Cao Hamburger é reconhecido como um dos principais autores de teledramaturgia infanto-juvenil do país. Reconhecido por trabalhos como Castelo Rá-Tim-Bum, Pedro e Bianca e Que Monstro Te Mordeu (todos na TV Cultura), Filhos do Carnaval (HBO) e Disney Cruj (SBT), o autor paulistano recebeu a missão de elaborar a atual temporada de Malhação, intitulada Viva a Diferença, que estreou no dia 8 de maio de 2017, após as esquecíveis Seu Lugar no Mundo e Pro Dia Nascer Feliz, vindas em sequência e assinadas por Emanuel Jacobina, criador do formato.
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Não demorou para a história que se encerra nesta segunda-feira conquistar público, crítica, audiência e repercussão mais que positivos. E o motivo principal é simples: o enredo, dirigido pela equipe de Paulo Silvestrini, quebrou vários paradigmas vigentes até então na história da novela juvenil mais assistida da TV aberta e promoveu uma aproximação ainda mais real com o público jovem, tornando-se assim a melhor temporada de Malhação em muito tempo.
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O rompimento com o modelo que imperava até então começou já no formato do protagonismo: em vez de um casal de mocinhos cujo romance é atrapalhado por vilões/vilãs, Cao optou por focar nas histórias de cinco garotas: Keyla (Gabriela Medvedovski), Benê (Daphne Bozaski), Lica (Manoela Aliperti), Tina (Ana Hikari) e Ellen (Heslaine Vieira). Diferentes entre si, as meninas se conheceram no metrô de São Paulo, quando a primeira entrou em trabalho de parto. O esforço delas para o nascimento do bebê deu início ao que se tornaria uma amizade sólida, que as faria descobrir afinidades que jamais imaginariam.
Keyla, mãe solteira, engravidou de um rapaz desconhecido e o menino, Tonico (Daniel Castro), foi registrado no nome do atual namorado, Tato (Matheus Abreu). Benê é portadora da síndrome de Asperger, frequentemente confundida com o autismo, o que faz com que ela tenha dificuldades de construir relacionamentos e não goste de recepções muito calorosas, como abraços. Lica, de espírito rebelde, vive no meio de uma guerra entre seus pais separados e já se envolveu com homens e mulheres. Ellen, negra, domina a informática como poucos (é hacker e já invadiu o sistema de sua escola) e luta contra o racismo. E Tina, de família oriental, tem problemas com a mãe por namorar Anderson (Juan Paiva), irmão de Ellen.
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O quinteto logo se mostrou riquíssimo em nuances, vivendo conflitos que integravam as vidas das garotas e mostraram a força e a união feminina, temas altamente discutidos no atual momento. Todas as vivências das Five, como o grupo passou a ser intitulado, foram muito bem retratadas pelas cinco promissoras garotas, que emocionaram e brilharam em todos os momentos. Gabriela Medvedovski e Ana Hikari, estreantes, mostraram surpreendente maturidade e segurança nos papeis e a primeira ainda se destacou nas cenas que apareceu cantando, pela linda e afinada voz.
Daphne Bozaski deu vida a uma das personagens mais cativantes do grupo: Benê se tornou queridinha da temporada por seu comportamento peculiar, que a fazia levar tudo ao pé da letra. Representando um tema raro na teledramaturgia, a atriz já havia trabalhado com Cao Hamburger na série Que Monstro Te Mordeu, da TV Cultura, e fez valer novamente a parceria em um dos melhores desempenhos apresentados na temporada, inclusive com várias cenas emocionantes que evidenciaram as dificuldades da personagem. Bem como Heslaine Vieira, protagonista de Pedro e Bianca, na mesma emissora. A jovem brilhou ao mostrar a luta de Ellen contra a discriminação e criou uma ótima parceria com todas as atrizes do quinteto.
Manoela Aliperti, a mais experiente das protagonistas, já havia trabalhado com a veterana Denise Fraga na série Três Teresas (cujo trio era completado pela talentosa comediante Cláudia Mello) e no filme De Onde Eu Te Vejo (onde era filha de Denise e do inesquecível Domingos Montagner). Como porta-voz da rebeldia de Lica, emprestou credibilidade aos conflitos vivenciados pela garota, como a separação dos pais, os enroscos amorosos e os problemas com álcool e drogas.
Além das cinco protagonistas, a novela ainda contou com um excelente grupo coadjuvante, entre jovens e adultos: as periguetes-vilãzinhas Katarine (Talita Younan) e Katiane (Carol Macedo), conhecidas como K1 e K2; o nerd Jota (Hall Mendes), apaixonado por Ellen; o boa-praça Tato (Matheus Abreu), namorado de Keyla; Felipe (Gabriel Calamari), ex-namorado de Lica; MB (Vinícius Wester); Samantha (Giovanna Grigio); Fio (Lucas Koka Penteado); Juca (Mikael Marmorato), amigo de Jota; a faxineira Josefina (Aline Fanju), mãe de Benê; o ex-roqueiro Roney Romano (Lúcio Mauro Filho), pai de Keyla; os educadores Bóris (Mohamed Harfouch) e Dóris (Ana Flávia Cavalcanti); o diretor Edgar (Marcello Antony) e a ambiciosa e intragável coordenadora pedagógica Malu (Daniela Galli).
A esmagadora maioria desses perfis ficou marcada por uma condução que privilegiou o caráter humanista de cada um, fugindo da dicotomia entre o bem e o mal, mostrando-os com erros e acertos que refletem suas vivências, e que ganharam veracidade pelas ótimas interpretações de todos. Já o perfil de Malu é o mais próximo do maniqueísmo – e isto não é um demérito. Por sua arrogância e falta de escrúpulos, a personagem foi uma representação fiel da hipocrisia de parte dos setores conservadores atuais do país.
Nos núcleos familiares, um destaque especial deve ser feito para a família de Tina, toda formada por atores descendentes de japoneses: Lina Agifu (Mitsuko, mãe da garota), Julie Kei (a sapeca Telminha, irmã de Tina) e Carlos Takeshi (o patriarca Noboru, dono de um restaurante japonês). Foi muito bom ver uma família oriental sendo retratada da forma devida, especialmente após a polêmica envolvendo a escalação do veterano Luís Melo para a novela Sol Nascente, que despertou justas críticas.
Outra fronteira derrubada por Viva a Diferença foi a abordagem de temas tratados de forma superficial em edições anteriores. Síndrome de Asperger, homo/bissexualidade, violência contra a mulher, liberdade de expressão, conservadorismo, corrupção, feminismo, racismo, discriminação social, disseminação de fake news, gravidez na adolescência, dualidade entre educação pública (através do Colégio Estadual Cora Coralina) e particular (caso do Colégio Grupo), música, vício em álcool e drogas, todos estes temas ganharam um cuidado mais profundo, se aproximando ainda mais da realidade do jovem brasileiro e tomando o cuidado de evitar os rótulos e o tom panfletário.
Algumas cenas evidenciam esta condução cuidadosa: o drama sofrido por K1, vítima de abusos cometidos pelo padrasto e da negligência da mãe; a cena em que Benê confessa ao pai que é portadora de Asperger; os ataques à amizade de Felipe e Gabriel (Luís Galves), homossexual, filho de Roney; e, mais recentemente, a depredação da exposição cultural do Cora Coralina.
E tudo isto foi abordado sem abandonar elementos do folhetim tradicional, como os casais e triângulos românticos, as relações conflituosas entre pais e filhos, além de clichês tradicionais como o golpe da barriga (armado por K2 para separar Keyla de Tato). Inúmeros pares cativantes e cheios de química conquistaram o público, como Benê e Guto (Bruno Gadiol, talento oriundo da quinta edição do The Voice Brasil), Jota e Ellen, Lica e Felipe, Lica e Samantha, Keyla e Tato, Bóris e Dóris, Roney e Josefina, MB e K1, Tina e Anderson. Pares para todos os gostos.
Ainda assim, mesmo com todo o sucesso, uma decisão incompreensível foi tomada pelo diretor de teledramaturgia Sílvio de Abreu. O encerramento da temporada foi encurtado para o início de março, com a alegação de que poderia ser atrapalhado pela Copa do Mundo e pelas eleições. Algo discutível, pois Emanuel Jacobina conseguiu emplacar uma temporada seguida da outra, interrompida apenas pelas olimpíadas, em 2016.
E, mesmo com todo o bom conjunto, a temporada não deixou de apresentar falhas importantes. O triângulo entre Keyla, Tato e Deco (Pablo Morais), pai biológico de Tonico (Danilo Castro), cansou pela indecisão da estudante, o que fez Tato se deixar envolver com K2. Alguns temas, como o alcoolismo de MB e a automutilação de Clara (Isabella Scherer), filha de Malu com Luís (Ângelo Antônio), não foram aprofundados o suficiente. Na trama de Lica, soou incoerente ela querer deixar o Colégio Grupo unicamente por causa da briga dos pais e ir justamente para o Cora Coralina. E o momento em que Benê admite ser portadora de Asperger demorou muito para acontecer, sendo levado ao ar quase no fim da temporada. Com o encurtamento, ficou a sensação de que algumas coisas ficaram pelo caminho, impedindo a temporada de ser ainda melhor do que foi.
Todavia, as qualidades superaram em muito os erros e todo o conjunto mereceu a aclamação popular e da crítica, tanto que sua média de audiência (20,4 pontos) é a melhor desde a ótima temporada de 2008, que revelou Sophie Charlotte, Nathalia Dill, Caio Castro e Mariana Rios. Um fenômeno.
Os últimos capítulos apresentaram sequências de arrepiar e desfechos emocionantes, a partir da feira cultural em defesa do Cora Coralina. A defesa da liberdade de expressão não escapou dos ataques orquestrados por Malu, como um vídeo criticando a exposição (inspirado na polêmica das exposições do ano passado) e um incêndio criminoso, em meio a uma tempestade. Para culminar, Dóris entrou em trabalho de parto com a ajuda das Five, repetindo o ocorrido no primeiro capítulo. Tudo deu certo e, na entrevista à imprensa, as garotas acusaram Malu, desmoralizada publicamente e por MB, que nomeou Marta (Malu Galli) e Luís (Ângelo Antônio) como sócios do Colégio. Os finais felizes dos casais se sucederam em belíssimas cenas, com destaque para o momento em que Benê finalmente abraça a mãe e o pedido de perdão de Mitsuko para Anderson, por todos os preconceitos. E as sequências finais com as Five reafirmando sua amizade para o resto da vida impactaram muito. Foi difícil não se emocionar.
Por todo o conjunto apresentado, Malhação – Viva a Diferença é, seguramente, a melhor temporada da novela juvenil em muito tempo. Cao Hamburger, Paulo Silvestrini, elenco e equipe promoveram uma verdadeira revitalização do formato, quebrando o modelo que vigorava até então e promovendo uma aproximação ainda maior com o público jovem brasileiro. Tamanha aclamação aumenta ainda mais a responsabilidade da sucessora, Vidas Brasileiras, de autoria de Patrícia Moretzsohn, que estreia na quarta, 7 de março. Todos merecem os aplausos pela deliciosa e impactante temporada apresentada!