Há exatamente 35 anos, no dia 30 de março de 1987, a Rede Manchete colocava no ar a novela Corpo Santo. Relembre abaixo curiosidades sobre a trama:
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– Corpo Santo deu início a um novo tempo na emissora. José Wilker, recém-saído de Roque Santeiro (1985), assumia o departamento de teledramaturgia do canal com três sinopses “na manga”: a adaptação do romance Helena, de Machado de Assis, alocada às 19h45; Kananga do Japão, projeto nababesco de Adolpho Bloch que só saiu do papel em 1989 (quando Wilker já havia retornado à Globo); e Corpo Santo, que se aprofundava “na crônica policial apenas tocada pela Globo em Pecado Capital (1975) e Bandidos da Falange (1983)”, palavras do ator e diretor.
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– Foi a estreia de José Louzeiro como autor de televisão, após a bem-sucedida carreira literária – sempre com obras ligadas a casos policiais, como o da menina Araceli Cabrera Crespo e o da jovem Cláudia Lessin Rodrigues – e a incursão no cinema, com Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia (1976) e Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980).
– Por conta da inexperiência em novelas, Louzeiro (foto abaixo) optou por uma atípica divisão de trabalho com os colaboradores Cláudio MacDowell e Eliane Garcia: eles se reuniam a cada sete dias, debatiam os rumos da trama e cada um se encarregava de dois capítulos em um bloco de seis, o equivalente a uma semana no ar. Comumente, o titular orienta os auxiliares através da escaleta (resumo das cenas sem diálogo), distribui o roteiro e responde pela redação final.
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– A produção pretendia contar com Mariana de Moraes, neta de Vinícius de Moraes e protagonista do filme Fulaninha (1986), como a paranormal Lucinha. A personagem foi entregue a Sílvia Buarque – afilhada de Vinícius, primogênita de Chico Buarque e Marieta Severo.
Indefinições
– Demitida por Paulo Ubiratan por “indisciplina”, Lúcia Veríssimo também entrou no radar da Manchete. Estabeleceu-se então um impasse com a Globo: Lauro César Muniz, autor de Roda de Fogo (1986), queria reintegrar Lúcia à trama em seus capítulos finais; mas, a esta altura, ela já teria de estar rodando suas primeiras cenas em Corpo Santo. A atriz acabou escalada para Mandala (1987), de Dias Gomes, que a Globo estreou às 20h exatos dez dias após o término de ‘Corpo’.
– A intenção da Manchete era estrear Corpo Santo em 23 de março – data escolhida pela Globo para lançar a substituta de Roda de Fogo, O Outro. O folhetim de Aguinaldo Silva transitava pelo mesmo universo da obra de José Louzeiro: o da crônica policial. Tanto Aguinaldo, quanto Louzeiro atuaram como repórteres em coberturas do gênero.
– O ponto de partida de Corpo Santo, aliás, foi o caso Aída Curi, violentada e atirada do alto de um prédio por três rapazes (incluindo um menor de idade), ocorrido no Rio de Janeiro em 1958. Visto como o início do fim dos “anos dourados”, o crime chocou todo o país em razão da violência contra a imagem maculada de Aída, recém-saída de um colégio de freiras, e das tentativas dos réus de fraudar a investigação. O autor abandonou a ideia inicial, optando por uma “novela-reportagem”, que refletia na televisão a criminalidade das ruas e a influência desta no cotidiano de pessoas comuns.
– As semelhanças com O Outro renderam a Corpo Santo, entre os funcionários da Manchete, a irônica alcunha de “A Outra”.
Batalha contra a Globo
– Na estreia, em 30 de março de 1987, a ousada proposta da Manchete atingiu 14% de participação no Ibope; na segunda-feira anterior, 23 de março, com os últimos capítulos de Mania de Querer (1986/1987), o placar apontou 9,5%.
– Naquela noite, a Globo esticou o quanto pode o sétimo capítulo de O Outro, o que levou a Manchete a publicar, ainda naquela semana (2 de abril, quinta-feira), um anúncio nos jornais intitulado “Não estica, nem encolhe”, que “alertava” o telespectador: “Para fazer novela, é preciso, antes de mais nada, respeitar o público. Por isso, quando a Rede Manchete informou o horário de ‘Corpo Santo’, cumpriu. Às 21h20min, a novela foi ao ar em sua estreia. Sem esticar nem encolher nada na programação. Porque a Rede Manchete respeita o tempo e os horários do telespectador. Novela boa começa e termina no horário certo”.
– A emissora-líder revidou no sábado, 4 de abril, minimizando o impacto da produção nacional da concorrente. No anúncio “Mais vale um Pecado Original do que um Corpo Santo”, a estação celebrou os feitos da série importada, com 48,5% de participação nos índices. A produção sequer havia competido com o primeiro capítulo do folhetim da concorrente, segundo os boletins de programação da época. O tiro saiu pela culatra: o canal foi acusado por veículos da imprensa de enaltecer produtos enlatados em detrimento às realizações tupiniquins. Além, claro, de ter “passado recibo” do “incômodo” gerado pela Manchete.
– Concebida para o público das classes A e B, a TV de Adolpho Bloch arregimentou telespectadores das faixas C e D, restritos aos subúrbios e periferias, após a estreia de Corpo Santo.
– Em 1987, Globo e Manchete “trocaram” de afiliadas na Bahia. Contudo, a TV Aratu insistia em retomar a parceria com a emissora de Roberto Marinho. Nos primeiros dias de abril, a Aratu conseguiu judicialmente “reaver” o sinal, então de posse da TV Bahia. A Manchete acabou ficando fora do ar no estado – o que gerou uma enxurrada de reclamações dos telespectadores de Corpo Santo, que, logo na primeira semana, havia se posicionado apenas dois pontos percentuais atrás de O Outro (então o maior índice alcançado pela rede de Adolpho Bloch com a produção em todo o país). O impasse chegou ao fim em julho: a Aratu se tornou oficialmente afiliada da Manchete.
Dons sobrenaturais
– O título Corpo Santo fazia referência à castidade de Simone Reski (Christiane Torloni) e a paranormalidade de sua filha, Lucinha. A mãe, vendedora de livros, estava há 11 anos (desde a morte do marido) sem sexo. Eis que ela se envolve com Téo (Reginaldo Faria), ligado ao submundo do contrabando, da prostituição em inferninhos na Lapa e dos filmes pornôs. Téo induz Lucinha a participar das fitas: o corpo da jovem, contudo, não aparece nos negativos, o que lhe confere uma suposta “santidade”.
– Tia Maria (Nathalia Timberg), irmã de Simone, também possuía dons sobrenaturais: conseguia estabelecer diálogo com o cunhado morto. As duas, mais Lucinha, dividiam o apartamento com a empregada Isaura (Cristina Pereira).
– Logo no início da trama, um policial é morto ao interceptar contrabando. A ordem para a execução parte da gangue de Grego (Sérgio Viotti), que, no passado, submeteu-se a uma cirurgia plástica para regressar ao Brasil e continuar praticando, sem medo da lei, seus atos ilícitos. Ulisses Queiróz e Adriana (José Wilker e Maitê Proença, em participações especiais) cuidam de seus negócios no exterior; no Brasil, Téo e Russo (Jonas Bloch) disputam o poder dentro da organização.
– O corrupto Arturzão (Otávio Augusto) era o braço de Grego na polícia. Seu chefe, o delegado Portinho (Roberto Frota), embora honesto, fazia vista grossa para a conduta controversa de seus policiais. Já o perito aposentado Vidigal (Luís Carlos Arutin) atuava em favor da lei. As práticas criminosas da quadrilha mobilizavam a repórter do Correio da Tarde, Bárbara Diniz (Lídia Brondi), interessada em desmantelar o esquadrão da morte que contribui para o aumento dos índices de violência do Rio de Janeiro. Em seu encalço, o fotógrafo e fiel escudeiro Anselmo (Alexandre Marques).
– A novela também abordava as pequenas corrupções: o síndico Perdigão (Rogério Froes), envolvido com Marta (Ana Lúcia Torre), afanava o dinheiro dos condôminos.
Mudanças no elenco
– Sônia Braga foi o primeiro nome cogitado para a contraventora Adriana. As gravações em Los Angeles, onde a atriz residia, já estavam marcadas quando, por compromissos com o filme Rebelião em Milagro (1988), precisou declinar do convite. Uma nova personagem concebida especialmente para Sônia não saiu do papel…
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– Lídia Brondi, por sua vez, abdicou da participação em Helena para assumir Bárbara. Mayara Magri assumiu o tipo reservado para Lídia no folhetim das 19h45, Eugênia.
– Vera Fischer chegou a ser cotada para Simone, enquanto Sandra Bréa, por força do contrato com a Globo, não pôde atender ao chamado da Manchete.
– Por volta do capítulo 90, no ar em julho, José Louzeiro assassinou a protagonista Simone. Grego, então infartado, determinou que Téo abandonasse a namorada para assumir a organização. Mas Russo – que cultivava uma paixão enrustida pelo rival – articulou para deixar o produtor de filmes eróticos na mira da polícia: ele disparou contra Simone usando a arma de Téo.
– Com esta cena, Corpo Santo registrou seu melhor número até então: 31 pontos no Ibope.
Críticas
– Christiane Torloni negou, na época, ter pedido para sair da novela. No entanto, ao jornal O Dia, em 18 de junho de 1989, quando escalada para Kananga do Japão, a atriz admitiu ter padecido com a precariedade das condições de trabalho na emissora, além de sua insatisfação com os rumos da personagem:
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“Eu saí de Corpo Santo porque a novela estava ficando boba, sem alma. E eu não conseguia perceber como o autor ia resolver aquilo. Ator não tem que fazer qualquer papel, não”.
– José Louzeiro confirmou as críticas que recebeu do elenco, ainda durante a exibição de Corpo Santo: Reginaldo Faria teria questionado o emprego de frases sem conteúdo dramático; Christiane Torloni e Jonas Bloch sugeriram uma narrativa mais ágil.
– O autor também se desentendeu com o colaborador Cláudio MacDowell. Ele e Eliane Garcia foram substituídos por Wilson Aguiar Filho.
– A prostituta Marina (Eliane Narduchi) transitava por um dos cenários mais requisitados da trama, o River Bar. Mesmo estando sempre acompanhada de sua cartela de camisinhas, Marina contraiu o vírus HIV. A descoberta veio a partir de um gânglio que apareceu em seu pescoço. Amante de Arturzão, a garota de programa definhou dia após dia, sempre amparada pelos tipos discriminados que a acompanhavam nas ruas e boates. Foi a primeira vez que uma novela debateu a AIDS, cujos sintomas, desdobramentos e tratamentos ainda eram praticamente desconhecidos.
– O tráfico de drogas, que começava a assolar as comunidades, também foi discutido. Grego hesitou ao entrar neste “meio”, mas sucumbiu diante dos apelos de seu filho bastardo, Orlando (Chico Diaz).
– Neste contexto, destaca-se também a morte de Renata (Bel Kutner). A jovem sofre uma overdose após consumir whisky com cocaína numa “festa de embalo” promovida por Russo após a estreia de Valéria (Lu Modesto), amante dele, nas produções pornográficas da Meca Filmes. Lucinha pressentiu a morte da colega de sala; diante dos protestos dos demais alunos do Colégio Independência, Bárbara foi a fundo nas investigações e descobriu o envolvimento da produtora de Russo no caso – mesmo com o apagamento das fitas do filme de Valéria e Eduardo (Antonio Gonzales), dirigidos por Fernando (Germano Vezzani, estrela de várias pornochanchadas).
Final
– No último capítulo, Téo repete a trajetória de seu mentor: simula a própria morte e foge do país ao lado de Mara (Ângela Vieira), amante de Grego, deixando a prostituta Wanda (Divana Brandão) à espera de um filho seu. E o tradicional “fim” contou com uma interrogação…
– O “fim?” indicava também a possibilidade de continuação. Reginaldo Faria e José Louzeiro pretendiam desenvolver um seriado semanal a partir da novela, com a colaboração de Wilson Aguiar Filho, Reinaldo Moraes e Dagomir Marquezi – os dois últimos do time de Helena. Corpo Fechado buscava, conforme o autor declarou à revista Amiga (11/11/1987), partir para “o mágico mais científico, sem bruxarias”. O projeto acabou engavetado.
– Enquanto membro da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos, José Louzeiro atuou junto à Censura para liberar a sinopse de Mandala, da concorrente Globo – vetada por conta do polêmico romance entre Jocasta (Vera Fischer) e Édipo (Felipe Camargo), mãe e filho que desconheciam tal condição.
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Prêmios e reprises
– Ângela Vieira – na época casada com o colega de cena Roberto Frota – foi premiada com o APCA de melhor atriz coadjuvante. A Associação Paulista de Críticos de Arte também elegeu Corpo Santo a melhor novela de 1987, José Louzeiro como o responsável pelo melhor texto, Sérgio Viotti como melhor ator coadjuvante e Chico Diaz como revelação masculina do ano.
– No Troféu Imprensa, também indicada como melhor novela, Corpo Santo levou os votos de Carlos Imperial, Leão Lobo e Nelson Rubens. Perdeu para Brega & Chique (1987), de Cassiano Gabus Mendes, com oito votos. O Outro, a terceira indicada, não foi votada.
– A novela foi reprisada na íntegra, 161 capítulos, entre 5 de dezembro de 1988 e 20 de julho de 1989, de segunda-feira a sexta-feira, às 13h. Depois, compactada em 121 capítulos, de segunda a sábado entre 19h30 e 19h50, de 21 de janeiro a 15 de junho de 1991. Por fim, em 94 capítulos, às 18h30 e também de segunda a sábado, de 2 de agosto a 27 de outubro de 1993.
– Em setembro de 2010, surgiram informações acerca da exibição de Corpo Santo no SBT. O canal de Silvio Santos já havia reapresentado Xica da Silva (1996), em 2005; Pantanal (1990), em 2008; e Dona Beija (1986), em 2009. E transmitia, naquela altura, A História de Ana Raio e Zé Trovão (1990). Os boatos sobre Corpo Santo, contudo, nunca se confirmaram. Não há notícias sobre o paradeiro das fitas da novela, que integram a massa falida da Manchete, leiloada recentemente.