Assim que estreou, no dia 8 de maio de 2017, Malhação – Viva a Diferença deixou a melhor das impressões. Pela primeira vez na história do seriado adolescente não havia um casal protagonista e, sim, cinco meninas totalmente diferentes que se conheceram em um vagão de metrô, iniciando um laço futuramente indestrutível graças ao parto de uma delas. O nascimento do pequeno Tonico (Danilo Castro de Souza), ao som de ‘Trem Bala’ (cantada por Ana Vilela), marcou o primeiro capítulo, arrebatando o público imediatamente, que logo se apaixonou pela forma como o quinteto central se conheceu. Uma promissora fase se anunciava.

E a promessa de uma grande história acabou sendo cumprida ao longo dos meses. A estreia de Cao Hamburger como autor solo na Globo se mostrou a melhor possível, após brilhantes trabalhos na TV Cultura, como o icônico Castelo Rá-Tim-Bum (1994/97), Um Menino Muito Maluquinho (2006), Pedro & Bianca (2012) e Que Monstro Te Mordeu? (2014). O escritor até já tinha trabalhado na Globo escrevendo a série Cidade dos Homens, em parceria com outros roteiristas, entre 2002 e 2005, além de ter sido redator dos infantis Disney Club e Disney Cruj (1997 – 2002) no SBT. Acostumado a escrever para crianças, ele mostrou ter total habilidade para representar o mundo jovem e construir adolescentes reais, sem fantasiar ou fugir de temas mais densos.

Além da ousadia em ter cinco meninas protagonizando seu enredo e não um casal, Cao ainda trouxe a trama para São Paulo, após 24 temporadas tendo o Rio de Janeiro como ambientação. Essa mudança pode parecer boba, mas ajudou bastante para ”oxigenar” o formato, principalmente através de vários diálogos tendo gírias paulistas sendo usadas, como o termo “treta” para se referir a brigas, pouco utilizada pelos cariocas.

E focar nos dramas individuais de cada protagonista se mostrou outro trunfo e tanto, priorizando também os momentos de todas juntas, lidando com os problemas e se ajudando. Os casais ficaram em segundo plano, mas não deixaram de ter importância. Os romances tiveram bastante espaço no roteiro, valorizando a química entre vários atores.

A direção de Paulo Silvestrini foi mais um ponto positivo dessa Malhação, extraindo o melhor do elenco repleto de jovens talentos. O diretor ainda conseguiu transmitir toda a sensibilidade que o texto pedia em várias situações, produzindo cenas delicadas que marcaram a temporada ao longo dos meses. Mas os momentos de ação não ficaram atrás e também foram dirigidos com competência, parecendo reais, vide o acidente de moto de Anderson (Juan Paiva) e o espancamento de Gabriel (Luis Galves) e Felipe (Gabriel Calamari). A trilha sonora não pode ser esquecida, pois complementou todas as sequências de forma irretocável, sendo necessário aplaudir a seleção de extremo bom gosto da equipe. ‘In Between Days’ (The Cure), ‘Casa Pronta’ (Mallu Magalhães), ‘Casinha Branca’ (Roberta Campos), ‘Fly’ (Eric Silver) – tema de Benê e Guto -, ‘My Own Deceiver’ (Ego Kill Talent), ‘Trem-Bala’ (Ana Vilela) e ‘Bate a Poeira’ (Karol Conká) – tema da ótima abertura – são alguns exemplos.

A forte amizade entre Lica (Manoela Aliperti), Keyla (Gabriela Medvedovski), Ellen (Heslaine Vieira), Tina (Ana Hikari) e Benê (Daphne Bozaski) norteou o roteiro e encantou do início ao fim. O telespectador viu todas amadurecerem ao longo desses onze meses, precisando lidar com vários problemas e dilemas de qualquer adolescente, incluindo as inúmeras diferenças que tinham tudo para separá-las, mas acabaram as unindo mais. Cao acertou em explorar o enredo de cada uma separadamente, iniciando e fechando ciclos durante a temporada, renovando sempre os conflitos e inserindo temas importantes para serem debatidos através de perfis extremamente ricos e bem construídos. Não faltou assunto na trama e ficou visível que ainda havia fôlego para ao menos mais uns dois meses no ar — a fase acabaria em junho, como quase todas as anteriores, e lamentavelmente foi encurtada por causa da Copa do Mundo (justificativa bem controversa).

Keyla viveu a gravidez na adolescência e sua parceria com o íntegro e sofrido Tato (Matheus Abreu) resultou em um ótimo casal, sendo necessário destacar o impagável Roney (Lúcio Mauro Filho) compondo essa família inusitada. Até mesmo o fofo Danilo Castro parecia entender as cenas, transmitindo as emoções de Tonico. Tina representou a dificuldade em lidar com o preconceito racial e social da mãe, Mitsuko (Lina Agifu), que não tolerava o seu namoro com Anderson, resultando em várias discussões feias. Ellen também passou por uma avalanche de preconceito quando ganhou uma bolsa no colégio particular administrado pelos ambiciosos Edgar (Marcello Antony) e Malu (Daniela Galli), mas conseguiu vencer o medo graças a Jota (Hall Mendes), amigo igualmente nerd e apaixonado por computação, que virou seu namorado. E Benê sempre precisou lidar com seu jeito diferente de ser e sua dificuldade de sociabilização acabou amenizada graças ao novo laço de amizade com as quatro amigas que conheceu no metrô e com Guto (Bruno Gadiol), que depois de muito tempo e convivência virou seu fixante/namorado.

Já Lica foi a protagonista que mais enfrentou reviravoltas em sua vida. Inconsequente e típica adolescente rebelde, protagonizou vários embates com o pai, levando até uma bofetada dele em pleno pátio da escola. Nunca tolerou a madrasta, Malu, desde que descobriu o caso dela com Edgar, culminando no término do casamento do diretor do colégio com Marta (Malu Galli). Apesar de sempre cultivar um relacionamento melhor com a mãe, também teve suas diferenças com ela, principalmente quando mergulhou no mundo das drogas, lícitas e ilícitas. A menina exagerou no álcool, fumou e ainda quase morreu durante uma overdose, após uma de suas muitas festas realizadas em seu apartamento de luxo. Teve uma relação de idas e vindas com o “gente boa” Felipe (Gabriel Calamari), mas iniciou esse relacionamento de forma equivocada: o usando para magoar Clara (Isabela Scherer), quando descobriu que a então melhor amiga já sabia do caso dos pais e que eram na verdade irmãs.

A filha de Marta ainda foi uma das responsáveis pelo rompimento mais grave da amizade das “Five”, uma vez que beijou Deco (Pablo Morais) em uma balada, sem se importar com o fato do rapaz ser o pai de Tonico e, na época, fruto da paixão da amiga. A descoberta dessa traição acabou gerando uma briga generalizada, expondo em cadeia as mágoas acumuladas de todas as protagonistas. Lica também se descobriu bissexual ao longo da trama, iniciando uma deliciosa relação com Samantha (Giovanna Grigio), menina tão atirada e bem resolvida quanto ela. O casal lésbico logo ganhou torcida e o autor soube desenvolvê-lo com coragem e competência, não se privando de momentos delicados e bonitas cenas de beijo. Os pares “Gunê”, “Jottellen”, “Keyto” e “Limantha” conquistaram o telespectador e vale citar o casal “Felica”, na época em que Lica esteve com Felipe.

Mas a temporada também teve espaço de sobra para os coadjuvantes, tão bem construídos quanto os principais. As piriguetes K1 (Talita Younan) e K2 (Carol Macedo) se destacaram desde o começo e mesclaram bem vilania, humor e drama. As duas eram cruéis com Benê e nunca perdoaram a gravidez de Keyla (que era a K3 no passado). Aos poucos, porém, foram se mostrando humanas e tendo seus conflitos explorados. Katerine era assediada sexualmente pelo padrasto e esse conflito foi um dos melhores da trama, destacando o talento da atriz. Katiane, por sua vez, foi ficando mais obsessiva por Tato, criando até uma falsa gravidez para “prendê-lo” e tirá-lo de Keyla. Além delas, é preciso citar o inconsequente e boa praça MB (Vinicius Wester), namorado de K1, que acabou fugindo dos problemas familiares envolvendo o pai corrupto bebendo cada vez mais. O alcoolismo dele, todavia, foi abordado de forma superficial e merecia mais ênfase. O tímido Juca (Mikael Marmorato), o descolado Fio (Lucas Penteado) e o dúbio Moqueca (Felipe Hintze) foram outros excelentes tipos da história. Até mesmo os pequenos Davi Souza (Julinho) e Julie Kei (Telminha) brilharam. Já a chegada de Luis Galves, vivendo o corajoso Gabriel, engrandeceu ainda mais o time na reta final, valorizando a questão em torno da homofobia.

Os atores mais experientes não ficaram muito atrás dos jovens. Tiveram um espaço merecido, sendo peças fundamentais para o andamento do roteiro. Lina Agifu foi um dos maiores destaques na pele da dúbia Mitsuko, médica extremamente ética e responsável, mas ao mesmo tempo racista e com preconceito social. Os embates entre ela e Tina eram ótimos, valorizando as intérpretes. A descoberta de um câncer na reta final acabou sendo um bom clichê para humanizá-la um pouco mais, melhorando a sua relação com as filhas e o marido (Noboru – Carlos Takeshi, muito bem). Ana Flávia Cavalcanti e Mouhamed Harfouch formaram um adorável casal e os educadores Dóris e Bóris esbanjaram sintonia em cena, protagonizando várias cenas excelentes. O já citado Lúcio Mauro Filho fez um carismático Roney Romano, enquanto Aline Fanju emocionou e divertiu com sua alegre Josefina, mãe de Benê e Julinho — formando um entrosado par com Roney. Daniela Galli defendeu com talento a odiável Malu, Marcello Antony convenceu como Edgar, Roberta Santiago se saiu bem como Lena e Ju Colombo encantou com a simpática Das Dores. Ed Lopez Dassilva teve poucas falas, mas fez de Valdemar um tipo hilário. E Malu Galli é sempre um nome que engrandece qualquer elenco – sua íntegra Marta foi apaixonante.

Os inúmeros temas relevantes também merecem menção. Todos usados em prol do roteiro, evitando uma abordagem panfletária e chata. A valorização do ensino público foi exposta com maestria através da escola Cora Coralina, que enfrentou muitos percalços, como falta de recursos, superlotação, alunos inconsequentes (vide a entrada de Dogão – Giovanni Gallo), entre outros problemas. A questão da escola particular mereceu espaço, havendo um paralelo interessante com a pública, principalmente quando Malu e Edgar resolveram priorizar os lucros, deixando de lado a qualidade do ensino. O racismo teve um tratamento primoroso através de Fio, Ellen e Anderson, enquanto o assédio sexual ganhou contornos densos com o drama de K1. A homofobia em torno de Gabriel mereceu outra boa abordagem, assim como o preconceito em cima da relação de Lica e Samantha. A dificuldade que uma gravidez na adolescência provoca na vida de uma estudante foi outro acerto – além da questão com a obesidade. Enfim, não faltou importante assunto no enredo.

Entretanto, nem tudo foi perfeito. A trama teve algumas falhas que precisam ser citadas. A Síndrome de Asperger, grau leve de autismo sofrido por Benê, não teve o tratamento adequado. A explicação para essa diferenciação da personagem só veio na última semana, quando a menina contou para o preconceituoso pai o que ela tinha — em uma cena emocionante e irretocável de Daphne Bozaski. Guto e suas melhores amigas, por exemplo, ficaram sem saber. Todas essas cenas seriam ótimas, mas acabaram não acontecendo. O excesso de foco no triângulo Keyla, Tato e Deco cansou e durou mais do que deveria. Poderiam ter explorado mais a morte da mãe da menina, pois o público só ficou sabendo um pouco da característica da finada esposa de Roney no penúltimo capítulo, quando Aldo deu o violão dela para a nora. O alcoolismo de MB, como já mencionado, acabou na superficialidade e merecia ser melhor desmembrado — a tentativa de suicídio do personagem na última semana, por exemplo, resultou em uma cena ótima; todavia, ganharia maiores contornos caso essa questão tivesse um foco maior. A automutilação de Clara (Isabela Scherer) foi outro caso que ficou devendo. Ela sofria nas mãos de Malu e começou a se ferir para “se punir”, mas a situação ficou em voga apenas por alguns dias, sumindo logo depois.

Apesar desses deslizes, o conjunto se mostrou muito feliz. E a reta final se mostrou repleta de ação e emoção, honrando tudo o que foi apresentado desde a estreia. O penúltimo capítulo, com Benê em pânico diante de um incêndio provocado por mascarados intolerantes no Cora Coralina, tirou o fôlego de quem assistia, resultando no melhor gancho da temporada. Já o último capítulo primou pela emoção com o resgate de Benedita e o parto de Dóris, realizado pelas cinco protagonistas, relembrando o primeiro encontro emblemático das “Five” na estreia dessa saga apaixonante. Keyla dessa vez não estava parindo e, sim, ajudando Lica, Benê, Ellen e Tina, que viraram novamente “médicas” por alguns minutos, trazendo os gêmeos da diretora à vida. Todos os diálogos e movimentos eram iguais ao do primeiro capítulo. Impossível não ter se arrepiado vendo.

O pedido de desculpas de Mitsuko a Anderson também emocionou, destacando Lina Agifu, Ana Hikari, Juan Paiva, Ju Colombo, Carlos Takeshi e Roberta Santiago. Já o soco que Bóris deu em Edgar e a humilhação pública de Malu lavaram a alma do público, assim como o momento em que Lica humilhou o pai. Vale citar ainda as lindas cenas de beijo dos casais da trama, expondo a química entre Benê e Guto, Jota e Ellen, Keyla e Tato, e Lica e Samantha. O abraço que Benê deu em Josefina foi outro instante sensível, valorizando Daphne Bozaski e Aline Fanju. A sequência final fechou a temporada com chave de ouro, mesclando emoção e nostalgia. O diálogo das cinco protagonistas, após uma passagem de tempo, sensibilizou e a entrada do quinteto na última balada da trama foi arrebatador. Um misto de alegria e tristeza se fez presente. Era o fim, infelizmente.

Malhação – Viva a Diferença foi um marco na história da trama adolescente. Um verdadeiro divisor de águas. Cao Hamburger, Paulo Silvestrini e toda a equipe (incluindo os roteiristas Mário Vianna, Jaqueline Vargas, Bruno Lima Penido, Luciana Pessanha, Vitor Brandt, Renata Martins, Charles Peixoto e Carolina Ziskind) estão de parabéns pelo êxito desse trabalho. Sucesso de público e crítica — a média de 21 pontos é a maior desde 2008 –, a temporada revelou vários talentos promissores, abordou vários assuntos com propriedade, emocionou, divertiu, e conquistou através de um enredo que priorizou a força da amizade e as peculiaridades de cada um, com direito a qualidades e defeitos. Foi fácil se identificar com todos aqueles personagens tão bem construídos e cativantes. Uma história que fez a diferença e jamais será esquecida.


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Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor