Zamenza

Além da Ilusão vem se mostrando uma novela das seis com boas qualidades e Alessandra Poggi acertou na condução de vários personagens. Sua primeira novela como autora solo é gostosa de assistir. No entanto, há um fato que desperta questionamentos à medida que a história avança: a relação dos mocinhos. O desenvolvimento em torno do amor que une Davi (Rafael Vitti) e Isadora (Larissa Manoela) teve falhas perceptíveis desde o início e agora, com a produção se encaminhando para a reta final, tudo ficou mais incômodo.

Além da Ilusão

É preciso ressaltar que o romance do casal necessitaria de um cuidado maior na construção em virtude do drama pesado do enredo. Nada mais chato do que problematizar ficção, mas é um contexto impossível de ignorar. Davi se apaixona perdidamente por Elisa (Larissa Manoela), mas a menina acaba assassinada pelo pai, Matias (Antônio Calloni), que comete o crime por acidente, já que sua intenção era matar o futuro genro, após flagrá-lo tentando fugir com a mocinha.

Para culminar, o juiz consegue incriminar o rapaz, que é condenado a 20 anos de cadeia, mas escapa da prisão após dez anos. O mocinho foge com o objetivo de provar sua inocência. Só que, por conta das coincidências novelescas, acaba sofrendo um acidente de trem, rouba a identidade de um passageiro aparentemente morto e começa a trabalhar na tecelagem de sua ex-sogra.

Vínculos

Além da Ilusão

Com o nome falso de Rafael Antunes, o personagem logo criou vínculos com todos e conheceu Isadora (Larissa Manoela), a irmã de Elisa, de quem era amigo dez anos atrás. Sim, Davi, já adulto, conhecia Dorinha ainda criança. A situação já despertava incômodo. Mas piorou quando o mocinho se apaixonou subitamente assim que a viu.

O mágico estava planejando sair da cidade para Dorinha não reconhecê-lo, mas caiu do cavalo e recebeu a ajuda justamente da sua ex-cunhada. O encantamento foi imediato, o que reforçou a impressão de um amor apenas pela semelhança física com a falecida Elisa. Não houve qualquer construção. Embora o texto tenha reforçado várias vezes que Davi se apaixonou pelo jeito de Isadora, não deu para engolir porque o rapaz nem teve tempo para conhecê-la de verdade. Em poucos dias já estava apaixonado. Não adianta botar no texto fatos que não foram mostrados.

Além da Ilusão

E também despertou muito estranhamento o mocinho nunca ter se questionado sobre o sentimento ou até lutado contra. Afinal, como Davi nunca parou para pensar na situação absurda que era estar apaixonado pela irmã da paixão de sua vida que foi assassinada pelo próprio pai e que ainda o incriminou? A situação despertaria angústia em qualquer ser humano minimamente normal. A autora deveria ter criado um dilema ético para o protagonista. Davi tinha que ter lutado contra aquele sentimento, ainda que não conseguisse resistir ao longo do tempo.

Não tinha a necessidade de um amor tão apressado, ainda mais em um produto com mais de 150 capítulos. Até porque é difícil um casal cair nas graças do público com um desenvolvimento corrido. Ainda mais um par que tem uma bagagem emocional tão difícil de lidar como o da novela das seis.

Algo natural

Além da Ilusão

Para o Davi, estar apaixonado pela irmã mais nova da mulher que diz ter amado profundamente é algo natural. O pior é que para Augusta (Olívia Araújo), sua cúmplice desde o início, e Heloísa (Paloma Duarte), que descobriu o segredo posteriormente, também é. Até a dona da pensão que ajudou o mágico a manter a identidade falsa, Dona Romana (Andrea Dantas), acha algo normal. Leônidas (Eriberto Leão) e Arminda (Carol Dallarosa) também não viram problema. Como pode?

Outro fato que causa estranhamento, para dizer o mínimo, é o mocinho estar mais preocupado com a vida da Isadora do que em provar sua inocência. O juiz que o condenou foi assassinado, mas o personagem não ligou muito para isso. O perito que foi ameaçado por Matias fugiu levando as provas da inocência do Davi, mas, ao invés de caçá-lo, o mágico contratou um detetive e ficou por aí mesmo. Davi praticamente viveu em função de Dorinha a novela inteira. E a vigiava o tempo todo, o que também despertava incômodo.

Além da Ilusão

Ok, no início da história, o personagem ouviu Úrsula (Bárbara Paz) tramar a morte da menina para que seu filho, Joaquim (Danilo Mesquita), ficasse com a fortuna depois do casamento. Mas os personagens nunca casaram, portanto, a mocinha não corria risco de vida para despertar tanta obsessão de Davi a ponto de se fantasiar para segui-la o tempo todo. Davi parecia mais um ‘stalker’. Agora, que a mocinha caiu nas garras do vilão e acabou se casando com ele, seria plausível o mocinho vigiá-la 24h. Mas, ironicamente, foi justamente o momento que o rapaz cogitou sair da cidade para procurar provas de sua inocência. Pareceu piada da autora.

Somando-se aos equívocos do desenvolvimento do casal, antes de Isadora ter caído na armação de Joaquim e se casado com ele, o mocinho simplesmente pediu a mocinha em casamento e nem se preocupou com o documento falso para estabelecer a união. O único momento de receio de Davi foi em uma conversa com Augusta, quando disse que tinha medo da reação da Isadora com a verdade. Mas logo ouviu de sua cúmplice que a menina iria perdoá-lo, afinal, o amava. Como se tudo aquilo fosse uma mentirinha besta. Vale até citar mais uma situação que prejudicou a construção dos mocinhos: Davi começou a transar com Isadora e nunca pensou em contar que transava com Elisa. Teve relações sexuais se passando por outra pessoa, o que é crime, entre muitos que vem cometendo. O mesmo que Christian (Cauã Reymond) fez com Bárbara (Alinne Moraes) em Um Lugar ao Sol.

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Semelhanças

Um Lugar ao Sol

Por sinal, a saga dos personagens se parece bastante, guardadas as devidas proporções. E é ótimo ver mocinhos que fogem dos padrões e se mostram repletos de defeitos e falhas de caráter. É algo ousado e válido. Mas na novela das nove, Lícia Manzo fazia questão de expor como seu protagonista era torto. Alessandra Poggi não faz o mesmo com Davi. Ele é tratado como um coitadinho que não faz nada de mau. E a saga de Davi seria muito mais rica se o romance com Isadora fosse constatado como uma mera ilusão do rapaz e cada um seguisse sua vida no final. Porque é difícil demais ignorar tudo o que tem acontecido para um desfecho fofinho que nem um conto de fadas.

O pior é que na semana passada Isadora finalmente descobriu que Rafael é Davi. Outra situação que ficou difícil de engolir diante dos fatos apresentados. Primeiro: o mágico deveria ter dito a verdade por conta própria, mas resolveu fazer a mágica que tinha feito para Dorinha na primeira fase, quando a estilista ainda era uma criança. E se assustou quando a personagem lembrou do ocorrido e o desmascarou. Como assim? Não previu isso?

Mas não acabou. Isadora nem ligou para o fato do rapaz ter escondido que tinha relações com sua irmã. Isso depois de ter dado um escândalo e rompido o casamento em pleno altar assim que soube que seu então noivo tinha transado com Iolanda (Duda Brack), enquanto eles estavam separados. Tudo bem focar na questão do assassinato de Elisa, que é algo bem mais grave, mas qual o sentido desse fato ser ignorado? Não é um detalhe bobo. É algo bastante relevante: o personagem se envolveu com duas irmãs, onde uma foi assassinada brutalmente e a outra tem a mesma aparência da falecida. Como isso não é levado para discussão? Como os personagens não estranham ou se incomodam? Ninguém se choca ou ao menos desconfia?

Versões

Espelho da Vida

O Davi é inocente, mas só o público pode ter certeza porque viu os fatos. Os personagens só ouvem versões. O Matias sempre foi um canalha, então é natural que acreditem na versão do protagonista, mas cegamente? E na hora? Porque todos compram a narrativa assim que a escutam. E se trata de um crime traumático. Mas não há qualquer nuance na trama central. O mocinho é tratado como uma pessoa 100% íntegra, sem defeitos. Há uma santificação em torno do personagem. Qualquer complexidade foi jogada fora.

Para piorar, não demorou nem uma semana para Isadora perdoá-lo por tudo. Não é por acaso que o romance desperta tantos questionamentos nas redes sociais. Só quem gosta são os integrantes do ‘fandom’ do par. O resto acha um absurdo. O plot central tem muitas camadas para ser resolvido de forma tão rasa. E houve outro fato que transbordou mau gosto: o espírito de Elisa apareceu logo depois de uma transa de Davi e Isadora para ‘abençoar’ o romance. A alma da morta vendo os dois na cama e com uma expressão de doçura beirou o patético. Como alguém achou que aquilo resultaria em algo emocionante? Só soou constrangedor mesmo. E ficou evidente a tentativa da autora de forçar essa bênção porque sabe da rejeição que o romance tem nas redes sociais.

Espelho da Vida

A premissa que envolve os mocinhos de Além da Ilusão é idêntica a de Espelho da Vida, primoroso folhetim de Elizabeth Jhin, exibido em 2019. Porém, na trama passada havia a temática espírita e os mocinhos reencarnavam para ter uma nova chance. Julia Castelo (Vitória Strada) foi assassinada pelo próprio pai, Coronel Eugênio (Felipe Camargo), e Danilo Breton (Rafael Cardoso) acabou morrendo de tristeza na prisão, condenado pelo crime que não cometeu. Mas os dois renasceram muitos anos depois – como Cris e Daniel – e puderam ter um final feliz.

Se a situação fosse repetida na atual história, não haveria nenhuma questão incômoda. Só que o enredo do par de Alessandra Poggi, fazendo um comparativo com a obra anterior, se resume em Danilo Breton se apaixonando à primeira vista por Cris Valência (Vitória Strada), irmã idêntica de Júlia Castelo, dez anos depois, se passando por outra pessoa e sem apresentar qualquer crise de consciência. Um contexto que provoca, no mínimo, controvérsias.

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Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor