Onça, sucuri e cramulhão: Pantanal conquista o público com realismo fantástico
05/06/2022 às 18h16
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Muitos são os fatores para o sucesso de Pantanal: produção de qualidade (elenco, texto, direção, etc.), resgate de uma trama rural no horário nobre, memória afetiva do público e uma das melhores histórias de nossa televisão.
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Aliada à história, outro fator que ajuda explicar o êxito da novela é a sedução pela fantasia, o convite à desopilação da realidade por meio do realismo fantástico do universo de Benedito Ruy Barbosa.
Pantanal trouxe de volta o ambiente rural mítico brasileiro, do caboclo gentil, viril e valoroso (perpetuado na Literatura e até na televisão, por Irmãos Coragem, novela de Janete de Clair, de 1970-1971), associado ao folclore e às lendas das matas e sertões, temática já bastante explorada por Benedito em sua obra.
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A trama trata a dicotomia bem-mal por meio do temor dos personagens a Deus e ao Diabo e do confronto entre a religiosidade rural e o ceticismo urbano (representado pelo núcleo carioca) – no qual se privilegia a religiosidade em detrimento do ceticismo.
Enquanto Filó reza para sua santa e Trindade é possuído pelo cramulhão, Irma caçoa das histórias que ouve sobre a mulher que vira onça e o velho que vira sucuri.
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Nestes pontos extremos, está o meio termo: disciplinado pelo Velho do Rio, Jove passa pela transformação interna do cético urbano ao peão que finca raízes para se estabelecer na terra.
Depois de tantas tramas urbanas carregadas de problemáticas sociais exaustivas, o público se encanta com a fantasia proposta por Benedito Ruy Barbosa, muito eficiente ao embutir complexidade social na simplicidade rural.
Sem deixar de reivindicar as demandas do homem do campo, o texto, adaptado por Bruno Luperi, costura as tramas de forma envolvente e sedutora. Algo que faltou à última tentativa da Globo na incursão ao realismo fantástico: a novela O Sétimo Guardião, de Aguinaldo Silva.
Semana #10
Sobre a décima semana, quero comentar duas sequências.
Machismo
Na cena em que Tadeu apresenta Guta como namorada a Zé Leôncio, o pai do peão destrata a garota gratuitamente, tentando invalidá-la por seu comportamento pregresso, em uma demonstração do mais puro machismo execrável: “Antes dele, você gostou do Joventino, do Arcides, de sei lá mais quem…”
Depois, Guta desabafa com Jove:
“Eu acabei de ser chamada de vagabunda por um cara que grita aos quatro ventos as aventuras e o filhos que ele fez pela vida. (…) Eu tô cansada de ver os homens ditando o rumo do mundo, de ser calada, de ser oprimida, e todo mundo fingir que tá tudo bem.”
Um homem com o perfil de Zé Leôncio talvez nunca consiga desconstruir o seu machismo. Porém, faltou ele ouvir poucas e boas. Particularmente fiquei incomodado com o fato de ninguém defender a garota, nem Jove, nem Tadeu, nem Filó, que estavam presentes.
PIB que não beneficia o pobre
No capítulo de sábado, o autor levanta uma questão importante quando o latifundiário Zé Leôncio critica o desmatamento feito com a finalidade de plantar ou de criar gado.
Seu filho Jove concorda: “Para encher o bolso de meia dúzia de privilegiados”.
Zé Lucas ri: “É engraçado ouvir isso da boca de um deles. Deve ser muito fácil criticar o resto do país quando se nasce com a burra cheia”.
Jove afirma que está criticando o modelo econômico e Zé Lucas argumenta que esse modelo alimenta o povo e elevou o PIB do país.
Jove: É, mas gera cada vez menos emprego, menos riqueza pro povo. A gente exporta o nosso bem mais precioso que é a água pra quê? Pra plantar comódite?.
Com os ânimos alterados, a discussão parte para outro campo:
Lucas: Acho estranho ouvir isso da boca de um sujeito que nunca teve carteira assinada na vida.
Jove: Eu tive tempo pra estudar, cara. Só isso.
Lucas: Tô vendo que você teve tempo de sobra. Quando você estudava eu tive que trabalhar.
Jove: Eu tive tempo e entendi que o sistema tá vendendo as nossas riquezas a preço de banana.
Lucas: Banana é barato, mas pra quem tem fome, enche barriga.
Jove: Enche! A curto prazo né. A longo prazo, é um caminho sem volta.
Lucas: Só diz isso quem nunca teve um prato vazio na frente.
Jove: Falou! Então não vou dar mais minha opinião, porque nunca passei fome, né!
Para pensar.