“Trair o amante com o marido de quem foi viúva sem nunca ter sido”.

A trama de Roque Santeiro (disponível no Globoplay a partir desta segunda-feira, 21) já parte de uma fake news, institucionalizada por um grupo de poderosos para tirar vantagens pessoais pela exploração da fé do povo.

Escrita por Dias Gomes e Aguinaldo Silva, Roque Santeiro foi originalmente exibida entre 1985 e 1986. Poucas novelas conseguiram a façanha de catalisar a audiência como Roque fez em sua época. Foi a primeira novela do horário das oito (hoje nove) ambientada em uma fictícia cidadezinha do interior do Nordeste que representava um microcosmo do Brasil, repleta de crítica social.

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A produção aproveitava um momento histórico muito propício. Roque Santeiro é daquelas novelas zeitgeist, que captam o espírito de seu tempo. O país celebrava “os ares da Nova República”, com o fim do Regime Militar e a democracia oficialmente instaurada. A população vivia um momento de esperança.

A TV Globo aproveitou a ocasião para realizar um antigo projeto: finalmente levar ao ar a novela censurada dez anos antes. Havia um significado nessa empreitada: para aquele momento, Roque Santeiro festejava a liberdade de expressão e o (suposto e momentâneo) fim da opressão e do autoritarismo.

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Este simbolismo já estava intrínseco na trama idealizada por Dias Gomes. A história criticava a privação da liberdade e o domínio do mais forte, que, no caso, explorava o oprimido pela fé. A base era a peça O Berço do Herói, censurada pela ditadura militar na década de 1960. Por causa de sua origem, digamos, “subversiva”, a novela foi proibida em 1975, acusada de ofensiva à igreja, à moral, aos bons costumes e à ordem pública.

Todavia, muito mais do que uma crítica ao sistema e aos governos – ditatoriais ou não – Roque Santeiro divertia. Uma galeria de personagens carismáticos, ora dramáticos, ora caricatos. Pela primeira vez em seu tradicional horário das oito da noite, a Globo exibia uma novela que fugia do esquema psicanalítico e investia na caricatura, abandonava o melodrama e privilegiava a comicidade, fugindo dos grandes centros urbanos e ambientando a história em um lugarejo perdido no Nordeste brasileiro.

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Apesar dessas “inovações”, o principal nunca foi deixado de lado: a clássica fórmula do folhetim.

Parece comum hoje em dia, mas era muito novo na época, ratificando assim o ineditismo da história de Dias Gomes. O autor já usara a fórmula no horário das dez (O Bem-Amado, Saramandaia), mas nunca às oito da noite – por isso era novidade. Aguinaldo Silva depois a usou à exaustão (Tieta, Pedra Sobre Pedra, Fera Ferida, A Indomada) – por isso não é mais novidade hoje. Some uma história irresistível, com personagens carismáticos, um elenco de primeira, e uma trilha sonora marcante. É sucesso garantido.

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Roque Santeiro foi também uma das novelas mais divulgadas pela Globo. A repercussão gerou uma verdadeira mina de ouro, com subprodutos que venderam tanto quanto os souvenirs e santinhos de Roque na fictícia Asa Branca da história.

As duas trilhas sonoras (nacionais), por exemplo, foram sucesso de vendagem. Ganharam as ruas os acessórios, maquiagem e roupas extravagantes da Viúva Porcina. Bem como os óculos escuros e chapéus de Roque, o figurino moderno da descolada Tânia e das bailarinas da boate Sexu’s. A venda de perucas não teria alavancado não fosse Sinhozinho Malta.

Os bordões dos personagens caíram no gosto popular. Um álbum de figurinhas chegou às bancas. Até a tradicional mensagem de fim de ano da Globo (de 1985) se apropriou dos moradores de Asa Branca – outro ineditismo em se tratando das mensagens de fim de ano da emissora.

Hoje os tempos são outros, o Brasil e a sociedade são muito diferentes do que eram nos meados dos anos 1980. Porém, apesar de representar muito bem a sua época, a trama de Roque Santeiro é atemporal. A opressão dos poderosos e da elite sempre existirá. Além disso, o autoritarismo estampa os noticiários atuais. Assim como a exploração da fé alheia para tirar proveitos pessoais ou políticos. O Brasil continua Asa Branca.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor