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A estreia de Lícia Manzo no horário nobre da Globo, há exatamente um ano, em 8 de novembro de 2021, foi complicada. Um Lugar ao Sol não teve um caminho fácil. Foram vários empecilhos que atrapalharam seu primeiro folhetim na faixa mais importante da emissora, após dois bem-sucedidos trabalhos às 18h com A Vida da Gente e Sete Vidas.
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Foi uma novela impecável? Não. Mas mesmo contra todos os obstáculos e dificuldades, a autora conseguiu entregar para o público uma ótima história, repleta de cenas densas, boas viradas e conflitos bem construídos, cujo ciclo se fechou no dia 26 de março desse ano.
Infelizmente, apesar disso, a trama ficou com um título nada honroso: pior média de audiência da história do principal horário de novelas da Globo.
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Saga
A história contou a saga de Christian (Cauã Reymond) que tomou o lugar de seu irmão gêmeo, Renato, porque nunca aceitou o destino difícil que a vida lhe impôs. Inicialmente íntegro e repleto de princípios, o protagonista foi deixando seu caráter de lado pela ambição desmedida e acabou se transformando em um sujeito muito pior que o problemático e instável irmão que acabou assassinado quando tentou negociar a dívida do sujeito que era sua cópia e tinha acabado de conhecer. Os irmãos conviveram por apenas algumas horas. Não foi uma mera novela sobre gêmeos. Foi uma novela sobre um homem que conquistou seu lugar ao sol através de atos condenáveis e que foram se agravando a cada momento.
A coragem em exibir uma trama onde o protagonista se transformava no vilão de sua própria vida merece muitos elogios. Lícia arriscou ao fazer com que o público virasse o julgador da vida de Christian. O telespectador era a testemunha, o promotor e o juiz. Tanto que foi impossível torcer por ele. Na verdade, a expectativa sempre foi em cima da derrocada do personagem.
E que folhetim desperta tal sentimento em torno do protagonista e não do vilão? O fato é que as produções da escritora passam longe do maniqueísmo de bonzinho versus malvado. Todos têm seus defeitos e suas virtudes. Todos se contradizem o tempo inteiro apontando o dedo para o outro sem olhar para si. Algo tão real que fica difícil abraçar algum personagem por completo. Muitos consideram isso um defeito, mas é uma qualidade que Lícia sempre teve.
Mau humor
Christian não era um vilão porque não armava planos maquiavélicos contra os outros, mas acabou destruindo sua própria vida por dinheiro. O anti-herói, mesmo em meio a tantas dificuldades, ainda conseguia sorrir quando era pobre. Mas desde que usurpou a vida do irmão nunca mais esboçou um sorriso sequer. Gargalhada muito menos. Passou quase o tempo todo sério e claramente infeliz. Dá para selecionar nos dedos de uma mão as cenas em que Cauã Reymond apareceu mostrando os dentes.
A construção e a destruição do personagem foi brilhantemente realizada por Lícia e o ator conseguiu defendê-lo com talento. Cauã conseguiu até o que parecia impossível: tirar o seu carisma para o Christian. Isso porque o lado carismático do ator ficou todo para o Renato, que era um canalha adorável. Foram poucas cenas, mas marcantes. O gêmeo playboy era totalmente diferente do dito ‘corretinho’, mesmo sem o maniqueísmo do gêmeo bom e gêmeo mau. A escalação foi precisa.
Aliás, que elenco admirável foi escolhido, incluindo vários nomes afastados das novelas há muitos anos. Denise Fraga emocionou em um perfil que passava longe da comicidade. Julia era uma alcoólatra que fracassava na carreira como cantora e nunca se movimentava para trabalhar em qualquer outra coisa. Foram muitas cenas lindamente interpretadas pela atriz e sua parceria com Gabriel Leone, intérprete do filho Felipe, funcionava. Regina Braga é outro nome raro na telinha que engrandeceu o time. Ana Virgínia era a psicóloga/psiquiatra que atendia vários personagens e dava ótimos conselhos, mas nunca os seguia em sua vida com a filha Julia.
A dona da novela
E o que comentar sobre Andréa Beltrão? Foram vinte anos afastada das novelas e voltou em grande estilo. Rebeca era quase uma Helena de Manoel Carlos. Recheada de bons conflitos envolvendo a questão da idade e como o mercado de trabalho menospreza mulher com mais de 50 anos, a atriz virou um dos maiores acertos da trama. O público se apaixonou pela personagem e tomou suas dores em todas as discussões com Cecília (Fernanda Marques, grata revelação), a filha insuportável da ex-modelo. Ana Baird também brilhou na pele de Nicole, personagem que sempre se menosprezava através de piadas ofensivas. Sua química com Otávio Muller, o simpático Paco, era visível. Por sinal, que delicada trama do personagem com Mel (Samantha Quadrado), filha que tinha de Síndrome de Down. Todas as cenas emocionavam.
E entre os melhores personagens do enredo estava Bárbara. Alinne Moraes viveu um de seus melhores momentos na televisão. Mimada, egoísta e com tendências suicidas, a filha da caçula de Santiago (ótimo José de Abreu na pele de um tipo incomum em sua carreira) era uma dependente emocional. A única pessoa que realmente amava era a irmã Nicole, que cuidava dela desde criança enquanto a mãe de ambas sofria de bipolaridade. Nunca teve a atenção do pai e viveu um relacionamento tóxico com Renato. Tudo piorou quando Christian ficou no lugar do irmão e passou a tratá-la com completo desprezo. A atriz engrandecia qualquer cena. Dava gosto de ver.
Já Ana Beatriz Nogueira repetiu a bem-sucedida parceria com Lícia, vista em A Vida da Gente. Elenice começou como uma perua interesseira e divertia em vários momentos. Depois foi proferindo várias frases preconceituosas e elitistas até, na reta final, apresentar um processo de desenvolvimento do Mal de Alzheimer. A intérprete protagonizou sequências angustiantes e com um nível de realismo que impressionou.
Marieta Severo foi mais um nome que enchia a tela. Noca representou a figura da avó sempre presente nas histórias da autora. Mas não era um poço de virtudes, vide o hilário golpe que deu em um senhor (Napoleão – Rui Resende) que estava à beira da morte. Marieta ainda fez uma boa dupla com Andreia Horta, que honrou o destaque de Lara.
Consciência de Christian
E o que comentar sobre Juan Paiva? Ravi arrebatou o público e virou o queridinho dos telespectadores. O ator conseguiu imprimir sutileza em sua interpretação, pois o personagem era neuroatípico por conta de complicações na época do parto. Ravi ainda representava uma espécie de consciência de Christian.
O elenco em sua totalidade merece elogios, incluindo as participações que enriqueceram a história. Indira Nascimento emocionou com sua Janine; Maju Lima encantou com sua pequena Marie; Yara de Novaes despertou ódio e empatia com a sua Inácia; Lara Tremourox se destacou na pele da controversa Joy; Débora Duarte esbanjou delicadeza com Eva, que sofria de Alzheimer; Isio Ghelman divertiu com o picareta Alípio; Betty Gofman finalmente ganhou um papel sem qualquer caricatura, a professora Maria Antônia; Antônio Pitanga esteve muito bem como o cara de pau Gesiel; além de outras boas aparições, vide Ana Kutner (a médica Beatriz), Tonico Pereira (professor Romero), Inez Viana (Avany), Fernanda Nobre (Maria Fernanda) e as duas melhores participações da reta final: Reginaldo Faria (Aníbal) e Eduardo Moscovis (Edgar), que formaram lindos casais com Marieta e Andréa, respectivamente.
Já no time fixo ainda é necessário aplaudir Renata Gaspar, que protagonizou impactantes cenas na pele de Sthepany, mulher que era espancada e foi morta pelo marido, Roney, o também talentoso Danilo Grangheia. Samantha Quadrado brilhou com sua doce Mel. Fernanda de Freitas viveu seu melhor papel na tevê com a personal Érica. E foi ótimo ver Daniel Dantas longe dos perfis bonzinhos e passivos que o marcaram na carreira. Túlio sobressaiu ao longo dos meses.
Obstáculos
A verdade é que a saga de Lícia Manzo com a trama merecia até um documentário. A autora foi escolhida para escrever um novo projeto após a primorosa Sete Vidas, exibida em 2015, e criou Jogo da Memória, uma novela já totalmente escrita. A história acabou engavetada. Silvio de Abreu, então gestor da teledramaturgia, pediu para a escritora elaborar um novo roteiro e foi criada a atual produção ainda com o título de Em Seu Lugar. Foi quando Lícia ouviu que iria para o horário nobre. Quando sua estreia parecia certa, houve um adiamento para a entrada relâmpago de Manuela Dias com Amor de Mãe.
Mas depois seria Lícia. As gravações finalmente foram iniciadas com Alinne Moraes e Cauã Reymond no exterior. Até que veio a pandemia. Os trabalhos foram interrompidos e retomados meses depois, repletos de protocolos sanitários. Para fechar o conjunto de obstáculos, foi reduzida de 150 capítulos para 107, que posteriormente acabaram desmembrados em 119 porque a Globo precisou adiar a estreia de Pantanal – a edição destruiu várias cenas e ganchos. Por precaução, a obra acabou finalizada antes de ser colocada no ar sem ter a chance de ser ajustada de acordo com a resposta da audiência.
No entanto, a novela também teve problemas evidentes. Uns por erro de Lícia e outros por conta das limitações das gravações e cortes de capítulos. A autora quis fugir do clichê da trama clássica dos gêmeos, mas é incontestável que Renato fez falta. O bom e velho clichê do gêmeo voltando para desmascarar o que tomou seu lugar provocaria uma catarse e tanto para o enredo. Lícia também errou quando deixou apenas para a última semana a descoberta da verdadeira identidade de Christian. Deixou tudo corrido e não aproveitou todos os desdobramentos que a situação geraria.
Excesso de repetições
Houve um excesso de repetições ao longo da novela que seria facilmente solucionado através da descoberta aos poucos da farsa do protagonista. Santiago, por exemplo, poderia ter desvendado o crime do genro bem antes. Depois dele seria interessante ver Rebeca descobrindo tudo e posteriormente até Lara (Andreia Horta). Deixaria apenas Bárbara (Alinne Moraes) para o grande final. Mas a autora preferiu expor o protagonista apenas para Túlio (Daniel Dantas), Ruth (Pathy Dejesus), Joy (Lara Tremouroux) e, na reta final, Stephany (Renata Gaspar), quatro perfis que acabaram morrendo e não pelas mãos de Christian.
Por sinal, o maior equívoco do roteiro foi a transformação de Stephany em chantagista. É verdade que a personagem nunca teve um caráter ilibado, mas ficou forçado vê-la resolvendo ameaçar Christian, justamente depois que ele emprestou seu apartamento para a irmã de Érica fugir das agressões do marido. O desfecho foi corajoso e impactante. Nunca uma trama de violência doméstica na teledramaturgia terminou com a mulher sendo assassinada. Serviu para expor como as leis frágeis do país funcionam. Ou melhor, não funcionam.
Mas não havia a necessidade de inseri-la no conflito de Renato desta forma. Acabou, mesmo que involuntariamente, provocando outra reação em parte da audiência com sua morte já que foi interesseira. Abriu brecha para um clima de já foi tarde. Algo que nem combinou com o estilo de Lícia. Vale até citar outro caso que destoou da narrativa tão boa da autora: Cecília sofreu um estupro, teve uma gravidez tubária, ficou internada, mas ficou nisso. Não houve qualquer levantamento sobre o abuso que a personagem sofreu. Ninguém nem soube. Não deu para entender o intuito da cena, pareceu gratuito.
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Ausência de cenas importantes
Outro problema que a novela não conseguiu disfarçar foi a ausência de cenas importantes. E neste caso a culpa não é da autora e, sim, da redução dos capítulos e limitações em virtude dos protocolos sanitários. A queda do helicóptero de Túlio não foi exibida e era simplesmente o desfecho do maior canalha da história. A reação de Rebeca com o acidente também foi ignorada e já mostraram a personagem no velório. Ninguém viu o que Bárbara disse para o juiz quando devolveu a criança que tinha acabado de adotar.
Não foi possível ver a terceira tentativa de suicídio de Bárbara porque a filha de Santiago apareceu no hospital sedada e com Nicole contando sobre o ocorrido. Enfim, foram muitos momentos que precisavam ser mostrados ao telespectador e sequer foram gravados. Fizeram falta. Ainda ficou uma impressão de cenas bruscamente cortadas e remendadas. A direção de Maurício Farias e equipe foi brilhante e a parceria com Lícia merece ser repetida, mas nem ele teve como camuflar certas situações incômodas. Fruto de uma novela feita apenas para tapar o buraco da grade até a estreia de Pantanal, tratada como a galinha dos ovos de ouro pela Globo.
A última semana foi repleta de acontecimentos e cenas emocionantes. A descoberta de Felipe a respeito de um tumor no intestino pareceu gratuito, mas a complicada situação serviu para constatar o amadurecimento de Júlia, que finalmente conseguiu se portar como mãe e não filha. Denise Fraga e Gabriel Leone brilharam. Cauã Reymond e Ana Beatriz Nogueira deram um show no esperado momento que Renato revelou se chamar Christian dos Santos para Elenice, o que expôs seu sadismo, afinal, só contou a verdade porque a mãe estava com Alzheimer.
Otávio Muller emocionou quando Paco fez sua primeira apresentação teatral contando sua vida com a filha. A declaração a respeito da Síndrome de Down foi uma aula de sensibilidade da autora. E a libertação de Rebeca foi catártica. A personagem aceitou seus 50 anos e foi ser feliz, o que resultou no retorno para o mercado de trabalho. A modelo sempre teve como principal característica a quebra da quarta parede. Em todas as situações que protagonizava dava uma olhada discreta para a câmera, como se estivesse dividindo tudo com o telespectador. Não foi diferente no fechamento de seu arco dramático.
Gancho de tirar o fôlego
O penúltimo capítulo marcou pela linda cerimônia da união de Ilana e Gabriela, o único par que se casou no final, o que não deixou de ser bem significativo. E o gancho foi de tirar o fôlego com o grave acidente sofrido por Christian e Ravi. A sequência foi muito parecida com a cena mais emblemática de A Vida da Gente: o acidente de carro sofrido por Ana (Fernanda Vasconsellos), Manu (Marjorie Estiano) e Julia. Christian acabou atingido por um caminhão enquanto discutia com Ravi e os dois ficaram bem feridos. Mas conscientes. Até que uma caminhonete vermelha atingiu a dupla em cheio.
Brilhante trabalho da equipe de Maurício Farias. Uma pena que tudo tenha ficado para o último capítulo. O erro mais imperdoável de Lícia. A autora desperdiçou uma gama de bons desdobramentos que a derrocada do protagonista geraria no enredo. Difícil acreditar que tenha sido o intuito da escritora adiar ao máximo a exposição da verdadeira identidade de Renato.
A impressão que ficou é que o encurtamento da novela a deixou sem muita saída. Ainda assim, valeria ignorar várias situações que andaram em círculos para priorizar o principal ‘plot’ do roteiro. Nada pior para o público do que ver um final de trama corrido e sem aprofundamentos.
Decepção no último capítulo
O reflexo maior foi no último capítulo. Seria até melhor fingir que a novela acabou no penúltimo. Uma decepção em todos os sentidos. A aguardada catarse da revelação da identidade de Christian simplesmente nem foi gravada. O público só viu a reação de Lara porque o protagonista revelou a verdade no hospital. Ainda assim, a cena frustrou pela rapidez e falta de impacto. Nem a atuação de Andreia e Cauã melhorou o contexto. Como assim ignorar a reação de Bárbara sabendo que estava casada com um farsante? E Rebeca? Santiago? Nicole? Noca? Nada foi mostrado.
Simplesmente surgiu uma cena com todos comentando sobre o crime de Christian como se já soubessem há alguns dias. Não fez sentido adiar ao máximo a maior explosão da novela para ignorá-la. Houve uma perda de tempo com a sequência do julgamento e momentos do irmão de Renato na prisão que nada acrescentou ao final. Aliás, ele nem abriu a boca em seu próprio julgamento.
Para culminar, o desfecho de vários outros personagens foi jogado de qualquer forma. Elenice e Teodoro morreram de Covid-19. Qual a necessidade de um desfecho assim? E ainda por cima narrado e não exibido… Aliás, qual a razão de inserir a pandemia no final se o enredo era contemporâneo e ignorou a doença? Bárbara terminar do jeito que começou foi realista, mas nem sequer exibir o seu tal novo namorado pareceu desleixo. E Noca passando pano para todas as atitudes de Christian? Não foi condizente com o que a personagem sentia por ele. O show de Aníbal tocando violão foi outra cena que nem precisava ser gravada. Tantas importantes foram eliminadas, enquanto outras desinteressantes ganharam tempo de tela.
A única cena realmente boa do final foi a última com Ravi indo se encontrar com Christian na praia – uma lástima que não teve o momento do rapaz acordando do coma. Um acerto de contas emocionante e protagonizado com talento por Juan Paiva e Cauã Reymond. A chegada de Lara com Chico e a presença de Lud já mais crescida, em uma tentativa de Christian para reaver sua guarda, também emocionou. Ali ficou visível a escrita de Lícia Manzo. É aquela Lícia que o telespectador amou em A Vida da Gente e Sete Vidas. As demais cenas do último capítulo nem pareceram escritas por ela. Frustrante para quem esperava um encerramento digno da potência de sua trama.
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Saldo foi positivo
Um Lugar ao Sol teve uma trajetória repleta de obstáculos, incluindo o descaso da Globo. O penúltimo capítulo ter sido exibido depois de 22h30 por causa do jogo Brasil e Chile foi apenas a comprovação de algo que era óbvio antes mesmo da produção ser colocada no ar, em novembro de 2021.
Lícia Manzo não teve sorte em sua estreia no horário nobre. Mas mesmo diante de tantos problemas, incluindo algumas falhas da própria autora, o saldo final foi positivo. O texto magnífico, os personagens densos e os conflitos tão bem construídos engrandeceram a história. Foram quatro meses de dramaturgia de qualidade.
A emissora, até como reparação, deveria produzir Jogo da Memória e exibi-la exclusivamente pela Globoplay no futuro. Lícia e o público merecem.