A evolução do comportamento do público já deixou bem claro que o galã de uma novela da década de 80 pode se tornar quase um vilão em 2021. Por isso, a teledramaturgia é tão estudada e apreciada por vários historiadores, além dos tradicionais noveleiros. Há até ótimas monografias de faculdade sobre o tema. A atual reprise de Laços de Família, em plena reta final, por exemplo, expõe uma completa mudança do olhar do público diante do personagem Pedro, interpretado por José Mayer.

O sucesso de Manoel Carlos vem repetindo o êxito no Vale a Pena Ver de Novo. A audiência está elevada. E com todo mérito. É um dos melhores trabalhos do autor, além de ser um dos mais lembrados com carinho pelo telespectador. Porém, Pedro é o tipo que pior ‘envelheceu’ no enredo. A expressão ‘envelheceu mal’ virou uma espécie de ‘meme’ na internet justamente por mostrar como determinadas situações, antes vistas como naturais, soam problemáticas hoje em dia. E pouco se salva deste perfil criado por Maneco.

O administrador do Haras de Alma (Marieta Severo) é um sujeito solitário e rabugento. Transborda grosseria com todos ao seu redor, principalmente com as mulheres. Chegou a ter um casamento relativamente duradouro, mas acabou se divorciando. Os cavalos são sua única paixão.

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Nem mesmo quando tem sentimentos por alguma mulher consegue evitar que seu lado agressivo seja exposto. O intuito do autor era mostrar uma pessoa que era movida pelo instinto, quase tão irracional quanto os animais. Porém, o resultado foi catastrófico aos olhos de hoje.

O contexto mais inacreditável é a relação entre Pedro e Cintia (Helena Ranaldi). O administrador e a veterinária têm uma temperatura sexual elevada e há um claro jogo de gato e rato que costuma funcionar na ficção. Mas há uma pequena linha que é ultrapassada em vários instantes do enredo, resultando em situações de abuso sexual e até estupro. A própria Cintia chega a admitir que foi forçada em uma relação flagrada por Iris (Deborah Secco). E em uma discussão com Pedro, o sujeito não só admite que a estuprou como diz que tem o direito de estuprá-la quantas vezes quiser – a parte da cena foi cortada na reprise por razões óbvias.

O relacionamento do personagem com Íris, sua prima de segundo grau, também desperta ojeriza. Pedro a trata como uma criança, ignorando o desejo que a garota de mais de 18 anos sente por ele. Ainda a agride diversas vezes, como se fosse uma espécie de ‘pai educando a filha’. Em uma das sequências mais chocantes, o empregado de Alma se choca ao vê-la de maquiagem e lava seu rosto à força, ainda puxando seus cabelos para dar um banho. Depois bate na bunda de Íris várias vezes como se estivesse ‘dando palmadas educativas’. E o contexto fica ainda pior quando se lembra do último capítulo: os dois terminam juntos e com ela grávida.

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A forma como Pedro vai para cima das mulheres é outro fato que incomoda. Sua insistência em reconquistar Helena (Vera Fisher), um ex-amor do passado com quem tem uma filha (Camila – Carolina Dieckmann), remete a de um perseguidor (o chamado ‘stalker’).

É verdade que a protagonista fica balançada com o ex, mas na época todos os passos do personagem eram enaltecidos pelo público, principalmente o feminino. Era praticamente um ‘galã’ da novela. Até pela figura de seu intérprete.

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Aliás, é impossível não lembrar do escândalo envolvendo José Mayer em 2017, quando seu assédio a uma figurinista veio à tona e acabou demitido da Globo. Parece até que o ator incorporou o comportamento de Pedro na sua vida, talvez pela ‘normalização’ deste tipo de atitude durante tantas décadas. E nem se trata de uma defesa a ele, mas de uma dupla crítica.

Laços de Família é um novelão da melhor qualidade e são vários os acertos do clássico de Manoel Carlos. Mas há muitas situações que se transformaram em problemas graves com o passar dos anos e o desenvolvimento do Pedro é um deles. Ao menos serve para uma boa análise comportamental da sociedade.

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Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor