Haja Coração tinha tudo para ser uma ótima novela, mas deixou a desejar

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Foram apenas cinco meses no ar e 139 capítulos. “Haja Coração” estreou em 31 de maio de 2016, excepcionalmente uma terça-feira, e chegou ao fim (também excepcionalmente) no dia 8 de novembro do mesmo ano —- o caso da estreia houve a justificativa plausível de adiar o fim de “Totalmente Demais” para não enfrentar um feriado prolongado, mas no caso dessa trama foi algo gratuito e desnecessário mesmo. A segunda novela de Daniel Ortiz foi um remake de “Sassaricando” (1987), grande sucesso de Silvio de Abreu, e cumpriu sua missão no quesito audiência: teve média de 27,5 pontos, empatada tecnicamente com o fenômeno anterior de Rosane Svartman e Paulo Halm (27,4). Excelentes números. Porém, a produção poderia ter sido muito melhor do que foi.

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Após seu bom trabalho como estreante em “Alto Astral” (2014), o autor apresentou um início promissor de seu segundo folhetim. Havia ali todos os ingredientes de uma deliciosa novela das sete. E o primeiro mês foi animador, onde a dupla formada por Fedora (Tatá Werneck) e Teodora (Grace Gianoukas) logo se destacou, assim como o trio impagável de amigas interesseiras formado por Rebeca (Malu Mader), Penélope (Carolina Ferraz) e Leonora (Ellen Roche). A composição de Mariana Ximenes como Tancinha também agradou e parecia uma ótima protagonista, tendo ainda a rivalidade com Fedora como um dos atrativos. Os erros observados em alguns núcleos paralelos deslocados e na história cansativa do mocinho Apolo (Malvino Salvador) pareciam pequenos diante dos acertos.

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Entretanto, ao longo dos meses, Ortiz começou a dar claros sinais de falta de domínio de seu enredo. Os problemas começaram a crescer e até mesmo os pontos positivos começaram a ficar negativos. A falsa morte de Teodora foi um dos mais graves equívocos do autor, que preferiu seguir o roteiro original de “Sassaricando”, ignorando a diferença do contexto atual. O resultado foi catastrófico para o núcleo Abdala, que era o melhor da novela. Com a saída da melhor personagem da família, todos os perfis ficaram sem função e perdidos na história.

O romance de Fedora e Leozinho (Gabriel Godoy) ficou repetitivo, Lucrécia (Cláudia Jimenez) passou a protagonizar situações cansativas indo atrás do seu marido, que a rejeitava, e até mesmo a vilania de Gigi (Marcelo Médici) se esvaziou depois que fez seu discípulo Leozinho se casar com Fedora. Já Aparício (Alexandre Borges) começou a protagonizar cenas de armações bobocas para conquistar Rebeca se fingindo de faxineiro.

A trama de Tancinha se mostrou rasa para protagonizar a novela. A personagem começou a história investigando o desaparecimento do seu pai (Guido – Wenner Schunemann) e até invadiu a festa de aniversário de Fedora para cobrar satisfações. Mas, pouco depois de um mês, não tocou mais no assunto. A situação parece ter sido esquecida pelo autor. Ela passou a ficar ‘divididinha’ entre Apolo e Beto (João Baldasserini) e seguiu assim até o final. Uma protagonista cujo único conflito é ter que se decidir com quem ficar não condiz com a atualidade.

Vale lembrar que esse era o enredo de “Sassaricando” porque o triângulo fazia parte do núcleo secundário do folhetim. Agora, virando o principal, novas situações e dramas precisavam ter sido criados para a dita mocinha. Até mesmo as aulas de balé que passou a fazer por volta da metade de trama não era fruto de seu sonho, ou objetivo de vida, e sim de sua mãe. E a rivalidade inicial com Fedora foi desprezada ao longo dos meses. Elas mal contracenaram, mesmo tendo rendido cenas ótimas juntas. A inimizade da patricinha rica com a feirante pobre tinha tudo para render bastante, o que não ocorreu.

O roteiro do trio de amigas, juntamente com a empregada Dinalda (Renata Augusto), se mostrou limitado para tantos meses no ar. O resultado foi a perda de destaque delas, incluindo a inserção de Rebeca em repetitivas idas e vindas com Aparício, a separando sutilmente das demais. A única que conseguiu manter situações atrativas foi Leonora, que passou a formar uma dupla com Dinalda, protagonizando divertidas cenas em busca da fama.

A participação da ex-BBB Ana Paula acabou dando um gás para o contexto que cercava a fictícia ex-Casa de Vidro. Já Penélope formou um lindo casal com Henrique (Nando Rodrigues), mas o autor não criou bons conflitos para o par, que acabou deixado de lado, lamentavelmente. Só nas semanas finais houve a entrada da mãe esnobe do rapaz (vivida pela ótima Sônia Lima), proporcionando boas cenas com a futura nora. Mas era tarde e a falta de aproveitamento de um casal que havia funcionado ficou claro.

O triângulo envolvendo Camila (Agatha Moreira), Giovanni (Jayme Matarazzo) e Bruna (Fernanda Vasconcellos) foi outro ponto que Ortiz desperdiçou. O casal “Gimila” emplacou logo no início, mas a demora no desenvolvimento de todo o contexto da explosão do Gran Bazar, o mal aproveitamento da psicopatia de Bruna e as constantes perdas de memória de Camila deixaram a situação cansativa. O que era visto como um dos trunfos da novela acabou virando uma das muitas falhas de desenvolvimento. Até mesmo a cena mais aguardada, quando Bruna tentou matar Camila, foi frustrante em virtude da equivocada direção de Fred Mayrink, que tirou todo o impacto do embate das rivais com um trilha não condizente. A cegueira de Giovanni em cima dos surtos de Bruna também pecou pela falta de verossimilhança, assim como os apagões de memória que Camila sempre tinha —- conveniente para a enrolação do enredo.

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Já o núcleo do Apolo desde o início foi fraco e se manteve assim ao longo da trama. A paixão do personagem pelas corridas implicava em cenas desinteressantes e o conflito entre Nair (Ana Carbati) e Adônis (José Loreto) —- o filho que sentia vergonha da mãe —- era exatamente o mesmo vivido pela mesma atriz em “Alto Astral”. Para culminar, só no penúltimo capítulo a mãe soube que o rapaz não usou o seu dinheiro para pagar a faculdade e sim curtir a vida —- uma situação forçada, por sinal, foi Adônis descobrir que, ao contrário dos irmãos, não era adotado e sim o filho renegado pela mãe (isso só serviu para inverter os papéis, o transformando em vítima, sendo que sempre foi um filho racista e ingrato). Outro equívoco que merece ser citado foi o péssimo personagem dado a Conrado Caputo, depois do sucesso do Pepito em “Alto Astral”. O ator ficou avulso o tempo todo na pele de Renan (inicialmente um vlogger fracassado e depois ajudante da cantina de Tancinha), assim como Marcella Valente, intérprete da Larissa, irmã de Apolo e Adônis.

Ainda citando perfis avulsos, vale mencionar o drama dos irmãos Carol (Bruna Griphao), Nicolas (Henry Fiuka) e Bia (Melissa Nóbrega). O núcleo sempre ficou deslocado na história e parecia pertencer a uma novela paralela. O absurdo da situação também abusava da inteligência do telespectador, afinal, não tinha como acreditar que os três conseguiram esconder dos vizinhos por meses a morte do pai. Já na reta final, a adoção do trio serviu para mexer no triângulo formado por Tancinha, Beto e Apolo, uma vez que todos quiseram adotá-los. Apesar de tarde, essa movimentação acabou sendo benéfica. O trio amoroso, por sinal, virou quadrado com meses de atraso. A entrada de Tamara nessa situação deveria ter ocorrido desde o começo, mas o autor preferiu enrolar bastante, deixando Cleo Pires apagada e sem função boa parte do tempo. A prova foi que a personagem cresceu assim que seu romance com Apolo engrenou, valorizando a química dos atores, vista no filme “Qualquer Gato Vira Lata”.

Entretanto, em meio a tantos problemas de desenvolvimento, Daniel Ortiz acertou em cheio na condução do romance de Shirlei (Sabrina Petraglia) e Felipe (Marcos Pitombo), virando o melhor casal da história. A personagem caiu no gosto popular e se transformou no maior sucesso da novela. Curiosamente, foi o único perfil que não veio de “Sassaricando” e sim de outra novela de Silvio de Abreu: “Torre de Babel”. A menina que tinha uma deficiência na perna foi a Cinderela da trama das sete e formou o melhor casal da história junto de Felipe, praticamente a reencarnação do príncipe encantado.

O par era tão bom que teve três vilãs para separá-lo: a patricinha Jéssica (Karen Junqueira), a invejosa Carmela (Chandelly Braz) e a arrogante Vitória (Betty Gofman). A ex-namorada e a mãe de Felipe, juntamente com a irmã de Shirlei, atrapalharam muito o romance, movimentando o núcleo, que virou o melhor do enredo de longe, ofuscando o triângulo central. Foi a única parte da produção que se manteve atrativa ao longo dos meses, no melhor estilo conto de fadas. Sabrina deu um show em cena e viveu um grande momento na carreira. Foi o maior destaque do folhetim, esbanjando química com Marcos Pitombo.

O elenco, inclusive, teve bons nomes e alguns se sobressaíram, embora nem todos tenham tido o destaque merecido. Marisa Orth pôde exercer uma faceta dramática pouco explorada através da batalhadora Francesca; Grace Gianoukas foi a grata surpresa da novela e deu um show na pele da arrogante Teodora (até um spin-off na Globo Play ganhou); Chandelly Braz brilhou vivendo a complexa Carmela (cuja vilania teve explicação na hora que sua culpa pelo problema na perna de Shirlei foi revelada); Agatha Moreira se destacou vivendo a Camila “boa” e a Camila “má”; Fernanda Vasconcellos convenceu vivendo a sua primeira vilã; Karen Junqueira fez uma Jéssica odiável; Bruna Griphao emocionou com o drama de Carol; Malu Mader, Carolina Ferraz, Ellen Roche e Renata Augusto formaram um ótimo quarteto; Tatá Werneck e Gabriel Godoy tiveram uma evidente sintonia; João Baldasserini se destacou vivendo o seu primeiro perfil cômico na carreira; e a participação de Cristina Pereira interpretando a tia Safira engrandeceu o núcleo Abdala. Já Mariana Ximenes, apesar do enredo fraco, conseguiu compor uma Tancinha carismática. Pena que Cláudia Jimenez, Conrado Caputo e Marcelo Médici não foram valorizados como mereciam.

A reta final da novela expôs com maior nitidez a barriga da produção. O autor quis guardar tudo para o fim, resultando em uma correria que comprometeu todo o conjunto, deixando vários desfechos superficiais e decepcionantes. A entrada de Guido no último mês foi um erro grave, implicando em resoluções forçadas. O público não teve tempo de acompanhar os possíveis embates entre ele e Francesca, muito menos a reaproximação do pai com os filhos.

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Para piorar, uma das revelações mais aguardadas não teve impacto algum: a cena em que Guido conta para Shirlei que é seu pai verdadeiro não chocou ninguém, nem Felipe, que é enteado do sogro. A situação foi resolvida em poucos minutos, ficando nisso. E nem deu para ver a reação de Carmela porque foi a única filha que nem soube da volta dele. Ao menos Chandelly Braz e Sabrina Petraglia protagonizaram boas cenas nos últimos momentos, depois da revelação sobre a culpa da vilã na deficiência da irmã.

E toda a resolução do triângulo Bruna, Camila e Giovanni foi feita de forma primária. O último embate entre a filha de Gigi e a psicopata foi muito mal dirigido, implicando em cenas sem qualquer impacto. Após ter mantido Giovanni preso, a víbora levou um golpe de Camila e acabou morrendo queimada em uma explosão. Cenas que poderiam ter sido empolgantes, mas decepcionaram. O mesmo vale para o corrido desfecho de Jéssica e Vitória, que sofreram um acidente de carro depois que sequestraram Carmela em um tempo recorde —- Carmela ligou para avisar que contaria tudo para a polícia (sobre a armação contra Shirlei) e em menos de 30 segundos foi pega pela vilã. As cenas pareceram simplesmente jogadas na cara do telespectador, sem cuidado algum. Um atropelo de acontecimentos que poderia ter sido facilmente evitado se Ortiz não tivesse enrolado tanto, se preocupando em fechar os núcleos aos poucos — como fez em “Alto Astral”, inclusive.

O ponto positivo do final foi a sequência do casamento de Shirlei e Felipe, repleta de clichês, fazendo jus ao que o casal representou. A delicadeza esteve presente e os atores emocionaram. A reconciliação de Shirlei e Carmela também merece menção, comprovando que o enredo da menina com um problema na perna foi realmente o mais rico da trama —- e claramente copiado de “Torre de Babel”. Já a dúvida de Tancinha se arrastou até o final, dominando todo o último capítulo. Como já estava claro no roteiro, ela ficou com Apolo, dispensando Beto. O atrapalhado filho de Penélope, por sinal, acabou se apaixonando por uma ativista interpretada por Paolla Oliveira. E Teodora abriu mão de sua fortuna, indo morar com Tarzan na ilha onde se conheceram. A melhor cena do desfecho foi a reconciliação de Tancinha e Fedora, sendo necessário destacar Tatá Werneck e Mariana Ximenes.

“Haja Coração” foi um sucesso de audiência, mas os números altos não refletiram a qualidade da mesma. Não foi uma novela ruim. O saldo geral é mediano, levando em consideração os erros e os acertos da mesma. Entretanto, tinha tudo para ter sido um folhetim excelente, pois apresentou todos os ingredientes necessários de uma deliciosa trama das sete —- até por isso os índices corresponderam, vale ressaltar. Só que o desenvolvimento equivocado de vários personagens e núcleos prejudicou muito o conjunto. A decepção acabou se fazendo presente, causando a sensação de que tudo poderia ter sido infinitamente melhor do que foi. E realmente poderia.

SOBRE O AUTOR

SÉRGIO SANTOS é apaixonado por televisão e está sempre de olho nos detalhes, como pode ser visto em seu blog. Contatos podem ser feitos pelo Twitter ou pelo Facebook.

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