No ano de 2020, a televisão brasileira completou 70 anos. E a teledramaturgia tem suma importância. Ao contrário do que muitos pensam, não se trata apenas de um mero entretenimento ou produtos de qualidade questionável. As novelas brasileiras viraram referência no mundo e um símbolo de produção de alto nível. Mas não é só.

As tramas também servem para observar a evolução do comportamento da sociedade e as histórias de Manoel Carlos são as que mais evidenciam isso. Vide as duas reprises atuais: “Laços de Família”, no “Vale a Pena Ver de Novo”, na Globo, e “Mulheres Apaixonadas”, no canal Viva.

Os folhetins são os melhores trabalhos do autor, praticamente empatados com “Por Amor”, outro clássico. “Laços” foi exibida no ano 2000 e “Mulheres” em 2003. Há 20 anos e 17 anos, respectivamente. Parece pouco tempo, ainda mais levando em consideração a análise da mudança no comportamento das pessoas. Mas não é. E fica evidente ao longo dos capítulos das duas tramas. Tem sido muito interessante acompanhar as produções ao mesmo tempo, até para observar a semelhança do time escalado. Em um intervalo de três anos, o autor selecionou praticamente o mesmo elenco.

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Assédio em Laços de Família

Começando por “Laços de Família”, é impossível não estranhar a forma como era tratado o assédio de Danilo (Alexandre Borges) em Ritinha (Juliana Paes), empregada doméstica que trabalhava na mansão de Alma (Marieta Severo), sua esposa. Tudo era exibido com um tom de “leveza” e “comicidade”. Algo impensável hoje em dia.

O próprio Danilo era exposto como um galinha engraçado e boa praça. Até aí tudo bem, afinal, o cafajeste cômico é um clichê dramatúrgico. Mas as investidas na funcionária eram elemento de comédia e na época todos se divertiam mesmo. Nem a imprensa especializada estranhou.

É verdade que Rita com o tempo foi gostando das cantadas até iniciar um caso com o patrão, mas nada que justificasse a abordagem do enredo. E o desfecho da história transbordou machismo. A empregada engravidou do patrão e o fato provocou a separação de Danilo e Alma. Todavia, o casal se reconciliou no final porque a empregada morreu no parto. A ricaça perdoou o marido e ficou com as crianças (eram gêmeos). Para o homem traidor, o perdão. Para a mulher, a morte.

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Abuso e estupro

O mais grave é que essa história fica menos pior se comparada ao contexto de Pedro (José Mayer). O veterinário que trabalhava no Aras de Alma era um poço de machismo e grosseria. Misógino, fazia questão de ser estúpido com qualquer mulher. Era cobiçado por Íris (Deborah Secco), prima menor de idade, e até então casado. Mas logo se interessou por Cíntia (Helena Ranaldi), sua colega de trabalho. A recíproca era verdadeira. Os dois sempre trocavam ofensas e provocações. Era o típico jogo de gato e rato, onde a atração sexual era a protagonista.

Os personagens protagonizaram várias cenas de sexo selvagem, mas algumas delas eram claramente abusivas e até alusivas a um estupro. Na época não houve qualquer estranhamento. Já hoje despertam ojeriza. Para piorar, o final do personagem assusta: Pedro termina com Íris e a engravida. Uma menina que era tratada por ele a novela toda como uma criança — até palmadas na bunda levava quando fazia besteira.

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Mulheres Apaixonadas não fica atrás

Já em “Mulheres Apaixonadas” o caso que chama mais atenção na reprise do Viva é a relação entre Raquel (Helena Ranaldi) e Fred (Pedro Furtado). A professora de educação física da escola de Lorena (Susana Vieira) se encantou pelo menino assim que o viu nadando pela primeira vez. Nem tinha visto o rosto dele ainda. Desde então, começou a cortejar o rapaz descaradamente. Tímido e retraído, Fred não tem amigos no colégio e sua grande companheira é a piscina. Mas, aos poucos, acaba conquistado pela professora.

Os dois passam a sair juntos e ninguém vê qualquer problema. Até a personagem fala com uma naturalidade que choca: “Ele tem 16 anos, quase 17”, disse a Yvone (Arlete Heringuer), sua melhor amiga e empregada. Se esse tipo de relacionamento já causaria controvérsia em uma faculdade, imagine entre a professora e um aluno do ensino fundamental. Mas o público não teve qualquer repulsa na época. Pelo contrário, torceu pelo par.

Claro que a construção de Maneco propicia uma empatia ao casal. Afinal, Raquel sofre violência doméstica do ex-marido, Marcos (Dan Stulbach), que quando volta faz da vida da personagem um inferno. Fred vira um defensor da professora e acaba sofrendo junto com ela —- o desfecho é trágico, vale lembrar. O curioso é que em 2003 a mãe de Fred, Eleonora (Joana Medeiros), é apresentada e vista como uma vilã. Isso porque nunca aprovou a relação de seu filho com a professora. Agora é perceptível como aquela mãe tem total razão.

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Declaração problemática

Aliás, ainda dentro do núcleo, é preciso citar uma declaração problemática dita por Helena, a protagonista da novela, em uma conversa com Raquel: “Tivemos um professor que abusou de uma menina. Claro que foi demitido imediatamente. Mas graças a Deus conseguimos abafar o caso. Mas ele abusou de uma garota de 14 anos. Nada justifica uma atitude como essa, mas as meninas se exibem, viu. Provocam. Meninas já com corpo de mulher. No verão passado, uma menina ficou de busto nu na piscina pra todo mundo ver”, declarou aos risos. Hoje em dia essa afirmação seria normal na fala de uma vilã, não de uma protagonista.

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Outro caso que merece menção, ainda que com menos gravidade, é o comportamento de Carlinhos (Daniel Zettel) com Zilda (Roberta Rodrigues). O filho de Carlão (Marcos Caruso) virou um dos queridinhos do público com razão. Irônico, o garoto não se intimidava com as grosserias de Dóris (Regiane Alves) e, ao contrário da irmã, tratava os avós, Leopoldo (Osvaldo Louzada) e Flora (Carmem Silva), com imenso carinho.

Porém, as insistentes investidas em Zilda não seriam vistas com bons olhos atualmente. É verdade que a empregada gostava e dava corda para o garoto (tanto que a primeira vez dele foi com ela), mas as constantes cantadas (que muitas vezes resultavam em passadas de mão) seriam bem problematizadas. Aliás, há uma Zilda em cada novela: as duas negras, empregadas domésticas, pobres, sem núcleo próprio, sem conflitos e que vivem em função de seus patrões. Hoje em dia não passaria despercebido.

As novelas de Manoel Carlos funcionam como ótimos exemplos sobre o comportamento da sociedade na época. Tanto que é um dos poucos autores que utiliza acontecimentos reais do cotidiano em alguns diálogos de seus personagens. E as reprises simultâneas de “Laços de Família” e “Mulheres Apaixonadas” estão servindo para a constatação da evolução e amadurecimento do comportamento das pessoas, ainda que de uma forma sutil. Nem tudo está retrocedendo, por mais que pareça.

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Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor