Há 27 anos, de forma incomum, a Globo finalizava a exibição da novela Fera Ferida. Folhetim de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares, inspirado em tramas e personagens de Lima Barreto, Fera Ferida conquistou o público das 20 horas ao reunir um time de estrelas, encarregado de personagens curiosos e divertidos, numa envolvente narrativa centrada na vingança de Raimundo Flamel (Edson Celulari).
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Em virtude dos jogos da Copa do Mundo daquele ano, realizada nos Estados Unidos, a atração teve seu último capítulo exibido no sábado, 16 de julho, e reapresentado no domingo, logo após o Fantástico. Neste dia, o Brasil conquistou o tetracampeonato ao vencer a Itália nos pênaltis. Vale lembrar que a trama anterior, Renascer, também teve seu final mostrado num sábado, desta vez em virtude do Campeonato Brasileiro.
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Confira outros bastidores da produção:
– Aguinaldo Silva, um dos autores, declarou na época da estreia da novela: “Ano passado, me pediram uma minissérie. Pensei: quem vou fazer agora? […] Aí eu lembrei do Lima Barreto (foto abaixo). E tinha o seguinte: há uns anos morreu um grande escritor de TV, o Armando Costa. Depois do enterro ficamos eu e o Paulo Afonso Grisolli conversando no cemitério sobre essa coisa do escritor brasileiro, que não tem prestígio, não ganha dinheiro. Enquanto a gente conversava, sentei num túmulo. Quando fui ver, era do Lima. Achei que devia haver algum desígnio pra isso acontecer”.
– O protagonista Raimundo Flamel surgiu do conto A Nova Califórnia (1948). Este seria o título da novela, até a opção por Fera Ferida, certamente, influenciada pelo lançamento do disco As Canções que Você Fez Pra Mim, um tributo às composições de Erasmo Carlos e Roberto Carlos. Outras obras de Lima Barreto serviram de base para a trama: Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), Numa e a Ninfa (1915), O Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), Clara dos Anjos (1948) e O Homem que Sabia Javanês (1948).
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– O Homem Que Sabia Javanês, aliás, foi adaptado posteriormente num episódio da série Brasil Especial, veiculado na Terça Nobre, em novembro de 1994 (quatro meses após o término da novela). A produção de Guel Arraes, João Falcão e Jorge Furtado contava com Marco Nanini, Fernanda Torres, Rogério Cardoso, Cláudio Mamberti e Giulia Gam (a Linda Inês de Fera Ferida).
– Muitos dos personagens de Fera Ferida vieram de junções dos diversos tipos criados por Lima Barreto. Como o professor Praxedes de Menezes (Juca de Oliveira), desenvolvido com base no Capitão Pelino, de Clara dos Anjos, e no gramático Lobo, de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Já Afonso Henriques (Otávio Augusto) foi assim batizado por conta do nome completo do escritor, Afonso Henriques de Lima Barreto.
– Afonso Henriques guarda outras semelhanças com o autor. A trajetória do personagem, impedido de publicar seus textos pelos poderosos de Tubiacanga, se assemelha a de Lima Barreto, banido da imprensa fluminense por Edmundo Bittencourt, após escrever um livro sobre a redação do jornal de propriedade deste último, o Correio da Manhã. Também como homenagem, a cenografia utilizou uma foto de Lima Barreto, usando a faixa presidencial, para adornar o gabinete do prefeito Demóstenes Maçaranduba (José Wilker).
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– Outros personagens de Lima Barreto nomearam as ruas e praças da cidade cenográfica. Além da rua Gonzaga de Sá e da praça Policarpo Quaresma, havia a rua Escrivão Isaías Caminha, onde se localizava a casa de Clara dos Anjos (Érika Rosa). Até os estabelecimentos comerciais foram batizados de acordo com as obras de Lima, como o armarinho Bagatelas, título de um dos livros do autor. Nomes veiculados à vida pessoal de Lima Barreto também foram utilizados, como na rua Geraldina Leocádia da Conceição, nome de sua avó materna, e rua Lazarillo de Tormes (onde ficava a casa de Flamel), pseudônimo utilizado por Barreto.
– A cidade cenográfica, aliás, foi um dos destaques de Fera Ferida. Com 30.000 metros quadrados, superou Pedra Sobre Pedra (1992) e passou a deter o título de maior cidade cenográfica construída pela TV Globo, até então. E com um diferencial: o cenógrafo Mário Monteiro não se inspirou em cidades reais, mas sim no livro O Rio de Janeiro de Lima Barreto e nos personagens da sinopse de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares. Tubiacanga contava com um cemitério com 460 campas, um ancoradouro, uma ponte e um rio, abastecido com um milhão de litros de água e um sistema de bombeamento que produzia o efeito de correnteza, sugando a água de uma margem e a despejando na outra.
– Quatrocentos profissionais trabalharam na construção da cidade cenográfica, num esquema de revezamento que incluía turnos de dia e a noite, para entregar o projeto em 30 dias. Após as primeiras gravações, novo trabalho: envelhecer a cidade, a princípio produzida para as cenas de flashback vistas no primeiro capítulo. As folhas dos arbustos foram retiradas e a ponte de ferro passou por um processo de enferrujamento. O casarão em que Flamel vivia foi construído de forma que o personagem pudesse observar a movimentação em cada ponto da cidade. E também era visualizado em qualquer uma das vielas de Tubiacanga.
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– Raul Travassos fora o responsável pelos cenários em estúdio, que buscavam refletir a personalidade dos “moradores”. Assim, o casarão de Flamel possuía um tom gótico, enquanto a casa de Margarida Weber (Arlete Salles) vinha com elementos da cultura alemã. Já a fachada de Major Bentes (Lima Duarte), adornada por sua falecida esposa, fora envelhecida para dar a impressão de não ter sido tocada desde a morte da senhora Bentes.
– A tecelagem de Linda Inês contava com quatro teares artesanais com mais de cem anos, encontrados na cidade de Carmo do Rio Claro, em Minas Gerais, além de duas rocas e cem ovelhas da raça corriedale, capazes de produzir, em média, cinco quilos de lã. O professor Edson Ramos da Siqueira, da faculdade de medicina veterinária e zootecnia de Botucatu, em São Paulo, prestou consultoria a TV Globo, no trato com os animais.
– Maria Elisa Berredo, habitual colaboradora de Aguinaldo Silva, fazia aqui sua estreia em uma novela, como pesquisadora de texto. Fora a responsável por buscar palavras, expressões idiomáticas, frases e ditos populares a serem utilizados por cada um dos personagens da novela. Major Bentes, por exemplo, usava jargões militares como “fulano vale menos que um soldado raso”. Ataliba Timbó (Paulo Gorgulho), ex-jogador de futebol, adotava expressões relacionadas ao esporte, como “catimba” e “limpar o lance”. Paulo Gorgulho, por sinal, fez laboratório no CT do Corinthians, acompanhando treinos e conversando com os jogadores.
– A busca pelo ouro que norteava boa parte da trama de Fera Ferida era também ponto de partida para Irmãos Coragem, novela de Janete Clair que a TV Globo pretendia regravar para ocupar o horário das 18h, substituindo outro remake, Mulheres de Areia. A emissora, no entanto, decidiu guardar Irmãos Coragem para os seus 30 anos, comemorados em 1995. Duas opções foram então cogitadas para o horário das seis: Mãe e Filha, de Alcides Nogueira (que serviu de base para O Amor Está no Ar) e Alto da Serra, de Marcílio Moraes e Flávio de Campos, colaborador em Fera Ferida. Marcílio foi quem assumiu a vaga, mas com Sonho Meu, remake de duas obras de Teixeira Filho.
– Sonho Meu, aliás, fora estrelada por dois dos atores testados para o protagonista de Fera Ferida: Leonardo Vieira, vindo do sucesso de Renascer (1993), e Fábio Assunção. Rubens Caribé, também testado, acabou ficando com Guilherme Bentes, noivo de Linda Inês e filho do Major. Pouco depois, Flamel foi oferecido a José Mayer, que, exausto por conta do trabalho na minissérie Agosto (1993), recusou o convite, deixando o protagonista de Fera Ferida para Edson Celulari.
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– Linda Inês também demorou a ganhar uma intérprete. Giulia Gam recusou num primeiro momento, por conta de compromissos com o teatro. Cláudia Abreu, na época sem contrato com a Globo, também preferiu o teatro; Letícia Sabatella decidira privilegiar a família; Malu Mader, recém-saída de O Mapa da Mina, pediu para ser dispensada. A produção então voltou a procurar Giulia, que aceitou dar vida a Linda Inês após alterações no perfil da personagem, a princípio, muito romântica.
– Fera Ferida fora responsável pelo retorno de dois grandes atores à TV Globo. Juca de Oliveira estava afastado da emissora desde Pecado Rasgado, de 1978. Assim como Cláudio Marzo, o coveiro Orestes, que vinha de uma temporada na TV Manchete. Diogo Vilela, que viveria Maxwell Antenor, fora substituído por Giuseppe Oristânio, outro que retornava a TV Globo após um breve período na TV Manchete. E Neuza Borges quase deu vida à Ivonete, personagem de Juciléia Telles.
– Carolina Dieckmann, que já havia participado da minissérie Sex Appeal (1993), integrava o elenco de apoio quando foi convidada pelo diretor Paulo Ubiratan para viver Açucena, de Tropicaliente (1994). Também advinda de Sex Appeal, Camila Pitanga, aos 16 anos, encarava uma personagem de peso, Teresinha, em sua estreia às 20h.
– Fera Ferida, que estreou com 54% do total de televisores ligados, padeceu com as comparações com Renascer, que saiu do ar com mais de 65% da audiência. Os índices, no entanto, não tardaram a atingir os mesmos patamares da antecessora. Por volta do capítulo 40, Fera Ferida já havia ultrapassado os 60% de audiência.
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– Logo no início de Fera Ferida, Gonzaga Blota auxiliou Dennis Carvalho e Marcos Paulo, adiantando as cenas externas dos doze primeiros capítulos, uma vez que o cronograma da novela estava atrasado. Dennis Carvalho, aliás, saiu antes do término de Fera Ferida para tocar os trabalhos da novela seguinte, Pátria Minha (1994).
– Fera Ferida usou e abusou dos efeitos especiais para dar forma às cenas criadas por seus autores. Uma prancha de fibra, com o molde do corpo de Claudia Ohana, uma dublê e um estúdio com chroma-key foram necessários pra fazer Camila, personagem de Cláudia, levitar. Antes de sair voando pela casa, no entanto, Camila dormia rodeada por inúmeros pássaros, de diversas espécies. O “psicólogo de animais” Antonio Jayro Fagundes foi recrutado para posicionar as aves no estúdio. A cena foi finalizada em computador.
– O mesmo computador, aliás, inseriu imagens da Chapada dos Guimarães (de Mato Grosso) no entorno de Tubiacanga. Uma cachoeira de Brasília foi colocada entre duas montanhas da cidade cenográfica, as falsas pepitas de ouro de Flamel ganharam brilho e raios e trovões circundaram Orestes em sua chegada à Tubiacanga. Efeitos produzidos, no computador, sob a coordenação de Eduardo Halfen.
– As receitas de Ilka Tibiriçá (Cássia Kis Magro) fizeram um sucesso absurdo! Um dos afrodisíacos quitutes, maionese de ovos de codorna com codornas assadas, veio do livro de receitas do autor Aguinaldo Silva. As receitas eram baseadas em pratos reais, com mudanças realizadas pelos autores para atender às investidas de Ilka em “levantar a moral” de Ataliba Timbó.
– As camisas sem gola, batizadas de “Flamel” viraram moda. Não só o protagonista vestia o modelo, inspirado no filme Lawrence da Arábia, de David Lean. Áureo Poente (Cláudio Fontana) e Wotan (Norton Nascimento) também surgiram com a peça.
– A cena política do momento acabou invadindo Fera Ferida. A esfuziante Perla Menescal (Cláudia Alencar) vai, sem calcinha, receber as chaves da cidade da mão de Demóstenes, causando alvoroço em Tubiacanga. Uma paródia do episódio envolvendo a modelo Lílian Ramos, fotografada sem a peça íntima ao lado do então presidente Itamar Franco no Sambódromo do Rio de Janeiro. Fernando Collor de Melo também foi satirizado quando Áureo Poente ingressou na política, com visual similar ao do presidente que renunciara no ano anterior, além de gestos e falas que remetiam ao discurso de Collor. Outros políticos tiveram frases de seus pronunciamentos adaptadas para o roteiro de Fera Ferida; dentre eles, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Orestes Quércia.
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– Fera Ferida foi exibida em Portugal pela RTP, coprodutora de Pedra Sobre Pedra. Por lá, a novela estreou numa quinta, após intensa divulgação em jornais e revistas e em meio a uma promoção que distribuiu 24 automóveis entre os telespectadores. O resultado de tamanho investimento foi notado na audiência: Fera Ferida se tornou líder logo em sua primeira semana de exibição, batendo Mandala, exibida pela mesma RTP, e Mulheres de Areia, no ar na concorrente SIC. Foi a primeira vez também que a RTP exibiu uma produção da TV Globo enquanto ela ainda estava no ar no Brasil.
– Para as sequências do último capítulo, Edson Celulari e Giulia Gam viajaram para o Vale do Loire, em Chaumont, na França, onde Flamel e Linda Inês encontravam Mestre Nicolau (Ivan de Albuquerque). Um cartaz em frente ao cinema de Tubiacanga, anunciou a atração substituta, Pátria Minha. No entanto, o plano inicial do diretor Carlos Araújo era exibir um cartaz como fotos de atores, produtores e técnicos da novela, com os dizeres “Nova Califórnia, um conto de Lima Barreto”.
– Fera Ferida foi reapresentada em Vale a Pena Ver de Novo, em setembro de 1997, substituindo a reprise de A Viagem (1994). Na ocasião, a TV Globo exibia Anjo Mau às 18h, Zazá às 19h e A Indomada, também de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares, às 20h. Durante a reprise da novela, estrearam Por Amor, às 20h, e Corpo Dourado, às 19h. Fera Ferida foi substituída por Felicidade (1991), após 105 capítulos, em fevereiro de 1998. A reprise registrou 20 pontos de média.
– A lentidão do enredo – com capítulos transcorrendo sem grandes sobressaltos e uma ou outra semana com “pontos de virada” – causou estranhamento no público que acompanhou Fera Ferida no VIVA (de junho de 2015 a fevereiro de 2016) habituado às novelas movimentadas de hoje em dia. A escolha de Fera Ferida – substituindo O Dono do Mundo (1991) – também foi criticada por conta das semelhanças com Pedra Sobre Pedra, então no ar às 14h30. Durante o período em que ‘Fera’ foi veiculada no canal pago, foram exibidas também Cambalacho (14h30), Tropicaliente e Despedida de Solteiro (15h30).
– A novela esteve entre as opções da primeira enquete promovida pelo Canal VIVA, que levou Água Viva à meia-noite. Ficou em último lugar, com 13,9% dos votos. Devido à não-exibição em 31 de dezembro de 2015, noite de Ano Novo, Fera Ferida passou por um ajuste: seus dois capítulos finais foram ao ar no sábado, 13 de fevereiro de 2016, possibilitando a estreia da substituta Laços de Família (2000) na segunda-feira, 15.
– Para completar, uma curiosidade marca as três exibições de Fera Ferida. Em todas elas, a novela estreou no dia 15: novembro de 1993, setembro de 1997 e junho de 2015.