teria resolvido desistir do negócio (avaliado em US$ 23 milhões), por não querer vender a emissora para uma empresa tão forte como a Televisa.

Outro interessado foi o italiano Silvio Berlusconi (foto abaixo), dono do Grupo Fininvest, que tem como uma de suas propriedades o conglomerado de mídia Mediaset. O empresário e político interessou-se em comprar a parte de Silvio Santos na Record.

Silvio Berlusconi

Para isso, associou-se a um grupo de empresários portugueses, que visitou o Brasil em 1987 junto ao então presidente de Portugal, Mário Soares, visando confirmar a possibilidade do negócio, que acabou não se concretizando.

Já em 1988, foi aventado na imprensa um suposto interesse do empresário norte-americano Donald Trump na emissora, jamais confirmado oficialmente. A lista de candidatos à aquisição ainda incluiu o grupo responsável pelo jornal O Dia, o ex-governador paulista Orestes Quércia e Edevaldo Alves da Silva, um dos fundadores da Rádio Capital.

[anuncio_6]

O bispo entra em cena

Edir Macedo

No entanto, quem acabou comprando a TV Record de São Paulo, juntamente com a Rádio Record AM e as afiliadas de Franca e São José do Rio Preto, já em novembro de 1989 (após complicadas negociações), foi o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, que foi representado por um grupo de empresários que, na versão do livro de Cardoso e Hockmann, eram liderados por Alberto Felipe Haddad Filho.

[anuncio_7]

Já na biografia de Edir Macedo, o protagonismo foi conferido a outro empresário, Odenir Laprovita Vieira, que era pastor e depois se tornaria político. À época, os representantes de Silvio Santos na gestão da emissora eram os executivos Guilherme Stoliar (seu sobrinho), Demerval Gonçalves e Luiz Sandoval.

A formalização da venda, no entanto, ocorreu apenas em abril de 1990. O canal encontrava-se em estado pré-falimentar, com uma dívida total avaliada à época em US$ 20 milhões. Pelo negócio, foi desembolsado um total de US$ 45 milhões, divididos em um sinal de US$ 20 milhões (a serem quitados até janeiro de 1990) e o restante em prestações com vencimentos ao longo de 20 meses, a serem pagos a Silvio Santos e à família Machado de Carvalho.

Entretanto, o pagamento da última parte do sinal (US$ 5 milhões) ficou pendente no início de 1990, o que provocou a suspensão momentânea do negócio, anunciada pelo então diretor-executivo da emissora, Paulo Machado de Carvalho Neto. A situação, no entanto, acabou sendo contornada após algumas rodadas de negociação.

Foi nesse período que o bispo Macedo admitiu ser o verdadeiro comprador. Em sua biografia, ele alega que chegou a se disfarçar de motorista de Laprovita Vieira para ingressar em uma reunião promovida em março de 1990. Ao revelar a verdadeira identidade, levou um cheque para acertar a pendência de US$ 5 milhões que travava a operação.

Em abril de 1990, US$ 25 milhões da compra já haviam sido quitados e um novo administrador foi nomeado para a Record: o advogado Aílton Trevisan, executivo do Grupo Gazeta Mercantil por 15 anos e condutor do processo de venda da revista IstoÉ. A presidência foi ocupada por Laprovita Vieira.

[anuncio_8]

Investimentos

Henrique Hargreaves

Os investimentos iniciais visando reerguer a emissora totalizavam US$ 6 milhões, priorizando a compra de novos equipamentos, a contratação de novos profissionais e mudanças profundas na programação, com ênfase em jornalismo e filmes. Não era descartada, no entanto, a utilização de parte da grade para mensagens religiosas em razão do vínculo do proprietário com a Igreja Universal do Reino de Deus.

Em julho do mesmo ano, a estratégia de retomada ganhou contornos mais definidos: sob o slogan “De volta para o futuro”, a Record se tornaria uma emissora de âmbito nacional a partir de novembro, por meio do uso de um canal de satélite da Embratel.

Por outro lado, o processo de transferência da concessão, via Ministério das Comunicações, demandaria muito mais tempo: iniciado em 1991, enfrentou obstáculos devido a irregularidades constatadas por fiscais da pasta.

Como o trâmite ainda se arrastava na Comissão de Comunicações da Câmara dos Deputados no segundo semestre de 1993 (para se ter uma ideia, a concessão ainda estava em nome de Silvio Santos), o pastor Laprovita Vieira, que tinha sido eleito deputado federal em 1990, solicitou ao então ministro-chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves (foto acima), que intercedesse em favor de Edir Macedo.

Deu certo: o processo foi desengavetado e chegou ao então presidente da República, Itamar Franco, que foi convencido por Hargreaves a conceder a autorização mediante acordo em que 30 deputados da bancada evangélica votassem a favor do Fundo Social de Emergência, que acabou aprovado no Congresso Nacional em 23 de fevereiro de 1994, mesma data em que foi assinada a transferência da concessão para o líder da Universal.

Compartilhar.
Avatar photo

Entusiasta da história da televisão brasileira, Jonas Gonçalves é jornalista e pesquisador, sendo colaborador do TV História desde a sua criação, em 2012. Ao longo de quase 20 anos de profissão, já foi repórter, editor e assessor de comunicação, além de colunista sobre diversos assuntos, entre os quais novelas e séries Leia todos os textos do autor Leia todos os textos do autor