Repleta de qualidades, A Força do Querer foi a melhor novela de Glória Perez

A missão de Glória Perez era complicada. Levantar a média do horário nobre da Globo, após uma sucessão de novelas fracassadas e/ou problemáticas. Para culminar, o seu retorno era cercado de desconfianças, em virtude da equivocada Salve Jorge, seu pior folhetim, exibido em 2013. Mas, a autora conseguiu cumprir o objetivo com louvor e calou a boca de quem duvidava. A Força do Querer elevou a média da faixa em oito pontos, ao longo de 173 capítulos, obtendo 36 de média geral (contra 27 de A Lei do Amor), se firmando como o maior sucesso do horário desde Amor à Vida (também com 36 pontos). Não é pouca coisa. E todo esse resultado fez jus ao que foi apresentado para o público.

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A Força do Querer foi a melhor novela da escritora, conseguindo superar até a elogiada e inesquecível O Clone, de 2001. Isso porque Glória soube se reciclar, corrigindo os vários erros observados em tramas como Caminho das Índias, América e a já citada Salve Jorge. Após abusar do recurso da exploração de culturas estrangeiras, a autora resolveu apostar em um enredo 100% nacional, tendo o Pará (através da fictícia Parazinho) como um dos locais de sua história. Ainda assim, o ambiente esteve presente apenas no primeiro mês, sendo logo ‘abandonado’ quando todos os personagens de lá se mudaram para o Rio de Janeiro. E foi ótimo não ter ‘dancinhas’ ou bordões com expressões estrangeiras. Estava bastante repetitivo.

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Outra medida adotada com êxito foi a escolha do protagonismo. Em meio ao empoderamento feminino, Glória colocou três mulheres como figuras centrais, intercalando o destaque de cada uma. E escalou três atrizes de peso: Paolla Oliveira, Juliana Paes e Isis Valverde. O trio honrou a confiança da escritora, fazendo de Jeiza, Bibi e Ritinha tipos marcantes, que caíram na boca do povo.

A Policial Militar que lutava MMA, a mulher ambígua que virou traficante por uma paixão doentia, e a sonsa menina que amava só a si mesma, simbolizando a sereia das lendas, foram interpretadas com brilhantismo, expondo o talento das intérpretes. A primeira despertava torcida, a segunda ódio e a terceira mesclava diversão e canalhice. Três personagens bem construídas.

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Porém, Ritinha teve uma condução mais errônea. A autora destacou a sereia no começo da trama, mas depois não soube mais o que fazer com ela. Tanto que a menina ficou sem conflito durante boa parte da história, só ganhando destaque novamente na reta final, em virtude do cumprimento da profecia que o índio fez para Zeca (Marco Pigossi) e Ruy (Fiuk), implicando em um tiro quase fatal e a descoberta do verdadeiro pai de Ruyzinho. Gloria poderia ter desenvolvido isso antes, destacando a atriz e evitando uma correria desnecessária no fim —– Zeca descobrir que é pai do menino só no penúltimo capítulo foi absurdo, eliminando um leque de dramas promissores, como luta pela guarda e conflitos com Jeiza.

Ao menos, Jeiza e Bibi tiveram um desenvolvimento excelente. A PM era a representação da Mulher Maravilha dos tempos modernos, fazendo um par apaixonante com Zeca. O casal transbordou química e ‘Jeizeca’ emplacou logo no início, para a surpresa da própria Glória, que inicialmente planejou um romance com Caio. A autora até adiou ao máximo a separação, mas, quando a juntou com o ex de Bibi, conseguiu deixar rivalidade da lutadora de MMA ainda maior com a Perigosa. Essa rixa, por sinal, foi um dos grandes trunfos do enredo. O ódio que a até então esposa de Rubinho (Emílio Dantas) tinha pela policial soltava faísca e havia sempre uma grande cena quando as duas se enfrentavam, empolgando o telespectador. O tradicional jogo de polícia X bandido era protagonizado por mulheres, fazendo o público torcer para a PM —- feito raro, levando em consideração a dificuldade em fazer uma heroína cativante nos últimos tempos. Paolla Oliveira deu um show, assim como Juliana e Marco Pigossi.

A própria trajetória de Bibi movimentou a novela, expondo a complexidade daquela mulher que protagonizava momentos doces com a mãe (Aurora – Elizângela) e o filho (Dedé – João Bravo), ao mesmo tempo que colocava medo quando subia o Morro do Beco, se comportando como a Baronesa do Pó. Ela despertava ódio, tanto pelas atitudes com Jeiza, quanto pela burrice na paixão cega por Rubinho. Juliana Paes viveu seu melhor momento na carreira, após duas grandes interpretações —- na pele da dúbia Carolina Castilho, em Totalmente Demais (2016) — seu segundo melhor papel —, e vivendo a passional Zana, em Dois Irmãos (2017). As cenas da atriz ao lado de Elizângela, João Bravo (melhor revelação mirim do ano) e Emílio Dantas eram fantásticas, sendo necessário citar a química com Rodrigo Lombardi, observada desde Caminho das Índias (2009). A parceria com Paolla também deu muito certo e vale citar o ótimo Jonathan Azevedo, intérprete do Sabiá. A autora mataria o traficante, mas mudou de ideia por causa do sucesso. Ele e Juliana formaram uma boa dupla. A intérprete da Bibi ainda dividiu bem a cena com a talentosa Totia Meirelles, ótima como Heleninha. O clima pesado entre as duas sempre rendia, assim como a amizade de Dedé e Iuri (Driko Alves).

O enredo em torno do transgênero Ivan/Ivana (Carol Duarte) foi mais um êxito da novela, funcionando como importante merchandising social. A trajetória daquela menina que não tolerava o próprio corpo cativou o telespectador, despertando atenção desde o início e revelando o talento de Carol para o mundo. A atriz deu um show de dramaticidade e se entregou ao papel, sofrendo transformações físicas desafiadoras. Ela realmente virou um menino ao longo da história, emocionando em meio a lindas músicas, como ‘True Colors’ (Cindy Lauper) e ‘De Toda Cor’ (Renato Luciano). Todos os conflitos familiares protagonizados pela personagem foram primorosos, sendo necessário destacar ainda Maria Fernanda Cândido e Dan Stulbach, que voltaram aos folhetins em grande estilo —- ambos estavam afastados há um bom tempo. A dificuldade que Joyce e Eugênio tiveram com a nova condição do filho se mostrou crível, rendendo grandes momentos. Vale citar também a importância de Juliana Paiva e Cláudia Mello em todo o contexto, valorizando as cenas sempre que Simone e Zu participavam do drama familiar. O único erro desse drama foi a gravidez de Ivan, cuja relevância foi nenhuma e ainda prejudicou a verossimilhança do todo.

O núcleo de Parazinho se mostrou outro trunfo da produção. Tonico Pereira e Zezé Polessa preencheram o espaço cômico da história com precisão, fazendo de Abel e Edinalva uma dupla imbatível. As brigas eram hilárias e os exageros deles fizeram bem ao contexto. Luci Pereira (Nazaré) e Gisele Fróes (Cândida) também brilharam junto com a dupla, assim como Dandara Mariana (Marilda). A própria Isis Valverde protagonizou engraçadas cenas com todos, incluindo Marco Pigossi. E a entrada da genial Fafá de Belém, vivendo a mãe de Zeca, engrandeceu essa deliciosa turma, embora tenha aparecido menos do que se esperava —- ela nem soube que o filho levou um tiro de Ruy, por exemplo.

Nem tudo foram flores, todavia. A vilania de Irene (Débora Falabella) deixou a desejar. Glória nunca foi uma autora muito boa em criar vilãs e essa foi mais uma prova. A psicopata que fazia de tudo para atingir seus objetivos virou uma chata, cuja única função era atazanar a vida de Eugênio e Joyce. No início, a trama empolgava. Mas, depois que levou uma surra de Ritinha e sapatadas da rival, sendo desmascarada, a mau-caráter ficou avulsa no enredo, se contentando em mandar fotos para Joyce com o intuito de irritá-la. Até o golpe da gravidez ela tentou dar. Enfim, decepcionou. O lado positivo foi ver Débora Falabella mostrando sua versatilidade, convencendo na pele de uma interesseira. A cena da morte da 171, por sinal, foi muito boa, surpreendendo pelo clima de terror. Maria Clara Spinelli também se destacou com a medrosa Mira, parceira da vilã, e a entrada de Betty Faria, na pele da impagável Elvirinha, movimentou um pouco o enredo e proporcionou um bom embate com a ex-amante de Eugênio.

Apesar do elenco mais enxuto, alguns nomes ficaram sem função e se perderam no roteiro. Elvira divertiu, mas entrou na trama com Garcia, vivido pelo grande Othon Bastos. Ele prometia engrandecer o contexto de Irene, mas ficou na promessa. Quem se destacou mesmo foi Betty, pois Othon não conseguiu bons momentos. Dantas foi outro perfil que não aconteceu. Anunciado como galinha e ambicioso, o empresário parecia um quase vilão no começo, mas acabou sumindo aos poucos. Edson Celulari voltou às novelas, após a recuperação do câncer, e isso já valeu muito. Entretanto, merecia mais. Por sinal, todo o núcleo dele se perdeu. Cibele (Bruna Linzmeyer) foi outra que teve ótimas cenas nos primeiros meses, se vingando de Ruy, até ficar avulsa e viajar por um tempo. Shirley (Michelle Martins), Anita (Lua Blanco), Amaro (Pedro Nercessian), Leila (Lucy Ramos) Alan (Raul Gazolla) e Junqueira (João Camargo) foram outros que ficaram soltos, mal aparecendo. Porém, justiça seja feita, Glória melhorou bastante em comparação a seus trabalhos anteriores, onde os elencos eram imensos e repletos de talentos desperdiçados. Só não é possível aceitar mesmo a escalação de Fiuk para viver um tipo tão importante como o Ruy. O ator é péssimo e não tinha a menor capacidade de viver um perfil de tamanho destaque. O massacre das críticas foi justo —- a autora viveu situação semelhante em Explode Coração (1995), quando Ricardo Macchi acabou ridicularizado pela total inexpressividade do Cigano Igor.

O vício em jogo de Silvana (Lília Cabral) foi um enredo promissor, mas acabou repetitivo. A trama rendeu ótimas situações, mesclando bem drama e comédia. Lília é fantástica e mais uma vez se sobressaiu em um trabalho, merecendo todos os elogios. Sua parceria com Juliana Paiva, Karla Karenina (Dita) e Humberto Martins (Eurico) se mostrou um acerto, assim como as mentiras deslavadas que a personagem contava para camuflar o seu vício. Porém, depois que Silvana finalmente se internou para se tratar, o contexto simplesmente retrocedeu. Ela fugiu e tudo voltou à estaca zero, Ou seja, o núcleo passou a andar em círculos, ficando cansativo. A cegueira do marido ultrapassou os limites da estupidez e a autora ter deixado essa conclusão só para o último capítulo foi equivocada. Poderia ter encaminhado o desfecho antes, evitando atropelos.

Aliás, Glória errou bastante em cima da conclusão de sua história. Ela deixou absolutamente tudo para o último capítulo. O resultado, obviamente, foi uma correria desnecessária, deixando muitos desfechos rasos, eliminando cenas que renderiam muito. Uma das situações mais aguardadas,por exemplo, era a descoberta de Eurico a respeito da verdadeira profissão de Nonato (Silvero Pereira). Mas, ele só descobriu no final do penúltimo capítulo. O mínimo que o telespectador merecia era que isso fosse resolvido antes, até para dar tempo do conservador empresário aceitar e finalmente deixar o preconceito de lado. Afinal, Eurico nunca foi uma má pessoa e a escritora acertou em mostrar que nem todas as pessoas preconceituosas são canalhas. Muitas são apenas ignorantes. Ao menos, o contexto rendeu bons momentos para Humberto e Silvero ao longo da obra. Por sinal, Silvero é mais uma grata revelação da trama e o paralelo que Glória fez de Nonato e Ivana, diferenciando o travesti do transgênero, foi excelente.

O penúltimo capítulo teve a ótima atuação de Marco Pigossi, Isis Valverde, Paolla Oliveira e Tonico Pereira quando Zeca finalmente descobriu que Ruyzinho é seu filho, após Nazaré ter visto a marca de nascença do menino. A cena primou pela emoção e vale um adendo especial ao menininho Lorenzo, que é uma graça e muitas vezes atuou sem perceber. Não podiam ter escolhido criança melhor para ‘representar’ o Ruyzinho. Que fofura. Vale destacar ainda o momento em que Bibi atirou em Rubinho e ainda negou o convide de Sabiá para chefiar outro morro. Juliana, Emílio e Jonathan muito bem, como sempre. Juliana ainda emocionou na hora em que Bibi ouviu de Aurora que Caio deu a casa onde estavam, percebendo o quanto foi estúpida ao longo dos anos. Carol Duarte, Maria Fernanda Cândido e Dan Stulbach também merecem menção, sensibilizando no instante em que Ivan foi para a sua esperada cirurgia de retirada dos seios. Já a imagem de Eurico em choque vendo Elis Miranda se apresentando em um desfile de moda arrancou gargalhadas de quem assistia. Humberto Martins genial.

A Força do Querer foi uma novela que deu gosto de assistir e fez jus ao horário nobre da Globo. Após tantas novelas problemáticas, a faixa mais prestigiada da emissora voltou aos bons tempos. Glória Perez viveu seu melhor momento como novelista, fazendo uma parceria bem-sucedida com o diretor Rogério Gomes, que soube exibir tudo o que a escritora queria —- vale lembrar a dificuldade da autora com a direção de Jayme Monjardim, em América, e Marcos Schechtman, em Salve Jorge. Esse folhetim foi um belo exemplo de uma produção vitoriosa e será sempre lembrada como um exemplo a ser seguido. O sucesso de público e crítica é mais do que merecido.


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