Quem acompanha O Rei do Gado (1996) no Vale a Pena Ver de Novo deve ter estranhado uma longa sequência envolvendo o senador Caxias (Carlos Vereza) e sua filha Liliana (Mariana Lima). Nas cenas, exibidas há poucos dias, o político e sua herdeira passeavam por Brasília ao som de Admirável Gado Novo, na voz de Zé Ramalho.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
O estranhamento se deu porque a canção foi executada praticamente na íntegra, enquanto Caxias e Liliana apenas caminhavam. Para dar alguma ação nas cenas, os atores até tiveram um momento “Os Trapalhões”, quando a pasta do senador se abre e os papéis começam a voar. Atrapalhados, Caxias e Liliana tentavam recolher o material que o vento insistia em carregar.
Claramente, esta é apenas uma das sequências criadas para preencher o tempo dos capítulos. Isso porque O Rei do Gado, nesta fase, passa a padecer com o mesmo problema visto em Pantanal (1990 e 2022), também escrita por Benedito Ruy Barbosa: a enorme “barriga”, aquele momento em que nada acontece na história.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Sem rumo
O Rei do Gado começou apoteótica. A primeira fase, até hoje, é considerada uma obra-prima da televisão brasileira. No entanto, o ritmo não se manteve na segunda fase, que chegou à sua metade sem ter muita história para contar. Após o desaparecimento de Bruno (Antonio Fagundes), que demora um mês para retornar, nada de novo acontece na novela.
A audiência da obra não chegou a ser afetada em sua primeira exibição, em 1996. No entanto, o público reclamava bastante da falta de ação da trama da novela da Globo. O Jornal do Brasil, em outubro daquele ano, ouviu 15 espectadores do folhetim, e todos foram unânimes ao declarar que a novela estava estacionada.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
LEIA TAMBÉM!
“Cochilo vendo a novela (…). Faltam acontecimentos. Quando há algum, como o sumiço de Bruno Mezenga, demora a se resolver”, reclamou a funcionária pública Vera Vasconcelos na matéria publicada em 26 de outubro de 1996.
Clipes musicais
Ainda segundo o Jornal do Brasil, as sequências que colocavam toda a trilha sonora para tocar eram indicadas pelo próprio autor da novela, que chegava a rubricar nos capítulos toda a letra das canções. Uma das cenas em questão mostrava Lia (Lavínia Vlasak) colocando um CD da dupla Pirilampo (Almir Sater) e Saracura (Sergio Reis) e ouvindo uma música inteira.
A dupla, aliás, protagonizou vários momentos assim. Os músicos executavam canções inteiras de seu repertório, enquanto imagens de bois correndo nos pastos enchiam a tela. Também era comum ver Liliana caminhando na praia ou apenas alisando a barriga de sua interminável gravidez com a voz de Daniela Mercury ao fundo…
Na época, O Rei do Gado também foi afetada em razão do estado de saúde de Benedito Ruy Barbosa. O autor, então com 65 anos, trabalhava sozinho e começou a atrasar a entrega dos capítulos.
Correria
Nos bastidores de O Rei do Gado, a tensão era constante. De acordo com uma matéria publicada pela Folha de S. Paulo em 22 de dezembro de 1996, produtores e atores da novela demonstravam cansaço pelo ritmo de gravações intenso, provocado pelo atraso dos capítulos.
“A gente recebe tudo em cima da hora, o que provoca um desgaste maior. Trabalhamos em dobro e não temos horário para sair. Quase todo dia saímos tarde”, contou uma integrante da produção à reportagem.
Até mesmo o cantor Orlando Moraes, marido de Gloria Pires, reclamou.
“Essa novela está uma brincadeira. Está muito atrasada. A Gloria chega em casa tarde, às nove, dez horas da noite. Hoje, ela saiu às 9h30 e deve voltar com gripe e ficou uma semana sem gravar”, apontou o marido da intérprete de Rafaela.
“Se o autor atrasa, é difícil recuperar, porque ele terá de escrever dois capítulos por dia e não é fácil. Os capítulos variam entre 30 e 40 paginas”, disse um funcionário da produção.
Para dar conta de colocar a novela no ar todos os dias, a Globo precisou correr. A produção de O Rei do Gado chegou a agendar gravações até aos domingos, que normalmente é o dia de folga da equipe. Tudo para que as festas de fim de ano não atrasassem mais ainda os trabalhos.
Estilo Benedito
As enormes “barrigas” fazem parte do estilo de Benedito Ruy Barbosa (foto acima). O autor é dono de grande sucessos, mas todas as suas novelas foram alvo de reclamações de espectadores, que ficavam irritados com a falta de ação.
Na TV Manchete, a primeira versão de Pantanal (1990) foi motivo de chiadeira justamente pela fase em que nada acontecia. O tempo dos capítulos, assim como em O Rei do Gado, também era preenchido por sequências musicais e paisagens.
Curiosamente, Bruno Luperi não evitou que o mesmo acontecesse no remake de Pantanal, produzido pela Globo em 2022. O neto de Benedito, que assinou a obra, manteve a fase de “barriga” da história de Juma (Alanis Guillen), o que incomodou os espectadores.
Outras novelas do autor passaram pelo mesmo problema. Renascer (1993), que deve ganhar um remake no ano que vem, também gerou reclamações. Terra Nostra (1999) e Esperança (2002) também foram bastante “barrigudas”.