Por que a Globo não valoriza Lícia Manzo?
27/02/2018 às 10h00
O Brasil sempre teve grandes autores de novelas. Tanto que o folhetim virou uma das grandes marcas do país, sendo referência em vários lugares do mundo. A Globo exporta produções com grande facilidade e as histórias já foram traduzidas em diversos idiomas. Uma das receitas deste sucesso é a pluralidade do time dos escritores. Cada um tem características específicas, o que implica na identidade de sua obra. E, mesmo tendo escrito apenas duas novelas, pode-se afirmar que Lícia Manzo vem se destacando neste cenário da teledramaturgia.
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A autora (que também é atriz, diretora, produtora e roteirista) já colaborou em vários episódios do extinto Sai de Baixo (1996-2002), e escreveu, em parceria com colegas, uma temporada de Malhação (2003-2004) – justamente a de maior sucesso do seriado adolescente (conhecida como a “fase da Vagabanda”). Estreou como titular na linda série Tudo Novo de Novo, em 2009, sendo supervisionada por Maria Adelaide Amaral. Mas foi em 2011 que Lícia se tornou mais conhecida do grande público em virtude da impecável A Vida da Gente, sua primeira novela. Ela emocionou o telespectador com uma história extremamente delicada e dramática. E se ainda havia alguma dúvida do seu talento, a mesma foi aniquilada depois de quatro anos. Afinal, a escritora voltou a sensibilizar com a sensível Sete Vidas, em 2015.
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Não é qualquer autor que consegue retratar a alma humana tão bem quanto Lícia. Seu estilo lembra muito o de Manoel Carlos, uma vez que também costuma utilizar as situações cotidianas para desenvolver a história e seus personagens são quase todos de classe média. Outra semelhança é a ausência de núcleo cômico, focando somente nos dramas.
Porém, a autora tem uma sensibilidade maior para a abordagem das relações. E a humanidade presente em cada perfil acaba com qualquer tipo de maniqueísmo, o que provoca uma maior identificação, tanto nas brigas e nos sofrimentos, quanto nos envolvimentos amorosos. Não há o lado certo ou o errado e sim acertos e equívocos de todos.
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Em A Vida da Gente, a escritora arrebatou o público com a envolvente história de Ana (Fernanda Vasconcellos), Manu (Marjorie Estiano) e Rodrigo (Rafael Cardoso). As duas eram irmãs e cúmplices, enquanto o rapaz era praticamente um irmão de criação, pois cresceu com elas. Ele e Ana acabam se apaixonando, mas não conseguem ficar juntos por causa da desavença dos pais (Eva – Ana Beatriz Nogueira, mãe dela, e Jonas – Paulo Betti, pai dele). A menina engravida e se vê obrigada pela mãe a ter o bebê fora do país para não prejudicar sua carreira no tênis. Ana só conta a verdade para Manu e tempos depois volta ao Brasil com a criança, resolvendo fugir com a irmã (que sempre foi rejeitada por Eva), após inúmeras desavenças familiares.
Só que um grave acidente de carro na estrada causa uma tragédia: a tenista entra em coma e Manu fica responsável pela criação de Júlia ao lado de Rodrigo e Iná (Nicette Bruno), sua doce avó. Essa aproximação com o irmão de criação, que quase foi seu cunhado, faz surgir um lindo sentimento entre eles. Os dois constroem uma bela história de amor através da dor da “perda” e da cumplicidade. Mas, tudo vira de cabeça para baixo quando Ana acorda do coma. A história foi impecável e avassaladora. Foi impossível não mergulhar naquele enredo e não se colocar no lugar de cada um. A autora conseguiu criar uma trama lindíssima e repleta de dramaticidade. Não por acaso, o público se viu envolvido e houve uma divisão de torcidas em relação aos casais, provocando várias discussões sobre as atitudes dos personagens. Vale citar que a novela foi exportada para 113 países até agora e está em terceiro lugar na lista de mais vendidas da Globo – atrás apenas de Avenida Brasil, de 2012 (132), e Caminho das Índias, de 2009 (118).
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Já em Sete Vidas, Lícia optou por mostrar a construção da relação entre sete irmãos, onde cinco deles eram frutos de uma inseminação artificial. E o doador era justamente um sujeito repleto de complexidades, que apresentava sérias dificuldades de se relacionar com o outro. Todos aqueles personagens pareceram tão familiares que foi praticamente impossível não ter se envolvido com aquela história e viajado junto com aqueles perfis tão distintos e semelhantes ao mesmo tempo. Miguel (saudoso Domingos Montagner em seu melhor papel), Lígia (Débora Bloch), Júlia (Isabelle Drummond), Pedro (Jayme Matarazzo), Bernardo (Ghilherme Lobo), Laila (Maria Eduarda de Carvalho), Luís (Thiago Rodrigues), Felipe (Michel Noher) e o bebê Joaquim formaram uma família que foi se juntando aos poucos, à medida que iam se conhecendo e enfrentando seus problemas. A saga dessas pessoas foi arrebatadora e muito comovente.
Assim como na trama anterior da autora, houve um triângulo amoroso entre irmãos (Júlia, Pedro e Felipe) que dividiu torcidas, uma vez que santos e pecadores inexistiam. Todos eram culpados e inocentes, enquanto tentavam driblar as armadilhas que a vida tinha preparado para eles. Toda a angústia vivida por Miguel pôde ser sentida ao longo da novela e quando o protagonista conseguiu finalmente se livrar dela, dando um fim nas lembranças traumáticas de seu passado, se viu livre para ir atrás do seu merecido final feliz com seu grande amor e seus sete filhos. As cenas finais, com todos reunidos no barco do navegador e protagonizando momentos de pura intimidade familiar, foram emocionantes e encerraram a trama de uma forma linda. Desfecho tão delicado, aliás, quanto o de A Vida da Gente, mostrando Ana, Lúcio (Thiago Lacerda), Manu, Rodrigo e Júlia (Jesuela Moro) passeando felizes, de mãos dadas, após tantos conflitos pesados e dramas complicados.
Então, após dois folhetins tão primorosos, fica a dúvida: por que a Globo não valoriza essa autora? O questionamento se faz necessário, pois Lícia estava escrevendo Jogo da Memória, sua nova novela que iria ao ar às 23h em 2017. Porém, Silvio de Abreu, atual diretor de teledramaturgia da emissora, resolveu cancelar subitamente a obra, alegando não ter estrutura para se sustentar por 90 capítulos (esse era o número estabelecido por ele para a produção da faixa em 2017, agora chamada de “supersérie”). Cancelamentos ou mudanças de planos são comuns em qualquer empresa ou canal, todavia, o folhetim estava em processo de escalação de elenco e todos foram pegos de surpresa. O pior é que Os Dias Eram Assim, trama substituta, se mostrou limitada e (ironicamente) sem fôlego para 90 capítulos. Após várias informações desencontradas, Silvio declarou que o enredo da autora havia sido transformado em minissérie e iria ao ar em 2018. Mas, a produção acabou engavetada e ninguém sabe se sairá do papel ou não.
Desde essa notícia, o nome de Lícia não vem sendo colocado em nenhuma faixa. Ou seja, já há uma longa fila em todos os horários da emissora e ela não aparece em nenhuma. Nem às 18h, nem às 19h, nem às 23h e muito menos às 21h. Pelo menos até 2019. Mas qual a razão? O que leva uma emissora a deixar de lado uma profissional responsável pela terceira novela mais vendida da empresa? Competência ela já mostrou ter de sobra. Será que não há espaço para seu talento nos próximos anos? Nem em uma série ou minissérie? Realmente é algo que não dá para entender, ainda mais em um momento onde todos os escritores da Globo vêm sendo mais exigidos, ficando bem menos tempo parados. Nesta semana, a jornalista Patrícia Kogut noticiou que a escritora já concluiu os 51 capítulos de Jogo da Memória e entregou para a empresa. Também começou a preparar uma nova sinopse. Porém, tudo segue sem qualquer perspectiva.
Lícia Manzo é uma autora que consegue explorar todas as complexidades das relações sem descambar para o exagero e nem para o maniqueísmo, onde existe um lado certo e outro errado. Ela expõe a alma humana com extrema competência e seu principal método é a emoção. A Vida da Gente e Sete Vidas comprovaram não só o talento da escritora – que cria diálogos memoráveis -, como também o seu dom de sensibilizar através das sutilezas de seus personagens e do imenso realismo de suas histórias. Resta torcer para que não fique afastada por muito mais tempo e que Silvio de Abreu se dê conta disso, pois o público sempre necessita de obras tão bonitas quanto as suas.