Novela que terminava há 50 anos ganhou remake disfarçado na Globo
21/08/2023 às 13h48
Há 50 anos, a Globo exibia o último capítulo de Cavalo de Aço, única novela de Walther Negrão para o horário das oito. Seu desfecho foi exibido em 17 de agosto de 1973 no Rio de Janeiro, e em 21 de agosto do mesmo ano em São Paulo. Negrão foi escolhido para ocupar a faixa após sua bem-sucedida incursão às sete, com O Primeiro Amor (1972).
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
A promoção do autor propiciava um breve período de descanso para a dona do horário pós-Jornal Nacional, Janete Clair – que emendou sete folhetins. A trama, no entanto, padeceu com a interferência da Censura do regime militar e, anos depois, ganhou um “remake disfarçado”, Fera Radical, em 1988.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Justiceiro em ação
Estreia de uma quarta-feira, 24 de janeiro de 1973, Cavalo de Aço nasceu do desejo de Walther Negrão de não repetir nada do que havia sido feito pela colega até então.
Optou-se então por uma linha “spaghetti western”, exitoso subgênero dos filmes de bangue-bangue famosos nas décadas de 1950 e 1960, que apostava na figura do herói humanizado. No caso, Rodrigo (Tarcísio Meira), que regressava à Vila da Prata, cidadezinha do Paraná, ao descobrir, na cadeia, que o responsável pela chacina de sua família estava gozando de boa saúde e aproveitando-se das terras que usurpou de suas vítimas. Como pano de fundo, a reforma agrária, o que desagradou o governo militar.
LEIA TAMBÉM:
● Após lutar contra câncer, ex-apresentadora do Jornal da Manchete morre aos 65 anos
● Artista de Toma Lá, Dá Cá se recusou a tratar câncer: “Estado terminal”
● Após ser resgatado pela Praça, humorista perdeu luta contra a Aids
Histórias debatidas com familiares e com o ator Gilberto Martinho, sobre ladrões de madeira que cortavam troncos de pinheiros durante a madrugada e os transportavam em jangadas para vender às serrarias, fascinaram Negrão.
Era assim que o justiceiro Rodrigo e seus aliados – a apaixonada Miranda (Glória Menezes), Brucutu (Stenio Garcia, estreando na Globo), Professor (José Lewgoy) e Sabá (Dary Reis) – lutavam contra o poderio do velho Max (Ziembinski). Os pinheiros, porém, foram substituídos por eucaliptos. Numa das gravações de contrabando através do rio, o barco guiado por Tarcísio adernou e ele, Glória e Milton Moraes (Carlão) precisaram lutar contra a correnteza.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Cocaína no vídeo
Joana (Betty Faria), filha de Max, compunha o triângulo amoroso central com Rodrigo e Miranda. Através dela, uma garota mimada criada em Ipanema que fora levada de volta para o Paraná após uma passagem pela cadeia, o autor propôs uma campanha antidrogas, sugerida pelos militares. Contudo, a primeira menção à cocaína sofreu sanções.
“A história se passava perto do Paraguai, no sudoeste do Paraná. Ziembinski era um vilão, Max, um empresário que tinha até avião, e o Cláudio Cavalcanti era o piloto. Refiz o primeiro bloco, mudando tudo: saía a reforma agrária e entrava o tráfico. Mas quando foi ao ar o primeiro papelote de cocaína, fui chamado a Brasília novamente. Havia uma briga entre três ministérios – Saúde, Justiça e um outro, que não me lembro – que queriam ser os pais da campanha”, relatou Walther Negrão ao portal Memória Globo.
Joana tornou-se apenas uma moça voluntariosa, que se envolvia com os capangas de seu pai, Lucas (Edson França) e Aurélio (Cláudio Cavalcanti). Ela servia de contraponto a Miranda, que mantinha a propriedade da família com esforço braçal, auxiliando o avô Inácio (Mário Lago), seu único familiar.
Uma novela, muitos segredos
Muitos mistérios acerca da origem dos personagens integravam o enredo – uma manobra de Negrão para manter o interesse do público em meio aos cortes da Censura Federal.
Dentre eles, o que envolvia o pai de Miranda, presidiário que revelou a Rodrigo, no primeiro capítulo, o autor da chacina que dizimou sua família. Também o que mobilizava Teresa (Elizangela), filha da difamada Marta (Maria Luiza Castelli), super protegida pelo irmão Santo (Carlos Vereza).
A menina era herdeira de Carlão, outro dos desafetos de Max. E vislumbrava no pai e no namorado Aurélio, piloto de avião – também interesse de Bisteca (Suzana Gonçalves) – a possibilidade de deixar Vila da Prata, rumo à “cidade grande” que conhecia só de fotonovelas.
Quem matou Max?
Joana também não era a única filha de Max. A chegada da governanta Catarina (Sônia Oiticica), confidente da falecida esposa do velho, acentuou o mistério: seria o bastardo Aurélio, Santo ou Atílio (José Wilker), principal executor das práticas criminosas do vilão? Tudo indicava que Aurélio, filho de Catarina, era o herdeiro.
O jovem havia perdido o posto de piloto por ter auxiliado no socorro de Tobias (Paulo Gonçalves) numa das serrarias de Max, mas foi recolocado na função com o dobro de salário – Tobias, com um braço amputado por conta do acidente, vivia em atrito com Benvinda (Mirian Pires, elogiadíssima), que acreditava que o marido era pai de Santo.
Nos últimos capítulos, duas revelações: Lenita (Arlete Salles), ex-amante de Carlão, envolvida com entorpecentes, era a filha e a assassina de Max. A morte do vilão foi a saída encontrada por Negrão para levar sua trama até o fim, diante das investidas da Censura.
Enfim, o sucesso!
Daniel Filho, supervisor artístico de Cavalo de Aço, induziu o autor a optar esse caminho: inventou que terminaria a novela no capítulo 100, esperou a resolução dos conflitos, e depois o notificou sobre o “esticamento”. O crime frustrou Ziembinski, enaltecido por seu desempenho na novela.
O “quem matou” mobilizou a audiência. Tanto que Carlos Vereza, preso pelo DOPS na época, foi pressionado pelos militares a revelar a identidade do criminoso.
Se hoje a Globo repercute seus folhetins nos matutinos Encontro com Patrícia Poeta, Mais Você e É de Casa, naquele 1973 o Globo Gente, primeiro programa de entrevistas comandado por Jô Soares, promoveu um debate sobre o assassinato de Max, com direito à participação de Glória Menezes.
Cavalo de Aço também gerou a sátira Cavalo de Osso no humorístico Satiricom – humorístico que debochava das atrações televisivas, tal qual TV Pirata (1988), Casseta & Planeta, Urgente! (1992) e Tá no Ar: A TV na TV (2014).
Tumulto nos bastidores
As gravações em Santa Cruz, Rio de Janeiro, acarretaram em inúmeros transtornos para o elenco e para a produção. Faltavam banheiros e bebedouros; sobravam mosquitos e cobras. Em reunião com Daniel Filho, o elenco solicitou melhores condições.
Foi providenciado um trailer, que funcionava como camarim. Os atores mais velhos do elenco, Ziembinski e Mário Lago, eram poupados de gravações externas.
Em meio à reorganização do roteiro, Negrão contava com o auxílio de sua esposa, Orphila, que cuidava da continuidade – num tempo em que o autor não podia recorrer ao amparo valioso do computador.
Audiência em alta
Ambientada no interior do Paraná, Cavalo de Aço substituiu o equino do herói por uma motocicleta, Honda 750 – Four. O fato de Rodrigo se fazer acompanhar pelo veículo de duas rodas contribuiu para a escolha do título da novela. Os calçados usados pelo protagonista, de sola de borracha, também se popularizaram, justamente sob a alcunha de “sapatos cavalo de aço”.
Esta foi apenas uma das amostras do êxito do folhetim, apesar dos percalços nos bastidores… Uma pesquisa de audiência publicada em 1976 trouxe dados que colocavam Cavalo de Aço no sexto lugar dentre oito tramas exibidas às 20h.
Os 180 capítulos alcançaram expressivos 68,2% de média. Liderando, Fogo Sobre Terra (1974) com 73,9% de audiência; empatadas em segundo lugar, O Semideus (1973) e Pecado Capital (1975), com 72,6%; na terceira colocação, Duas Vidas (1976), com 71,6% – todas de Janete Clair. Na sequência, Escalada (1975), de Lauro César Muniz, com 70,2%; a reprise de Selva de Pedra (1975), com 68,9%, à frente de ‘Cavalo’; e a exibição original de ‘Selva’ (1972) e O Casarão (1976) nos dois últimos lugares, ambas com 67,5%.
Em maio de 1973, o jornal O Globo relatou que Cavalo de Aço, apesar da ação da Censura, havia atingido 100% de audiência. Quem não assistia a novela, estava com o televisor desligado. Naquele tempo, a pesquisa era flagrante: entrevistadores do Ibope questionavam pessoas comuns sobre o que haviam assistido no dia anterior.
Remake
Em 1988, Walther Negrão usou o principal entrecho desta novela para formular uma de suas empreitadas às 18h, Fera Radical. O autor trocou o sexo do protagonista: Rodrigo virou Cláudia (Malu Mader, foto) e foi de maquinista de trem a analista de sistemas.
O alvo da vingança também foi alterado “drasticamente”: o velho Max foi convertido numa família inteira, os Flores. Cláudia, tal e qual Rodrigo, também se envolvia com os filhos de seus algozes, Fernando (José Mayer) e Heitor (Thales Pan Chacon).
A responsável pela chacina da família de Cláudia, por fim, era Joana (Yara Amaral), matriarca dos Flores.