As Filhas da Mãe (2001) foi uma tentativa do autor Silvio de Abreu e do diretor Jorge Fernando de resgatar a comédia rasgada e despudorada na faixa das 19h, estilo que consagrou a dupla nos anos 1980. Mas, infelizmente, a produção não empolgou e se tornou um grande fiasco de audiência.

Claudia Raia
Reprodução

Além da baixa audiência, a novela enfrentou uma polêmica ainda antes da estreia. Tudo por conta de Ramona, interpretada por Claudia Raia (foto acima), uma personagem transexual. Na história, a designer afirma ser Ramón, um dos filhos de Lulu de Luxemburgo (Fernanda Montenegro), que passou por uma cirurgia de redesignação sexual na Europa.

Por conta desta história, As Filhas da Mãe acabou gerando um impasse entre a Globo e o Ministério da Justiça.

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Desvirtuamento

Claudia Raia - As Filhas da Mãe
Divulgação / Globo

De acordo com a Folha de São Paulo de 3 de junho de 2001, a obra, que estrearia em agosto daquele ano, foi liberada pelo Ministério da Justiça para ir ao ar apenas às 20h, por promover o “desvirtuamento dos valores éticos”, segundo o Diário Oficial da União. A avaliação se referia justamente à presença de Ramona, uma mulher transexual.

A Globo decidiu então entrar com um recurso, pedindo que a classificação indicativa fosse novamente avaliada, sem que houvesse a alteração da sinopse. A emissora ainda informou que não existia a possibilidade de trocar As Filhas da Mãe de lugar com O Clone, a próxima atração das oito, de Gloria Perez, que estreou em outubro.

Na mesma semana, executivos do canal foram até Brasília para tentar uma nova negociação. Luiz Erlanger, então diretor de Comunicação da Globo, disse à reportagem que o processo de negociação era comum, uma vez que nem sempre a sinopse dá a ideia exata do que será a novela.

Já a assessoria do Ministério da Justiça informou que a decisão estava nas mãos da secretária nacional de Justiça, Elizabeth Sussekind, e que por estar viajando, ainda não havia deliberado sobre o caso.

Críticas

Silvio de Abreu
Reprodução

Silvio de Abreu (foto acima) contou que a sexualidade de Ramona seria um mistério. Não se sabia se ela era ou não uma mulher trans, por se recusar a fazer um teste de DNA, o que geraria a desconfiança de ela ser uma impostora. Silvio ainda disse que escreveu o papel especialmente para Claudia Raia.

A intérprete de Ramona descreveu seu papel como “uma personagem riquíssima, e que oferece as duas versões, podendo ser ou não transexual”. A artista aproveitou para criticar a decisão do Ministério da Justiça, que classificou que sua personagem promoveria o “desvirtuamento de valores éticos”.

“O que é ético? A erotização infantil, as meninas que vão a baile funk sem calcinha, a dancinha da garrafa às quatro da tarde no domingo, as bundas em profusão? Isso é uma hipocrisia”, disparou.

Em seguida, a atriz questionou que mal uma pessoa transexual poderia oferecer à sociedade.

“O Brasil está tão abandonado na área social, na educação e na saúde, e eles estão preocupados com uma personagem transexual. Essa atitude me deixa assustada. É um absurdo”, completou.

Liberação

Bete Coelho, Claudia Raia e Andrea Beltrão - As Filhas da Mãe
Divulgação

Na edição do dia 10 de julho, a Folha informou que, após uma longa negociação, a Globo conseguiu que o Ministério da Justiça voltasse atrás em sua decisão e liberasse a exibição de As Filhas da Mãe para o horário das 19h.

Elizabeth Sussekind, a secretária nacional de Justiça que deliberou sobre o caso, disse que recebeu queixas de alguns setores da sociedade, sobretudo de pessoas evangélicas e católicas, reclamando da abordagem sobre a transexualidade na novela (que, diga-se, nem havia estreado).

“A reclamação era para que a novela não incentivasse, não fosse uma propaganda do ‘transexualismo’ (sic). Que o heroísmo da personagem não estivesse associado ao fato dela ser transexual, fazendo parte de todo um glamour especial”, explicou a autoridade.

Elizabeth ainda citou o caso da garota de programa Capitu (Giovanna Antonelli), de Laços de Família (2000), para embasar sua decisão. Segundo ela, a prostituição não era considerada um crime, mas, no caso da personagem Ramona, a abordagem sobre a transexualidade ainda era um assunto obscuro no país. No entanto, ela disse não ter identificado nenhum problema sobre o conteúdo da novela após a leitura da sinopse.

“Existe transexualismo (sic) na sociedade. Isso é um fato social. Com passar do tempo, pode ser visto de uma maneira mais tranquila. A novela pode até ser positiva e desmistificar. Mas se não for séria, se for uma banalização, abordando de maneira preconceituosa ou como propaganda, o efeito é contrário”, concluiu.

É necessário contextualizar que o termo “transexualismo” usado pela secretária de Justiça em 2001 não é mais aceito em nossa sociedade, pois é considerado pejorativo.

Na novela, a personagem não sofreu rejeição do público ao viver um romance com Leonardo (Alexandre Borges). Mas, caso a novela fosse feita nos dias atuais, Ramona teria que ser vivida por uma atriz transexual.

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Sebastião Uellington Pereira é apaixonado por novelas, trilhas sonoras e livros. Criador do Mofista, pesquisa sobre assuntos ligados à TV, musicas e comportamento do passado, numa busca incessante de deixar viva a memória cultural do nosso país. Escreve para o TV História desde 2020 Leia todos os textos do autor