Remake disfarçado: autor juntou duas novelas da Globo em uma só

Cidadão Brasileiro, que terminava há 16 anos, em 20 de novembro de 2006, marcou o retorno de Lauro César Muniz à Record, onde escreveu As Pupilas do Senhor Reitor, Os Deuses Estão Mortos e Quarenta Anos Depois – nos dois primeiros anos da década de 1970.

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Confira inúmeras curiosidades sobre a trama:

O acerto com Lauro César Muniz

– A contratação do autor – encostado na Globo desde o término da minissérie Aquarela do Brasil (2000) – integrou o projeto “a caminho da liderança”, marco de uma série de investimentos da Record para se aproximar da emissora-líder, que incluía o segundo horário de novelas, após o êxito da primeira faixa, às 19h, com A Escrava Isaura (2004), Essas Mulheres (2005) e Prova de Amor (2005).

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– Na época, cogitou-se que o novelista receberia “duas vezes e meia a mais” o que ganhava na antiga casa. E que o salário contaria com um acréscimo a cada cinco novos pontos de audiência.

– Muniz apresentou três projetos. Uma comédia realista a respeito de uma família de classe média, a saga de um empresário ligado ao agronegócio e a fusão de quatro trabalhos marcantes, Cidadão Brasileiro: a já citada Quarenta Anos Depois, as novelas Escalada e O Casarão, exibidas pela Globo em 1975 e 1976, e a peça Luar em Preto-e-Branco. Ou seja, a trama acabou sendo um remake disfarçado.

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– O nome do protagonista, Antônio Maciel (Gabriel Braga Nunes), era resultado da junção dos nomes dos heróis de Escalada e O Casarão: Antônio Dias (Tarcísio Meira) e João Maciel (Gracindo Jr / Paulo Gracindo).

– André Valli e Cecil Thiré atuaram tanto em Escalada, quanto em Cidadão Brasileiro. Valli em personagem semelhante: Zoreia e Gasosa. Ambos prestavam auxílio a um golpista – Tadeu (Lutero Luiz) na primeira; Fausta (Lucélia Santos) na segunda. Já Cecil viveu Paschoal, prometido de Marina (Renée de Vielmond) em Escalada, correspondente a Camilo (Taumaturgo Ferreira) em ‘Cidadão’. Camilo era noivo de Luiza (Paloma Duarte) – que correspondia a Marina –, grande paixão de Antônio Maciel, filha de Júlio, personagem de Cecil no folhetim da Record.

Abrindo o cofre

– Prevista para novembro de 2005, Cidadão Brasileiro só estreou em março de 2006. Contribuíram para o adiamento o pequeno espaço disponibilizado pela emissora em sua sede em São Paulo para a teledramaturgia, então ocupado por Essas Mulheres; também as dificuldades de encontrar locações adequadas. Ainda, a demora em “fechar o elenco”. A emissora negociou às escuras com vários dos nomes pretendidos, já que a Globo, temendo o avanço da concorrente, passou a assinar compromissos longos com profissionais então contratados por obra.

– A montagem da cidade fictícia, Guará – uma homenagem do autor ao lugar onde nasceu – custou cerca de R$ 1,5 milhão. A área locada pelo canal, um terreno de 40 alqueires (equivalente a 1 milhão de metros quadrados), ficava próxima a Bragança Paulista, interior de São Paulo. O espaço contava com uma torre de luz concebida especialmente para a produção, similar, na quantidade de watts, à do estádio de futebol do Morumbi. Os cenários contaram com fundação e vigas de ferro, resistentes ao sol, à chuva e a ventos fortes. As ruas, de paralelepípedo, receberam tratamento especial para suportar os carros da década de 1950, época em que se passava a novela, mais pesados do que os produzidos hoje em dia. A equipe ainda locou duas fazendas em Itatiba, também interior de São Paulo.

– Cada capítulo custou cerca de R$ 150 mil aos cofres da Record. Dinheiro, definitivamente, não era o problema. Na mesma época, a emissora planejava o lançamento da terceira temporada de O Aprendiz, com Roberto Justus; do reality-show Troca de Família, com Patrícia Maldonado; das novelas Bicho do Mato, substituta de Prova de Amor, e Alta Estação, em um terceiro horário; e ainda um pacote de filmes com clássicos como Gladiador (2000) e Titanic (1998).

– Investimento também em uma promoção que visava atrair a atenção do público para a estreia do canal, agendada para o mesmo 13 de março no qual a Globo lançou o remake de Sinhá Moça, às 18h. A Record sorteou uma casa de R$ 80 mil e um carro de R$ 25 mil por dia, durante os quinze primeiros capítulos do folhetim, para telespectadores que responderam à pergunta “qual a novela da Record que estreia dia 13 de março?”. Ana Hickmann, do Hoje em Dia, apresentava os boletins do sorteio.

– Cidadão Brasileiro, porém, faturou! O personagem Augusto Varela (Juliano Righetto) foi criado especialmente para promover ações da Fundação Bradesco. E acabou jocosamente apelidado de Augusto “Merchan”.

– A divulgação contou também com Lauro César Muniz, Bárbara Bruno (Cleonice), Floriano Peixoto (Atílio), Lucélia Santos e Paloma Duarte como passageiros do táxi de Padilha (André Mattos), personagem de Prova de Amor.

– O site do canal também apostou numa enquete: “Quem é o maior cidadão brasileiro?”. Ayrton Senna, Carmem Miranda, D. Pedro II, Éder Jofre, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Machado de Assis, Oscar Niemeyer, Pelé e Santos Dumont foram os indicados.

Time de peso

– Bruna Lombardi e Sônia Braga foram convidadas para viver Fausta, entregue a Lucélia Santos. Maitê Proença também chegou a ser cogitada. Já Walmor Chagas não se acertou com a produção; Luiz Carlos Miele se encarregou do personagem oferecido ao veterano, Otávio Gama. Deslocada para Bicho do Mato – assim como Ewerton de Castro –, Miriam Freeland deixou a hippie Tatiana, que se envolvia com Antônio Maciel, a cargo de Fernanda Nobre, recém-saída de Prova de Amor.

– A emissora também tentou adquirir, sem sucesso, os passes de Danton Mello, Francisca Queiróz, Herson Capri, Paulo Goulart, Marcela Muniz – filha de criação de Lauro César – e Tânia Alves.

– O clima familiar dominou as gravações. Vanessa Goulart (Julieta) é filha de Bárbara Bruno; esta era esposa de Lauro César Muniz, pai de Fernanda Muniz (Laís). Gabriel Braga Nunes namorava Danni Carlos (Renée); Fernanda Nobre dividia o lar com Gabriel Gracindo (Caio), filho de Gracindo Jr (Nestor) e meio-irmão de Paloma Duarte, mãe de Ana Clara Sanches Winter (Dóris) na ficção e na “vida real”.

A estreia

– Na sexta-feira anterior à estreia, dia 10, a Record ainda não havia divulgado a grade da semana seguinte. A expectativa para o horário de Cidadão Brasileiro perdurou durante quase todo o fim de semana. Cogitava-se a exibição na sequência de Prova de Amor, às 20h15, ou após o Jornal da Record, batendo de frente com a novela das 20h da Globo, Belíssima, de Silvio de Abreu.

– Cidadão Brasileiro acabou estreando às 20h15. Em agosto, devido ao horário eleitoral, passou para 21h20 – enfrentando Páginas da Vida, de Manoel Carlos, na emissora-líder. Migrou para 22h; posteriormente, 22h30. E, em algumas semanas, deixou de ser exibida às quartas-feiras por conta do futebol. Tantas alterações foram apontadas pelo autor como um dos motivos para estagnação dos índices de audiência.

– O primeiro capítulo, exibido sem intervalos, registrou 14 pontos na Grande São Paulo. Prova de Amor, atração anterior da grade, bateu nos 16.

Ousadia

– A imprensa destacou a ousadia do roteiro, veiculado numa estação de TV pertencente a um líder religioso – Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. Gabriel Braga Nunes surgiu debaixo do chuveiro, completamente nu (de costas), logo na primeira semana. Luiza Tomé (Tereza) também ficou com os seios à mostra numa cena de sexo com Bruno Ferrari (Marcelo).

– No segundo capítulo, Carolina (Carla Cabral) presenteou Antônio com a calcinha que usava; ele agradeceu esfregando a peça em seu rosto. Tempos depois, Luiza enalteceu o dote do namorado; “generosidade da natureza”, segundo ele. Ainda, Celso (Leonardo Brício), que, ao deixar a prisão, é levado pelo pai, Nestor, a um restaurante; ao ser indagado sobre o que pretende comer, Celso exclama: “uma mulher”.

– Cidadão Brasileiro surpreendeu também com as cenas do homossexual Nilo (Thiago Chagas). O personagem foi concebido como um médico viril; Lauro César, contudo, aproveitou-se da docilidade imprimida pelo ator ao tipo para transformá-lo em um jovem com dúvidas sobre sua sexualidade. Cenas de uma pescaria de Nilo e Aguinaldo (Gustavo Haddad), seu colega de trabalho, contaram com forte conotação sexual. Por fim, Nilo se casava com Julieta para manter as aparências, estabelecendo uma relação à três com Aguinaldo – que também se envolvia com a prostituta Carmem (Adriana Londoño).

– Lauro César Muniz também ousou abordar o misticismo – prática sempre condenada nos telecultos da Record. O autor relacionou Antônio Maciel e a golpista Fausta ao bruxo Victor Temisof (Jayme Periard), que acreditava que o obra de Goethe, Fausto, consistia em um livro de revelações. Victor apoiava-se na literatura, e em sua intuição, para obter ganhos materiais, ludibriando, dentre outros, Otávio Gama e sua esposa Manoela (Françoise Forton).

– Através de Otávio e Manoela, aliás, Muniz abordou a eutanásia, mote de Os Gigantes (1979), também escrita por ele. Ainda reverenciou a novela O Salvador da Pátria (1989) numa fala de Atílio, que citava a cidade de Tangará e o político local Quinzote (Mário Lago).

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Brigas e atrasos

– Os bastidores se agitaram com a saída do diretor-geral, Flávio Colatrello Jr, alvo das críticas do autor, do elenco e da equipe de produção, segundo publicações da época. As divergências iam desde a iluminação até o “timing” do texto. Por fim, Lauro e Flávio discordaram quanto à segunda fase da novela. O primeiro planejava manter o elenco, envelhecido com recursos de maquiagem; já o segundo pretendia trocar todo o time. Colatrello acabou substituído, num primeiro momento, por João Camargo e Henrique Martins. Depois, Ivan Zettel passou a responder pela trama.

– As gravações, obviamente, atrasaram. Gabriel Braga Nunes, o mais exigido de todo o enredo, passou a recorrer ao ponto eletrônico, já que não havia tempo suficiente para decorar as falas. Um helicóptero foi providenciado para evitar o deslocamento da equipe, entre a cidade cenográfica no interior e os estúdios na capital.

– Na mesma época da troca na direção, Lauro César peitou a Record, que pretendia esticar ‘Cidadão’ até janeiro, em razão dos atrasos na substituta, Vidas Opostas. O novelista conseguiu manter a data do término, agendada para novembro.

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Elogios

– Maytê Piragibe, escalada para Vidas Opostas (foto acima), deixou Cidadão Brasileiro antes do último capítulo. Sua personagem, Eleni – que disputou Marcelo com Tereza, sua mãe – foi assassinada durante a Guerrilha do Araguaia.

– Aliás, a abordagem da repressão militar, na segunda fase da novela, foi bastante elogiada por público e crítica. Eleni partiu para o Araguaia ao se ver impossibilitada de seguir na resistência urbana – sua mãe chegou a ser presa e torturada pelo DOPS. Já a alienada Renée, filha de Otávio, partia para a luta armada ao se apaixonar pelo engajado Edu (José Roberto Jardim). Homero (Tuca Andrada), grande amigo de Antônio Maciel, teve seu mandato de deputado cassado; parlamentares como Mário Covas e Márcio Moreira Alves, de fato cassados na época, foram citados nos diálogos.

– Gabriel Braga Nunes caminhava sobre uma esteira, apagada digitalmente, na vinheta de abertura. Recursos visuais situavam o ator, na pele de Antônio Maciel, nas diferentes décadas abordadas no folhetim – as de 1950, 1960 e 1970. O tema, ‘Ponteio’, de Edu Lobo e José Carlos Capinam, foi sugerido por Flávio Colatrello.

“Tanto tempo depois esses versos ainda têm tudo a ver com a história do cara que chega e quer vencer”, afirmou Marcio Antonucci, então diretor musical da Record.

– ‘Ponteio’ foi vencedora do 3° Festival de Música Popular Brasileira (1967), produzido pela emissora.

– No último capítulo, um epílogo em 2006, no qual Antônio Maciel revisitava suas lembranças ao entrar no prédio do Cine Glória, principal “point” de Guará, então ocupado por uma loja de brinquedos. O “fim” foi exibido numa segunda-feira, 20 de novembro, para evitar o ocorrido na estreia de Cidadão Brasileiro: a coincidência de um lançamento da Globo – a trama das 19h, Pé na Jaca – com outro na Record: Vidas Opostas, no ar a partir de terça-feira, 21.

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