A televisão está burra. Para o jornalista e cineasta Nelson Hoineff, esse é o motivo de uma de suas maiores criações, o Documento Especial, não voltar ao ar. Dono de um formato único, mas criticado, o programa foi exibido pelas emissoras Manchete, SBT e Band entre 1989 e 1998 e até hoje gera repercussão entre o público: vários episódios postados no YouTube já passaram das 100 mil visualizações.

Em entrevista exclusiva ao TV História, o diretor contou detalhes dos bastidores do programa. Funcionário da Rede Manchete desde antes da entrada do canal no ar, em 1983, Hoineff estava cansado dos freios impostos pela programação elitista que predominava na emissora. O diretor tinha a sensação de que as mazelas urbanas não tinham vez nos noticiários do canal de Adolpho Bloch.

Irritado, colocou no lado direito de uma folha de papel tudo o que não podia colocar no ar na emissora. Com aqueles elementos, resolveu criar um programa totalmente diferente do que a Manchete havia feito até então.

Forjado nas plateias dos cinemas cariocas, Hoineff buscava conceitos do Cinema Novo para mostrar o Brasil corrupto, endividado e disfuncional do final da década de 1980. O ator e locutor Roberto Maya, apresentador do Documento Especial durante toda sua existência, pontuava as reportagens com um tipo que variava entre a ironia e a seriedade, ao estilo do programa.

Quando o programa se mudou para o SBT, em 1992, Hoineff conviveu logo na estreia com algo que não tinha experimentado na Manchete: censura. Marcado para ser exibido nos estertores do governo Collor, o episódio ‘O país da impunidade’ não foi ao ar na data marcada, 03 de setembro de 1992.

Apesar da relação complicada com a emissora – que resultaria no cancelamento do programa em janeiro de 1995, o diretor considera que o período no SBT rendeu frutos: em 1994, o episódio ‘Vidas Secas’ foi premiado com o Prince Rainier III no Festival de Televisão de Montecarlo, uma das principais premiações televisivas do mundo.

Após a saída do SBT, o programa passou entre 1997 e 1998 pela Band, onde não chegou a completar um ano na grade de programação. Fora da TV, Hoineff passou a se dedicar mais a carreira de cineasta por meio de sua produtora, a Comalt – Comunicação Alternativa, realizando documentários como Alô, Alô, Terezinha! (2009), Caro Francis (2010) e Cauby: Começaria Tudo Outra Vez (2015). Em abril, Hoineff lança no circuito o documentário Eu, Pecador, contando a vida do cantor Agnaldo Timóteo.

Confira os principais trechos da entrevista de Nelson Hoineff ao TV História:

TV História – Como surgiu a ideia de criar o Documento Especial?

Nelson Hoineff – Eu era editor-chefe do Jornal da Manchete – 2ª edição nos anos 1980, e tive problemas com o diretor de jornalismo da Manchete, Mauro Costa. Após uma briga, eu pedi demissão ao Jaquito [Pedro Jack Kapeller, diretor de operações da emissora na época], e eu disse: “Jaquito, é o seguinte: Mauro e eu brigamos e um de nós dois tem que sair, e quem tem que sair sou eu, pois ele é o diretor de jornalismo“. Jaquito não aceitou minha saída, e foi criado o Departamento de Novos Projetos, que eu cuidava, avaliando e guiando projetos. Eu quis criar um projeto que era a antítese da Manchete. Peguei uma folha de papel e, do lado direito, coloquei tudo que me incomodava na Manchete e, do lado esquerdo, o contrário disso. Exemplo: me incomodava não poder falar sobre gente feia, e do lado esquerdo escrevia: farei um programa que vai falar sobre gente feia. Entreguei o projeto, o Jaquito me deu um mês e foi feito um piloto.

TV História – E qual foi a reação dos diretores ao ver o piloto?

Eu sabia que o programa seria forte demais para eles, então fiz dois pilotos: um falso e um verdadeiro. Na hora de exibir para [a aprovação deles], exibi o falso, que era um programa leve. O programa foi aprovado e foi ai que coloquei o piloto verdadeiro para eles assistirem. O Jaquito disse uma frase que me marcou: “Isso é a melhor coisa que já fizeram nessa emissora“. E assim nasceu o Documento Especial.

TV História – A Manchete dava total liberdade na criação das reportagens?

Eu tenho trinta e poucos anos de televisão e eu nunca recebi, na minha vida, a liberdade que a Manchete me deva. Desde o início da minha vida profissional, eu sempre tentei expandir meus próprios limites. Nunca isso aconteceu de uma forma tão ampla [como] na Rede Manchete. Nos meus 10 anos na emissora, acho que tive dois programas que eles pediram para não exibir.

TV História – Você acha que o Documento Especial influenciou outros programas a seguir esse estilo?

Totalmente. Não apenas programas jornalísticos. Tivemos um programa sobre prostituição masculina [que teve] foi uma grande repercussão. Tempos depois, a Globo fez uma novela que falava o tempo todo sobre prostituição masculina. Não era costume colocar na tela [elementos como] sexo, corrupção, violência. Depois do Documento Especial, tudo isso passou [a ser exibido] na TV.

TV História – Muitas vezes o programa era tachado de sensacionalista. Como você recebia essas críticas?

Eu recebia com ódio. Eu comecei a escrever na Folha de S. Paulo por causa disso. Eu pedi para escrever um artigo sobre televisão, rebatendo as críticas ao meu programa. O meu ódio que me fez passar a escrever sobre televisão. O Documento Especial começou a ganhar prêmios pelo mundo, entre eles o Príncipe Rainier no Monte Carlo TV Festival. A partir dali, aqueles que chamavam o programa de sensacionalista, passaram a chamar de pós-moderno. Tudo mudou quando ganhou prêmios internacionais.

TV História – Qual foi a reportagem mais marcante do Documento Especial da época da Manchete?

São vários, um deles foi a sobre a prostituição masculina. E também sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, foi a primeira vez que [se falou] sobre a igreja, colocando imagens dos bispos carregando sacos de dinheiro nos cultos.

TV História – Como foi a saída da Manchete para o SBT em 1992?

O Luciano Callegari [superintendente operacional do SBT entre 1981 e 1997] me ligou, dizendo que o Silvio Santos queria almoçar comigo e parabenizar pela boa audiência do programa. Antes de ir para o almoço, eu avisei o Jaquito sobre o encontro, [mas acho] que ele não acreditou. No almoço, ele perguntou quanto eu ganhava na Manchete, eu disse, e ele me propôs dez vezes mais. Acabei fazendo mais exigências ao Silvio, pedindo que toda a minha equipe ganhasse mais, montando uma estrutura no Rio, e ele concordou com tudo. Foi aí que o programa migrou da Manchete ao SBT.

TV História – Silvio sempre mexeu na programação e no jornalismo. Você teve algum receio que essas decisões afetassem o ‘Documento’?

Não tive receio, naquela época o jornalismo do SBT era muito diversificado. Naquele momento, o jornalismo do SBT tinha desde o popularesco do Aqui Agora ao jornalismo de qualidade do Boris. Tínhamos o Aqui Agora, o TJ Brasil com Boris Casoy, um âncora de prestígio, o Jornal do SBT e o Jô Soares Onze e Meia. O Silvio estava investindo em jornalismo naquela época.

TV História – Um programa que teve repercussão foi ‘A cultura do ódio’, sobre o neonazismo no Brasil. A equipe foi acusada de fazer apologia ao nazismo. Como você lidou com a situação?

O programa teve uma reação imediata, os entrevistados foram autuados e nós também. Aí aconteceu uma reação muito bacana. No mesmo dia, o Jô Soares criticou a nossa autuação [em seu programa] e o Boris Casoy também [no TJ Brasil]. A repercussão chegou até o ministro da justiça Célio Borja. Ele ligou para o delegado que me autuou, e pediu para cancelar todo o processo [contra] mim e a equipe.

TV História – Após a sua saída do SBT, você recebeu convites de outras emissoras?

Recebi [propostas] de três emissoras: Globo, Band e CNT. Almocei com o Alberico de Souza Cruz [diretor de jornalismo e esportes da Globo entre 1990 e 1995], e ele me convidou para dirigir o Fantástico, mas não aceitei. Me encontrei com José Carlos Martinez [ex-deputado federal e proprietário da CNT, morto em 2003], e até hoje não entendi o que ele queria comigo. E acabei aceitando o convite de Rubens Furtado, diretor da Band, pra trazer o Documento Especial de volta.

TV História – Como foi a passagem do programa na Band?

Não foi uma época muito boa. Nós tivemos um contrato completamente diferente. Tanto na Manchete como no SBT eu fazia um programa como se fosse da própria emissora. Na Band, era um contrato com a minha produtora. Ela me pagava um valor por mês para que eu entregasse quatro programas. Às vezes, eu não tinha grana para fazer um programa do modo que tinha feito na Manchete ou no SBT. Por mais que eu tivesse uma verba boa, não era a mesma coisa que ter uma verba direta das emissoras. O Documento Especial deixou de ter repercussão. Após dois anos, eles falaram francamente comigo [que haviam comprado] um enlatado que custava bem menos que o meu programa, e não renovaram o contrato.

TV História – Um programa nos mesmos moldes do Documento teria espaço na televisão de hoje?

Eu não sei se teria por dois motivos. O primeiro seria o custo do programa e o segundo seria a inteligência do programa. ‘Documento’ era um programa muito inteligente e a televisão está cada dia mais burra. O nível de certos programas é assustador. Gosto de procurar e assistir coisas novas e fica espantado com o nível de tudo que vejo. E eu exijo muita liberdade e hoje essa liberdade não é mais dada a ninguém. Mas até hoje batalho para o programa voltar ao ar.


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Fábio Marckezini é jornalista e apaixonado por televisão desde criança. Mantém o canal Arquivo Marckezini, no YouTube, em prol da preservação da memória do veículo. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor