O que esperar de uma produção espanhola (mais exatamente catalã), sem um grande orçamento, com elenco formado majoritariamente por adolescentes e tendo apenas um protagonista destacado?

Por essa descrição, poucas expectativas poderiam se formar na mente de um público cada vez mais exigente e plural, que cresce vertiginosamente em torno do amplo catálogo oferecido pela maior plataforma de streaming do mundo. Hoje, aliás, a Netflix é muito mais do que isso: tornou-se uma produtora de séries de sucesso absoluto, haja vista os impactos causados por House of Cards, Narcos, Orange is the new black, entre tantas outras.

Contudo, em meio a tantas produções aclamadas, existem aquelas que, mesmo sem a mesma popularidade, são boas pedidas para os que se dispõem a explorar os meandros da vasta gama de opções oferecida aos cerca de 100 milhões de usuários da Netflix, muitos deles atraídos mais recentemente por esse conteúdo exclusivo.

“Merlí”, objeto desta primeira coluna no TV História, seria somente mais um caso típico, não fosse por algumas instigantes peculiaridades que lhe tornam especial: exibida inicialmente pela TV3 (Televisió de Catalunya), a série rompeu as fronteiras ibéricas por meio da Netflix e passou a ser apreciada em outros países, incluindo o Brasil, somente no ano seguinte, quando teve a segunda temporada gravada e exibida (esta ainda permanece inédita por aqui). Para 2017, já foi anunciada a terceira e derradeira sequência de episódios (serão 39 ao final, 13 em cada temporada).

Definida tecnicamente como uma “comédia dramática”, a série é protagonizada pelo professor de Filosofia Merlí Bergeron (Francesc Orella), um problemático cinquentão que vive em Barcelona e recebe a difícil missão de educar o seu filho, Bruno (David Solans), já que a mãe do adolescente resolveu se mudar para a Itália. Às voltas com problemas financeiros agravados pelo desemprego, Merlí vai morar com a mãe, Carmina Calduch (Anna Barbany), uma veterana atriz de teatro famosa por ter protagonizado comerciais televisivos no passado.

Sem a prática de ser um pai em tempo integral, Merlí enfrenta dificuldades naturais para se aproximar do filho. Porém, aquilo que pode vir a ser a solução surge de forma inesperada, quando ele consegue uma vaga para trabalhar no Instituto Ángel Guimerá, uma escola pública, a mesma onde Bruno estuda.

Enfrentar uma turma de adolescentes é uma missão árdua para qualquer docente, mas Merlí a encara de forma tão heterodoxa que atinge a todos, atraindo amores e ódios com bastante intensidade logo na primeira temporada: enquanto muitos dos alunos o veem como um líder inspirador, os demais professores e o diretor demonstram perplexidade e incômodo com seus métodos nada convencionais. Um deles, em especial, torna-se um inimigo declarado: Eugeni Bosch (Pere Ponce), professor de Literatura e ferrenho defensor de uma relação em que docentes e estudantes são separados por uma rígida fronteira hierárquica. Merlí, portanto, representa tudo o que Eugeni repudia, mas nem mesmo ele poderia imaginar que o filósofo o incomodaria tanto, até mesmo em assuntos pessoais.

No início, Merlí batiza os seus alunos como “Os peripatéticos”, uma homenagem aos aprendizes de Aristóteles. Do segundo episódio em diante, os expoentes da Filosofia passam a ser os temas que inspiram os fios condutores das histórias: Platão, Maquiavel, o já citado Aristóteles, Sócrates, Schopenhauer, Foucault, Guy Debord, Epicuro, Hume e Nietzche são os principais. No entanto, essa viagem no tempo repercute para fora da sala de aula e se transforma em um exercício constante de reflexão sobre a vida: as conexões das aulas de Merlí com os problemas vivenciados em casa e na escola pelos alunos (divergências com os pais, dilemas ligados à sexualidade, brigas com os colegas etc.) são fatores fundamentais para a qualidade do enredo.

Como se pode deduzir por observação já a partir da abertura da série, Merlí é como uma mosca que perturba a zona de conforto de todos e, com base no exercício filosófico de questionar paradigmas, derruba padrões pré-estabelecidos e se coloca em uma sequência de situações inusitadas e inspiradoras.

Em breve, deveremos ter novos episódios de Merlí e seus discípulos com legendas traduzidas em português na Netflix. Um brinde aos peripatéticos!

JONAS GONÇALVES é um caçador de opções alternativas no catálogo da Netflix. Contatos podem ser feitos pelo Twitter: @JonasGoncalves. Ocupa este espaço quinzenalmente às quartas


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