No dia 26 de novembro de 1984, estreava uma das melhores novelas de Gilberto Braga: Corpo a Corpo, incompreensivelmente pouco celebrada pela própria Globo.

A bem da verdade, Corpo a Corpo é mais lembrada apenas por dois motivos: pela trama central, em que a personagem de Débora Duarte fazia um pacto com o próprio Satanás (Flávio Galvão) para ascender profissionalmente; e pela rejeição do casal inter-racial da história, Sônia e Cláudio, vivido por Zezé Motta e Marcos Paulo.

Corpo a Corpo

Em 2009, Braga revelou a André Bernardo e Cíntia Lopes, para o livro “A Seguir, Cenas do Próximo Capítulo”, que esta era a sua novela preferida. Porém, o autor não aprovou o título nem a escalação de Débora.

“Na minha opinião, Corpo a Corpo é minha melhor novela, mas não é tão lembrada. O título, aliás, é muito ruim. Débora Duarte é extraordinária, mas, convenhamos, não é o primeiro nome de uma novela”, explicou.

Gilberto Braga

Gilberto Braga criou em Corpo a Corpo uma das primeiras representações em novela – se não a primeira – de negros bem colocados socialmente, em uma época em que atores negros muito raramente fugiam do estereótipo do escravo ou do serviçal.

Racismo ontem e hoje

Muito pertinente lembrar a reação do público de 37 anos atrás, principalmente neste momento em que se discute amplamente o racismo.

Só para você se situar na novela: Cláudio (Marcos Paulo) era um rapaz muito rico, de temperamento rebelde, que vivia batendo de frente com a intransigência do pai, Alfredo Fraga Dantas (Hugo Carvana), um homem conservador, arrogante, reacionário e preconceituoso. Cláudio se apaixona por Sônia (Zezé Motta), moça negra de família de classe média, arquiteta paisagista, culta e esclarecida.

Logicamente Gilberto Braga abordou o racismo por meio da família Fraga Dantas: o pai não aceitava o namoro do filho com uma negra. Em um entrecho folhetinesco digno de O Direito de Nascer, Sônia, após sofrer todo o preconceito do velho, salva sua vida com uma transfusão de sangue.

Agora o rico “de sangue azul” tinha sangue negro correndo em suas veias! Quem resiste a um gancho desse?

Reações violentas

Zezé Motta e Marcos Paulo em Corpo a Corpo

Porém, o entrecho real chocou mais que o ficcional. Uma pesquisa para aferir a aderência do público sobre o casal Sônia e Cláudio surpreendeu todo os profissionais envolvidos. Zezé Motta narrou o ocorrido para Pedro Bial no programa Conversa com Bial.

“As reações foram violentas (…) Um homem disse que se fosse ator e estivesse precisando de dinheiro e a televisão obrigasse a beijar uma negra feia e horrorosa ‘como aquela’, chegaria em casa todos os dias e desinfetaria a boca com água sanitária. (…) Teve uma empregada doméstica que disse que toda vez que o casal se beijava, ela trocava de canal porque não acreditava nesse amor. (…) Outro disse que não acreditava que Marcos Paulo estivesse tão necessitado de dinheiro para passar por essa humilhação”.

Zezé Motta também afirmou que Gilberto Braga escreveu uma cena baseada em um fato presenciado por ele: Sônia estava em um jantar na mansão dos Fraga Dantas e a empregada, negra, se negou a servi-la – por Sônia ser negra.

Há 38 anos, o público não via personagens negros bem posicionados em novelas. O atores negros eram relegados a papeis de escravizados ou subalternos.

A próxima novela com uma família negra de classe média só veio 10 anos depois: A Próxima Vítima. Do núcleo de Zezé Motta em Corpo a Corpo, atuaram com ela Ruth de Souza, Clementino Kelé, Waldir Onofre e a então garota Eliane Neves.

Zezé Motta e Camila Pitanga em A Próxima Vítima

Com o tempo, foram conquistando mais espaço – como o especial Falas Negras. Porém, ainda falta um longo caminho a percorrer. Já o racismo real, estrutural, escancarado ou velado, continua, mas precisa ser combatido, todo dia.

Indico o excelente documentário A Negação do Brasil, de Joel Zito Araújo (2000) sobre a presença e a abordagem do negro na teledramaturgia brasileira.

AQUI tem tudo sobre Corpo a Corpo: a trama, o elenco, personagens, trilha sonora e muitas curiosidades de bastidores.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor