“Malhação – Viva a Diferença” (exibida entre 2017 e 2018) marcou a estreia de Cao Hamburger na Globo com o pé direito. A temporada, dirigida por Paulo Silvestrini, abordou temas importantes de forma séria e o enredo muito bem escrito pelo autor foi repleto de qualidades. A audiência correspondeu (a média de 20 pontos é um excelente índice e o maior em dez anos de “Malhação”, até hoje não superado). A reprise, por conta da pandemia do coronavírus, ajuda a reforçar os inúmeros acertos da trama. E um dos muitos foi a escolha (e construção) das cinco protagonistas.

Keyla (Gabriela Medvedovski), Tina (Ana Hikari), Ellen (Heslaine Vieira), Lica (Manoela Aliperti) e Benê (Daphne Bozaski) são perfis cativantes e totalmente verossímeis, representando a adolescência de uma forma nada maniqueísta. Não há boazinha e nem malvada, há meninas em busca de seus desejos e com muitos dilemas, repletas de virtudes e defeitos. São todas cem por cento humanas, precisando lidar todos os dias com as diferenças que tinham tudo para separá-las, mas que só as unem mais.

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Os perfis foram construídos com extrema habilidade pelo autor e a escalação podia colocar tudo a perder. Afinal, atrizes fracas não conseguiriam passar todas as nuances das protagonistas, aniquilando o DNA do roteiro da temporada. E o risco era elevado, pois “Malhação” lança talentos desde a sua estreia, em 1995. Os escolhidos são sempre novatos, implicando em uma chance maior de tropeços.

O que não deixa de ser compreensível, levando em consideração a falta de experiência de cada um. O seriado não deixa de ser uma ‘escola’ de artes, observada pelo público. Tanto que alguns intérpretes são ótimos e outros se mostram limitados. Em toda fase.

Mas deu tudo certo. Não poderiam ter escalado meninas melhores. As cinco foram muito bem e seguras em cena. A seleção para cada papel foi precisa e a sintonia entre elas era visível a todo instante. As atrizes cresceram juntas, mas conseguiram brilhar separadamente sem problemas. Isso foi resultado de um conjunto de fatores: além de serem talentosas, foram beneficiadas pelos perfis ricos criados por Cao Hamburger, que retratou a adolescência com verossimilhança, sem exageros ou esteriótipos. O roteiro, inclusive, fluiu com facilidade, mesmo quando não havia grandes conflitos ou ganchos. Reflexo da agradável história.

Lica é uma patricinha revoltada, cujo maior drama é a traição do pai, Edgar (Marcelo Antony), que teve uma filha com a melhor amiga da mãe (Marta – Malu Galli). E essa filha é justamente Clara (Isabella Scherer), a então melhor amiga de Lica, que soube antes da relação extraconjugal. A situação deixou a garota ainda mais rebelde, a ponto de se envolver com Felipe (Gabriel Calamari), namorado de Clara, só para atingi-la. Toda a situação foi bem explorada, assim como o relacionamento homossexual com Samantha (Giovanna Grigio) mais perto da reta final. A menina se redescobriu e se libertou. Manoela Aliperti esteve impecável. Ela, aliás, foi uma grata surpresa de “3 Teresas”, ótima série do GNT, onde se destacou ao lado de Cláudia Mello e Denise Fraga.

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E Tina é uma adolescente decidida e que precisa enfrentar o racismo da família para ficar com Anderson (Juan Paiva). Mitsuko (Lina Agifu) não aceita que a filha namore um negro e faz de tudo para impedir o namoro. O pai Noboru (Carlos Takeshi) tenta contemporizar, mas também não vê com bons olhos. E a caçula, Telma (Julie Kei), é uma peste que adora ver o circo pegar fogo. Embora seja um clichê, a questão foi tratada com densidade e veracidade. Não só pela rejeição da família de Tina, como também em momentos do cotidiano, vide a hora em que o casal foi abordado por policiais e o rapaz acabou ofendido — o preconceito até rendeu protesto de um deputado policial, que se ‘indignou’ com a cena. Ana Hiraki foi um achado e merece elogios por seu desempenho.

Anderson, aliás, é irmão é Ellen. A outra protagonista é uma nerd, expert em programas de computador. Embora pareça forte por fora, por dentro precisa lidar com a extrema carência em virtude da ausência da mãe, uma enfermeira que passa a maior parte do tempo em um hospital público, e do assassinato do pai (morto com vários tiros). Ainda que frágil internamente, a garota enfrenta tudo e todos com a cabeça erguida, sem tolerar qualquer tipo de preconceito. Isso até resulta em um radicalismo, pois ninguém pode falar nada politicamente incorreto perto dela sem ouvir um sermão. Ela também é alvo da disputa disfarçada entre Fio (Lucas Penteado) e Jota (Hall Mendes).

Já Benê é a líder do grupo de amigas. A nerd tímida fez questão de adicionar o contado de todas assim que se conheceram. Carente de afeto, a menina nunca teve amigos e apresenta dificuldade de relacionamento. Ela sofre de Síndrome de Asperger, um grau leve de autismo. A doença foi aborda de forma sutil, mas teve um crescimento ao longo da trama. A garota tem uma mãe amorosa (Josefina – Aline Fanju) e um irmão mais novo implicante (Julinho – Davi Souza). Sem Benedita, as meninas não ficariam muito tempo unidas. A garota funcionava como uma espécie de elemento apaziguador, amenizando alguns conflitos que muitas vezes se tornavam inevitáveis. Benê também tem um amor: o arrogante Guto (Bruno Gadiol), garoto mais cobiçado da escola que começou a lhe dar aulas de piano depois que perdeu uma aposta. Daphne Bozaski esteve irretocável na pele da personagem mais apaixonante da história —- a atriz e Heslaine, vale lembrar, já trabalharam com o autor em “Pedro e Bianca” (2012) e “Que Monstro Te Mordeu?” (2014).

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Por fim, Keyla foi a responsável pelo encontro das protagonistas, graças ao seu parto em pleno metrô, provocando pânico em todas. Mãe adolescente, a garota precisa lidar com as responsabilidades que um bebê traz e com os problemas que começam a refletir na escola. Para culminar, nunca mais viu o pai da criança e mente dizendo que Tato (Matheus Abreu) é o pai de seu filho —- a ideia foi na verdade dele, pois sempre se mostrou apaixonado pela sua amiga de infância. Keyla ainda conta com o apoio do pai, Roney (Lúcio Mauro Filho), e das próprias novas melhores amigas, que nunca mais se desgrudaram depois do nascimento de Tonico. Cao também abordou os emagrecedores milagrosos através dessa personagem. Como estava gordinha depois que virou mãe, a menina enfrentava problemas com autoestima e resolvia tomar remédios sem prescrição médica. Acabou internada. Tema importante tratado com propriedade. Gabriela Medvedovski é uma dedicada e carismática atriz.

“Malhação – Viva A Diferença” merece uma sucessão de elogios por muitas razões e uma delas é esse quinteto protagonista. Pela então primeira vez na história do seriado adolescente o foco principal não foi um romance e, sim, uma amizade verdadeira, cujas diferenças mais aproximavam do que separavam. As personagens eram cativantes e as atrizes transbordaram talento. Não por acaso, três delas (Daphne, Heslaine e Gabriela) estão escaladas para “Nos Tempos do Imperador”, novela das 18h de Alessandro Marson e Thereza Falcão, cuja estreia era prevista para abril, mas agora só irá ao ar em 2021 em virtude da pandemia.

SOBRE O AUTOR

SÉRGIO SANTOS é apaixonado por televisão e está sempre de olho nos detalhes, como pode ser visto em seu blog. Contatos podem ser feitos pelo Twitter ou pelo Facebook.

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Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor