Trilha da semana: uma viagem a Pontal d’Areia – a marcante trilha nacional de Mulheres de Areia
02/11/2017 às 11h00
Nasci em 1985 e passei boa parte da minha infância nos anos 90 curtindo som de vinil no toca-discos de casa, ou na frente da televisão. Nessa época, acompanhar as novelas das seis era quase sagrado. Esperava minha mãe na saída da escola e caminhávamos a passos largos para casa para não perder nenhuma cena.
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No início de 1993, me senti órfão dos personagens de Despedida de Solteiro quando a novela terminou no fim de janeiro. Lembro de caminhar no jardim que ficava na frente de casa logo depois do último capítulo e pensar que iria sentir falta daquelas histórias e o quanto era injusto a novela que eu amava terminar. Mal sabia eu que Mulheres de Areia, que estrearia na segunda, dia 1º de fevereiro, iria se tornar uma das minhas preferidas de todos os tempos.
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Desde muito pequeno, abri mão dos brinquedos pra ganhar discos de vinil. Ficava doente de ansiedade. No Natal de 1992, lembro que o Papai Noel me trouxe ‘Deus nos Acuda – Nacional’, o ‘Xou da Xuxa 7’ e o ‘Show Maravilha’. Era só alegria. Ouvia todos os dias. Quando viajava com minha família, meus pais já guardavam um dinheirinho porque, se a gente se deparasse com uma loja de discos no passeio, teriam que comprar algo pra mim. E foi exatamente assim, numa viagem que fizemos a Itanhaém, no litoral de São Paulo, em março de 1993, indo para a praia, que demos de cara com uma loja. Estavam na vitrine ‘Deus nos Acuda – Internacional’ e o nacional de Mulheres de Areia. Não resisti à Glória Pires na capa. Tenho essa versão do disco até hoje, velhinha, com a data da compra na capa: 14/03/1993.
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Uma curiosidade é que Itanhaém serviu de cenário para a primeira versão de Mulheres de Areia, novela de Ivani Ribeiro, produzida pela TV Tupi, em 1973, com Eva Wilma interpretando as gêmeas Ruth e Raquel. Após o fim das gravações, o ator Serafim Gonzalez, que fez as esculturas de areia que apareciam nas cenas de Tonho da Lua (Gianfrancesco Guarnieri / Marcos Frota) nas duas versões, esculpiu uma estátua de concreto igual às que fazia para a novela e deu de presente para a cidade. O monumento ganhou o nome de “Mulheres de Areia” e até hoje está sobre as pedras da Praia dos Sonhos, local que visitei naquela viagem com minha família.
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Quando voltamos para nossa casa no interior, a primeira coisa que fiz foi ouvir o disco. Trilha boa é aquela que tem a cara da novela e seus personagens, aquela que quando a gente ouve nos transporta diretamente pro universo proposto pela trama. ‘Mulheres de Areia – Nacional’ é uma viagem a Pontal d’ Areia, um mergulho na história da rivalidade das irmãs Ruth e Raquel (Glória Pires) pelo amor de um mesmo homem, o ricaço Marcos Assunção (Guilherme Fontes).
Ruth é professora e, depois de passar um tempo lecionando numa fazenda, volta a morar com os pais. Ela é doce, tem bom coração, é calma e ingênua, e é a filha preferida do pai, Floriano (Sebastião Vasconcelos), um humilde pescador. Ruth desperta a amizade de todos na cidade e a paixão de Tonho da Lua (Marcos Frota). Ele é um artista que passa os dias esculpindo mulheres de areia na praia e sofre de problemas mentais desde que presenciou o assassinato de seu pai. As cenas poéticas e sensíveis do personagem que sofria nas mãos do padrasto Donato (Paulo Goulart) e da gêmea má, Raquel, tinham o auxílio da bela canção ‘Fantasia Real’, composição especial de Danilo Caymmi e Dudu Falcão para a trilha, na voz de Byafra. Os versos “Quem não tem um mal que não se espanta?/ De onde vem essa loucura santa? E quem sabe explicar, dizer o que é normal/ Fantasia ou vida real?” em uma melodia doce, davam o tom exato para Tonho da Lua, que marcou para sempre a trajetória de Marcos Frota.
Para a candura de Ruth, foi escalada a doce canção ‘Figura’, composição de Djavan e Orlando Morais. A letra fala de um amor submisso e poético, e é cantada, apenas com acompanhamento de violão, por Orlando, marido de Glória Pires desde 1987. ‘Figura’ integrou seu terceiro disco de carreira, ‘Impar’, de 1993.
Na sua viagem de volta para Pontal, Ruth conhece Marcos e o amor acontece como que à primeira vista. Ele é filho de Virgílio Assunção (Raul Cortez), empresário que é dono do hotel e vice-prefeito da cidade, que não vê com bons olhos o envolvimento do filho, a quem sempre dominou, com a filha de um simples pescador.
Ruth e Marcos se envolvem e o namoro logo chama a atenção de Raquel. Ela é completamente apaixonada pelo mau-caráter Wanderley (Paulo Betti), e os dois são ambiciosos e estão dispostos a subir na vida a qualquer preço. Raquel arma e se encontra várias vezes com Marcos se passando pela irmã. Quando a farsa é revelada, o empresário já está cego de paixão pela vilã, que usa todo seu charme para seduzi-lo. Os dois se casam e Raquel pode desfrutar de todo conforto de uma vida rica, enquanto se encontra às escondidas com o amante Wanderley.
Para a paixão cega de Marcos por Raquel, a canção que dava o tom era ‘Encontro das Águas’, linda composição de Jorge Vercilo, na voz de Maurício Mattar, convidado pra gravar a canção antes mesmo de lançar seu primeiro disco em 1994. Ele se consagrou como ator nos anos 80 atuando em filmes e novelas, mas, desde a adolescência, tinha inclinação para a música. Os versos “a paixão veio assim, afluente sem fim, rio que não deságua” acompanhavam Marcos que, aos poucos, descobria o erro que havia cometido em se casar com a gêmea errada.
Para a relação despudorada e então proibida de Raquel e Wanderley, o tema foi ‘Ai ai ai ai ai’, composição de Vitor Martins e Ivan Lins. A música tem uma mistura de rock com ritmo caribenho e integrou o disco ‘Awa Yiô’, do Ivan Lins, lançado por aqui em 1993 pela gravadora Velas, depois de ganhar o mercado no exterior. Um tempo depois, a canção foi tema da relação fogosa de Vera (Isadora Ribeiro) e Breno (Daniel Dantas), prefeito de Pontal d’Areia, que perde o cargo após várias armações de seu cunhado Virgílio. Aliás, essa trama originalmente compôs a novela O Espantalho, também dos anos 70, que Ivani Ribeiro reaproveitou em seu remake de Mulheres de Areia nos anos 90, uma época em que as novelas pediam mais tramas e personagens.
Outra composição de Ivan Lins e Vitor Martins, aparece na trilha, mas dessa vez, na voz de Simone, como tema de Arlete (Thaís de Campos), amiga de Ruth e sobrinha da família Assunção. ‘Desafios’ integra o 17º álbum da carreira da cantora intitulado ‘Raio de Luz’, que possui ainda o tema de abertura de De Corpo e Alma (1992) e a versão de Simone para ‘Será’, do Legião Urbana, da trilha de Perigosas Peruas (1992).
Raquel se torna a pedra no sapato de Virgílio e os dois rivalizam em cenas inesquecíveis. Outro dissabor do empresário é a própria filha, a rebelde Malu (Vivianne Pasmanter), que bate de frente com o autoritarismo do pai. Como tema dela, a escolha não poderia ser melhor: uma releitura de um clássico da obra solo de Rita Lee, dos tempos da banda Tutti-Frutti, ‘Ovelha Negra’. A música fez parte do disco ‘Fruto Proibido’, de 1975, e na trilha de Mulheres de Areia aparece mais rock’n roll com a banda Os Fantasmas. Malu se vestia sempre com roupas pretas, andava com uma turma barra pesada e aprontava situações como encher uma festa para a alta sociedade em sua casa com mendigos famintos, e tirar a roupa num strip-tease numa boate. Estas cenas eram acompanhadas por um rock com letra em inglês interpretado por uma banda brasileira. O Easy Rider entrou em 1993 na trilha de Olho no Olho com uma versão para ‘How you gonna see me now’, do Alice Cooper, e em Mulheres de Areia com ‘Dirty Game’, composição de Rogério Vaz, Auder Júnior e Marcelo Alvares.
Malu se envolve ao longo da trama numa relação tempestuosa com o peão Alaor (Humberto Martins), por quem acaba se apaixonando. No início, Alaor tem um amor platônico por Ruth que conheceu na época em que ela dava aula na fazenda onde ele trabalha. Para compor a brejeirice do personagem, um tema sertanejo, ritmo que estava em alta no Brasil naquele início dos anos 90. Chitãozinho e Xororó vendiam milhões de discos assim como Leandro e Leonardo, Zezé di Camargo e Luciano, João Paulo e Daniel e Chrystian e Ralf. Foram 900 mil cópias vendidas do disco ‘Tudo por amor’, com a participação do Bee Gees na música ‘Words’, que fez Chitãozinho e Xororó entrarem na lista Hot Latin Songs da Billboard. ‘Pensando em minha amada’ é a segunda canção da trilha de Mulheres de Areia e foi composta por Carlos Colla e Serginho Sá.
Quem botava panos quentes nas brigas de Virgílio com os filhos e a nora era sua esposa Clarita (Susana Vieira). Depois de anos de uma posição submissa frente ao marido, a personagem criava coragem para se separar e retomar um grande amor do passado ao lado de Alemão (Jonas Bloch), homem sensível, dono de um bar, o oposto de Virgílio. As cenas de Clarita tinham a companhia luxuosa da voz de Gal Costa, interpretando ‘Caminhos Cruzados’, de Tom Jobim e Newton Mendonça. A suave interpretação está presente no disco ‘Gal’, 23º de sua carreira, lançado em abril de 1992, com repertório extraído de seu espetáculo de sucesso, ‘Plural’.
Outro tema romântico presente na trilha, interpretado por uma grande cantora, é ‘Toque de Emoção’. Ela abre o lado B e foi tema de Andréia (Karina Perez), ex-namorada de Marcos que faz tudo para tê-lo de volta, chegando a se envolver com Wanderley. A canção aparece na voz de Joanna, que se tornou muito popular interpretando canções românticas e açucaradas perfeitas pra explodir nas rádios. Toque de emoção’ fala de um amor frustrado, foi composta pelos mestres Mauro Motta e Arnaldo Saccomani, donos de inúmeras baladas inesquecíveis, e faz parte do 11º álbum da carreira de Joanna, que vendeu mais de 150 mil cópias.
Virgílio se fazia de empresário respeitado no Rio de Janeiro, enquanto em Pontal, assediava a jovem Tônia (Andréa Beltrão), dona de uma loja e filha de Zé Pedro (Carlos Zara), um dos maiores aliados do vilão nas armações contra o prefeito Breno. Quem também apoiava Virgílio era Joel (Evandro Mesquita), namorado de Tônia, que tinha vergonha dela por causa de seus modos grosseiros. A relação difícil dos dois e o temperamento explosivo de Tônia têm como tema o sucesso ‘Gita’, de Raul Seixas, gravado em 1974, composto em parceria com Paulo Coelho. É um rock com letra baseada em um texto sagrado do hinduísmo que representa um diálogo entre o guerreiro Arjuna e Krishina, que explica sua natureza. Nada a ver com tema romântico para um casal de novela, mas que deu um charme a mais para a trilha de Mulheres de Areia.
No universo singelo e praiano da novela, ainda constam o tema de locação ‘Paraíso’, com interpretação da atriz e cantora Marianna Leporace, outra criação de Danilo Caymmi e Dudu Falcão para a novela, perfeita para a calmaria de Pontal d’Areia; e o tema da aldeia de pescadores, ‘A vida é festa’, com a Banda Beijo, que nesse período tinha o cantor baiano Netinho como vocalista. A música, que também foi usada nas primeiras chamadas da novela, divulgava a axé music que estava bombando no Brasil inteiro em 1993 com Araketu, Daniela Mercury, Asa de Águia, Banda Mel e outros, e faz parte do disco da Banda Beijo de 1992 que tem um nome sugestivo: ‘Axé Music: Aconteceu’.
Para finalizar a coluna de hoje, a música mais marcante da trilha de Mulheres de Areia, o tema de abertura ‘Sexy Yemanjá’, com Pepeu Gomes. Ele começou muito bem os anos 90, reencontrando o amigo dos tempos de Novos Baianos, Moraes Moreira, com quem gravou dois discos, um de estúdio e um ao vivo no Japão. A ótima fase garantiu aos dois uma apresentação na segunda edição do Rock In Rio. Em 1993, de volta a carreira solo, Pepeu Gomes lançou um novo álbum que fez sucesso por causa da novela. A animada ‘Sexy Yemanjá’ lembrava uma lambada sensual, foi composta por Pepeu e Tavinho Paes, e embalava a abertura ousada com a nudez da atriz Mônica Carvalho, que surgia em dose dupla no meio da água e da areia. Um marco da TV dos anos 90!
Completam o disco, duas instrumentais, descartáveis por sinal, que bebiam na fonte do new age: ‘Down’, com T Set Squad, e ‘Voyager’, com Franco Perini.
A trilha sonora nacional de Mulheres de Areia foi tão impactante e agradou tanto a autora da novela que não houve muito espaço para a trilha internacional, que tocou dentro de poucos capítulos e ficou restrita aos créditos de encerramento. Em 1993, os temas de abertura deixaram de tocar no final dos capítulos e abriram espaço para as outras músicas da trilha. Foi assim com Mulheres de Areia, Renascer e O Mapa da Mina. Hoje essa tática é usada esporadicamente nas novelas.
Confira outras curiosidades desta trilha em “A história do álbum: Mulheres de Areia – Nacional”, no canal Vinilteca.