Após o sucesso de “Por Amor” (1997), Manoel Carlos precisava encarar dois difíceis desafios: emplacar uma outra grande novela no horário nobre e ainda substituir o fenômeno “Terra Nostra” (1999), de Benedito Ruy Barbosa, que estava no ar até o final de maio. Apesar da nada simples nova empreitada, a missão foi cumprida com louvor através da envolvente e bem escrita “Laços de Família”, folhetim que completa 20 anos hoje —– estreou no dia 5 de junho de 2000 e ficou no ar até dia 2 de fevereiro de 2001. Foram 209 capítulos de um dramalhão de qualidade.

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Dirigida por Ricardo Waddington, a novela conta a história do amor incondicional que uma mãe tem por sua filha. A mãe foi mais uma Helena do autor e interpretada muito bem por Vera Fisher. Já a filha, a mimada Camila, foi vivida por Carolina Dieckmann. A trama, ambientada no bairro do Leblon, começa às vésperas do Réveillon de 2000, com um pequeno acidente de trânsito envolvendo a protagonista e Edu (Reynaldo Gianecchini estreando na televisão), um médico recém-formado. Os dois têm uma discussão, mas depois vivem um intenso romance, que sofreu forte rejeição da tia do rapaz (Alma – Marieta Severo) por causa da diferença de idade —- ele era vinte anos mais novo que ela.

Helena é uma empresária bem-sucedida, de 45 anos — que tem outro filho além de Camila (um rapaz íntegro chamado Fred – Luigi Barricelli) —, sócia de uma clínica de estética, e tem a fiel escudeira Yvete (Soraya Ravenle) como melhor amiga e confidente.

O culto Miguel (Tony Ramos) —– dono da livraria Dom Casmurro e pai de dois filhos: a rebelde Ciça (Júlia Feldens) e o simpático Paulo (Flávio Silvino), que apresenta graves sequelas neurológicas após um desastre de carro que vitimou a esposa de Miguel —– nutre uma paixão platônica pela protagonista e foi justamente em frente à livraria que Helena e Edu se conheceram por meio do acidente de trânsito.

Inicialmente, a história é voltada para o preconceito que Helena e Edu enfrentam diante da sociedade. E a principal opositora é a arrogante Alma, tia do rapaz, uma ricaça ironicamente casada com um homem bem mais novo (o galinha Danilo – Alexandre Borges). A poderosa mulher é proprietária de um haras, entregue aos cuidados de Pedro (José Mayer), homem rústico e primo de Helena, que é alvo da obsessão da ninfeta Íris (Deborah Secco), filha de Ingrid (Lilia Cabral) e Aléssio (saudoso Fernando Torres), pai de Helena.

A trama sofre uma primeira virada quando Camila e Edu começam a se envolver. O choque de ver a filha e o namorado apaixonados deixa Helena transtornada e a relação familiar sofre um forte baque, deixando o afeto de lado, cedendo lugar a constantes conflitos e embates pesados. As brigas entre mãe e filha eram fortes e a arrogância de Camila despertou a fúria do público que ficou do lado de Helena, repetindo uma situação que viraria uma constante nas obras de Maneco: as filhas das Helenas serem sempre odiadas, vide Joyce (Carla Marins), de “História de Amor” e Maria Eduarda (Gabriela Duarte), de “Por Amor”.

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Outra situação ótima que o conflito gerou foi o festival de ataques de Íris. A debochada garota passou a torturar Camila psicologicamente depois que tomou conhecimento do romance com Edu. Isso porque a jovem passou a morar com Helena depois de duas tragédias em sua vida: a morte do pai (em uma cena antológica protagonizada por Fernando Torres e Lilia Cabral —- quando Aléssio falece sentado em uma cadeira, diante de sua esposa, deixando a bengala cair no chão) e o falecimento da mãe, vítima de um assalto —- mais um momento chocante e emblemático do enredo.

Após muitos conflitos e brigas, Helena decide se afastar de Edu para que a filha seja feliz com seu ex. Para isso, aceita as investigas de Miguel e inicia um bonito romance com ele. Camila se casa com Edu, engravida e a felicidade domina a trama. Entretanto, uma nova virada promove uma sucessão de cenas emocionantes no folhetim de Manoel Carlos: Camila perde o bebê que esperava e descobre que tem leucemia. A partir de então um ciclo dramático se inicia, focando no amor incondicional que uma mãe tem por sua filha.

A sequência da raspagem dos cabelos de Camila, ao som de ‘Love by grace’ (Lara Fabian), entrou para a história da teledramaturgia e colocou Carolina Dieckmann em outro patamar na carreira. A cena antológica foi brilhantemente interpretada pela atriz e emocionou o Brasil. Todo o tratamento da doença foi minuciosamente explorado pelo autor e o grau de verossimilhança envolveu o telespectador do início ao fim.

A única chance de cura da personagem é um transplante de medula, mesmo depois de várias sessões de quimioterapia. O doador em potencial seria Fred, seu irmão. Porém, todos descobrem que eles não eram filhos do mesmo pai. Isso porque Helena mantinha em segredo o relacionamento que teve com seu primo, Pedro, anos atrás —- o verdadeiro pai de Camila. Após a revelação, a protagonista abre mão mais uma vez da sua felicidade, se afasta de Miguel, e se envolve com Pedro para tentar engravidar e gerar um doador para a filha. Apesar da idade avançada para uma gravidez, Helena consegue atingir seu objetivo e a bebê (chamada de Vitória) nasce, realizando assim o transplante com sucesso.

Além da trama central emocionante e muito bem desenvolvida por Maneco, a novela apresentou várias outras histórias interessantes e que emplacaram. Por exemplo, a vida de Capitu (ótima Giovanna Antonelli), uma prostituta que sustenta os pais (Pascoal – Leonardo Villar e Ema – Walderez de Barros), o filho e paga sua faculdade com o dinheiro dos programas. A personagem ainda se envolve com Fred, despertando a fúria da arrogante Clara (Regiane Alves), esposa do filho de Helena. Destaque também para os vilões Orlando (Henrique Pagnocelli), ex-cliente obcecado por Capitu, e Maurinho (Luiz Nicolau), pai do seu filho. Sem dúvida, um dos melhores núcleos paralelos do folhetim. Capitu virou a mocinha da trama.

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Havia também o romance quente protagonizado por Pedro e pela veterinária Cíntia (Helena Ranaldi), que transbordava química. Todavia, a situação renderia uma avalanche de críticas atualmente em virtude do desenvolvimento machista de Maneco. O domador de cavalos muitas vezes agarrava a colega à força. Ou seja, contextos que seriam enquadrados como assédio e abuso hoje. Outra trama que renderia uma forte rejeição era a comicidade de Danilo, o mulherengo marido de Alma, que engravida a empregada (Rita, estreia de Juliana Paes nas novelas). Todas as cenas colocadas como engraçadas em 2000 seriam vistas como assédio moral e sexual. A solução do autor também merece críticas: a doméstica morre no parto e Alma cuida da criança com Danilo. Final mais machista impossível. Muitos olhares mudaram em 20 anos, o que demonstra uma evolução da sociedade. Já o enredo da impotência de Viriato (Zé Victor Castiel), marido de Yvete, continuaria rendendo boas sequências, embora sem o mesmo humor da época. Hoje em dia serviria como alerta para homens que sofrem do mesmo problema.

O elenco era repleto de grandes nomes e todos os atores citados brilharam na história, inclusive Vera Fisher, que honrou a confiança do autor para viver a melhor Helena escrita por ele. Além dos profissionais já mencionados, é preciso destacar também Thalma de Freitas, Umberto Magnani, Xuxa Lopes, Eliete Cigarini, André Valli, Beatriz Lyra, Yara Lins, Lionel Fisher, Manoelita Lustosa, Alexandra Richter, Lavínia Vlasak e Marly Bueno. Vale lembrar ainda a memorável trilha sonora recheada de músicas que viraram a marca da história, como a já mencionada “Love By Grace”, além de “Man I Fell Like a Woman” (Shania Twain), “Perdendo Dentes” (Pato Fu), “Corcovado” (a abertura com Tom Jobim, João Gilberto, Astrud Gilberto e Stan Getz), “Balada do Amor Inabalável” (Skank), “Spanish Guitar” (Toni Braxton), “Save Me” (Hanson), “Devolva-me” (Adriana Calcanhoto), entre tantas mais.

“Laços de Família” foi uma das novelas mais dramáticas e envolventes de Manoel Carlos. Quase todos os conflitos familiares foram brilhantemente bem elaborados e desenvolvidos com competência pelo autor, que estava inspirado quando produziu essa obra de tanta qualidade. A produção está entre os 50 títulos no catálogo que a Globoplay, serviço de streaming da Globo, passou a disponibilizar em junho. Em breve a produção poderá ser vista na íntegra. Mas, para comemorar esses vinte anos, a emissora deveria reprisá-la pela segunda vez no “Vale a Pena Ver de Novo” (a primeira foi em 2005 e a terceira no Viva em 2016), depois do término de “Êta Mundo Bom!”.

SÉRGIO SANTOS é apaixonado por televisão e está sempre de olho nos detalhes, como pode ser visto em seu blog. Contatos podem ser feitos pelo Twitter ou pelo Facebook.

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Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor