A primeira novela de Marcos Berstein como autor apresentou diversos problemas. Além do Horizonte, exibida em 2013 na faixa das sete, foi um folhetim ousado e sofreu várias mudanças em virtude da baixa audiência – conseguindo ficar atrativa da metade para o final. O escritor desenvolvia a trama em parceria com Carlos Gregório e já havia trabalhado com João Emanuel Carneiro no roteiro do aclamado filme Central do Brasil (1998) e na ótima série A Cura (2010). Chegou a ser também colaborador de Lícia Manzo na primorosa A Vida da Gente (2011). Após as experiências citadas, Marcos recebeu a missão de escrever um enredo como autor principal na Globo. Assim nasceu a deliciosa Orgulho e Paixão, que, depois de 161 capítulos, chegou ao fim nesta segunda-feira (24/09), fechando seu ciclo com um capítulo belíssimo.

A estreia do autor em um trabalho solo não poderia ter sido melhor. Berstein foi muito inteligente em adaptar vários romances de sucesso da escritora inglesa Jane Austen em uma só novela, aproveitando todo o potencial que livros como Razão e Sensibilidade (1811), Orgulho e Preconceito (1813), Mansfield Park (1814), Emma (1815), A Abadia de Northanger (1818) e Lady Susan (1871) poderiam render. E como renderam bem. Ele inseriu vários personagens marcantes da autora em sua criação e conseguiu mesclá-los com outros novos perfis através um enredo bem construído e desenvolvido com habilidade, cuja maior qualidade foi o ritmo ágil. O telespectador não podia se dar ao luxo de perder um ou dois capítulos na semana.

A trama esteve recheada de personagens carismáticos e casais apaixonantes. Aliás, nunca antes um folhetim conseguiu apresentar tantos romances encantadores juntos. Não faltou par para “shippar” e Berstein fez questão de destacar cada um através de ciclos que se abriam e fechavam dentro do enredo. Tanto que foram vários casamentos realizados bem antes das últimas semanas de novela. E, quase sempre, quando há casório na ficção antes do final é porque haverá alguma desgraça ao longo dos meses. Não foi o caso da trama das seis.

As cerimônias muitas vezes serviam como um elemento vital para o prosseguimento do conflito dos pares, vide o caso de Cecília (Anaju Dorigon) e Rômulo (Marcos Pitombo), que precisaram enfrentar as maldades de Tibúrcio (Oscar Magrini) e Josephine (Christine Fernandes) na Mansão do Parque. Jane (Pâmela Tomé) e Camilo (Maurício Destri) são outros bons exemplos, pois o casal encarou as dificuldades financeiras em virtude da retaliação da então amarga Julieta (Gabriela Duarte).

A história teve leveza, comédia e dramaticidade bem equilibradas, explorando com astúcia todas essas características e proporcionando para o telespectador uma sucessão de atrativos acontecimentos ao longo de seis meses. Os mocinhos Darcy Williamson (Thiago Lacerda) e Elisabeta Benedito (Nathalia Dill) tiveram uma boa química e passaram por várias provações, fazendo jus ao bom dramalhão. Mas eram perfis inteligentes e ativos. Nunca recuaram diante dos vilões e as separações do casal não duravam muito tempo justamente por causa da rápida descoberta das armações de seus algozes.

A constante movimentação do enredo, inclusive, proporcionou um rodízio de vilanias. Inicialmente, Susana (Alessandra Negrini) e sua fiel escudeira Petúlia (Grace Gianoukas) eram as responsáveis pelas maldades (várias delas cômicas) e depois cederam lugar para o intransigente Lorde Williamson (Tarcísio Meira em uma luxuosa participação, que infelizmente precisou ser interrompida por uma infecção pulmonar do ator).

A chegada da poderosa Lady Margareth (Natália do Vale em um de seus melhores momentos) resultou em uma das maiores viradas da novela e a perua inglesa que odiava o Brasil logo virou a grande vilã da história, praticando maldades em quase todos os núcleos. Era uma víbora bem maniqueísta daquelas que o público ama odiar. Movimentou o roteiro até o fim, destacando o talento da veterana que não era valorizada assim há muito tempo.

A tia de Darcy ainda virou uma espécie de ‘capitã’ dos vilões, o que acabou beneficiando outros perfis sem escrúpulos como Xavier (Ricardo Tozzi), Uirapuru (Bruno Gissoni) e a já citada Josephine. A sogra de Cecília, por sinal, fez da vida da nora um inferno e ainda tentou prejudicar o romance de Brandão (Malvino Salvador) e Mariana (Chandelly Braz). Christine também recebeu o devido valor do escritor e pela primeira vez viveu um perfil de importância nas novelas da Globo. Os maus eram tão bem construídos quanto os bons, embora maniqueístas (o que não é demérito algum).

Todavia, houve espaço também para personagens complexos. Julieta Bittencourt foi o melhor papel da carreira de Gabriela Duarte, conseguindo “empatar” com a mimada Maria Eduarda, de Por Amor (1997). A Rainha do Café parecia uma víbora no início do enredo, mas aos poucos o público foi conhecendo o lado humano e o passado sofrido da poderosa mulher que se defendia com um tom arrogante e autoritário. Seus conflitos com Camilo resultavam sempre em grandes cenas e a descoberta do amor – através da relação com Aurélio – serviu como um desarme após longos anos vivendo um luto pela sua própria dor, física e emocional.

A química da atriz com Marcelo Faria foi imediata e o casal fez um merecido sucesso. O romance marcou a virada da personagem, que resolveu reconstruir sua vida e suas relações. Gabriela se entregou por completo e merece indicações como Melhor Atriz Coadjuvante nas futuras premiações. Vale citar, ainda, Fani (Thammy Di Calafiori), cujas atitudes frias eram justificadas pelo passado doloroso em virtude de uma traumática separação familiar e amorosa – foi ”doada” pela mãe e separada de Edmundo (Nando Rodrigues) pelo preconceituoso patrão Tibúrcio, além de ter sido manipulada por Josephine.

Os romances açucarados rechearam a história com cenas sensíveis e até lúdicas. Como já mencionado, foram muitos pares apaixonantes e todos com bom destaque. O par Ema (Agatha Moreira) e Ernesto (Rodrigo Simas) foi um dos melhores e o relacionamento improvável deu tão certo que o autor aumentou significativamente a importância dos personagens, que passaram a dividir o protagonismo com a família Benedito. A química entre os atores foi imensa e o jogo de gato e rato entre a Baronesinha e o Carcamano divertiu.

Berstein ainda tinha uma carta na manga que só usaria depois da metade de seu folhetim: o amor de Luccino (Juliano Laham) e Otávio (Pedro Henrique Muller). A homossexualidade foi tratada com toda delicadeza possível e a construção daquele envolvimento se mostrou um dos muitos êxitos da produção. A sintonia ficou evidente, os atores emocionaram e ainda houve a quebra de um tabu da faixa das seis, que nunca havia exibido um beijo entre iguais em 47 anos. O par se juntou aos vários bem conduzidos pelo escritor.

Vale mencionar, inclusive, a habilidade que o criador do enredo teve para abordar questões atuais em uma novela de época. Mesmo ambientada em 1910, Orgulho e Paixão conseguiu explorar o empoderamento feminino, o machismo, a homossexualidade, a violência contra a mulher e outros assuntos importantes de forma muito mais competente que vários folhetins atuais, como Segundo Sol, por exemplo. Vide a impactante cena em que Mariana teve seus cabelos cortados à força por Xavier, o forte momento da intolerância de Gaetano (Jairo Mattos) diante da condição sexual de Luccino e a dilacerante sequência da revelação dos constantes estupros sofridos por Julieta. Cenas de forte apelo dramático e reflexivo. A licença poética em torno dos vários casais que transaram antes de casar ou em cima da aceitação aparentemente rápida a respeito de Luccino acabou sendo bastante válida e não atrapalhou em nada a condução do enredo. Pelo contrário, mostrou-se útil para a abordagem de temas pertinentes.

A valorização do bem escalado elenco foi outro ponto alto, assim como a trilha sonora de qualidade com músicas escolhidas para cada casal ou personagem, fugindo da falta de personalidade que vem acometendo vários outros folhetins. Fred Mayrink fez uma ótima direção e foi muito feliz nessa preocupação em torno da escolha de uma canção para cada romance. Nathalia Dill, Thiago Lacerda, Anaju Dorigon, Vera Holtz ( hilária na pele da espalhafatosa Ofélia), Tatu Gabus Mendes (Felisberto), Gabriela Duarte, Christine Fernandes, Natália do Vale, Marcos Pitombo, Maurício Destri, Pâmela Tomé, Chandelly Braz (em seu melhor momento), Agatha Moreira, Rodrigo Simas, Marcelo Faria, Grace Gianoukas e Alessandra Negrini formando uma dupla perfeita, Rosane Gofman (Nicoleta), Thammy Di Calafiori, Vânia de Brito (Dona Agatha), Bruna Griphao (Lidia), Isabella Santoni (Charlotte), Joaquim Lopes (Olegário), Laila Zaid (Ludmila), Silvio Guindane (Januário) e Ary Fontoura – impagável vivendo o rabugento Barão de Ouro Verde (que em virtude do sucesso acabou tendo sua morte, prevista para o segundo mês de novela, adiada para a última semana) – foram alguns dos muitos destaques da produção.

Outra qualidade foi a coragem da exibição de vários pequenos musicais dentro do enredo, sem prejudicar a narrativa. A ideia do autor começou timidamente através de Lídia e Randolfo (que só conseguia se livrar da gagueira cantando), mas acabou estendida a todos os núcleos, aproveitando a maioria dos personagens, sempre em função do casal atrapalhado. Os números remeteram aos clássicos da Disney e o clima de conto de fadas que sempre predominou no folhetim ficava ainda mais evidente durante esses momentos. Deu gosto de ver as performances dos atores e as coreografias, tão bem ensaiadas, em cenas que homenageavam a infância do telespectador. A própria abertura da novela, com belíssimas animações ao som de Doce Companhia, cantada pela talentosa Lucy Alves, já caracterizava bem a trama – assim como os caprichados congelamentos no fim de cada capítulo.

Porém, nem tudo deu certo, como é normal em qualquer folhetim. O núcleo protagonizado por Jorge (Murilo Rosa) e Amélia (Letícia Persiles) ficou avulso em virtude do sucesso do casal “Erma”. O intuito era colocar Jorge como par de Ema, assim como no livro de Jane Austen, mas o improvável funcionou infinitamente melhor e o advogado perdeu a função. Tanto que Amélia morreria logo no início para o romance do personagem seguir com a filha de Aurélio. O autor decidiu deixá-la viva para fazer companhia a Jorge, mas eles não tiveram enredo. A apreensão por causa da doença dela não era o bastante para despertar interesse. Junto com eles, inclusive, Mariko (Jaqueline Sato) também acabou deslocada, assim como Tenória (Priscila Marinho) e Estilingue (JP Rufino vivendo mais um tipo igual aos últimos que interpretou) – ao menos o enredo da empregada ser filha do Barão de Ouro Verde acabou deslanchando na reta final. Outro erro foi a escalação de Ricardo Tozzi para viver Xavier. O ator é fraco e não convenceu na pele do vilão, embora o perfil tenha sido interessante e movimentado o roteiro. Mas foram erros muito pequenos e não atrapalharam em nada o conjunto harmonioso da produção.

A reta final da história foi empolgante e emocionante, honrando a qualidade da novela. O lindo musical do casamento de Lidia e Randolfo se mostrou um primor, enquanto a morte do Barão resultou na sequência mais delicada e linda de Orgulho e Paixão , fechando a participação de Ary Fontoura com brilhantismo. Impossível não ter chorado.

O penúltimo capítulo se mostrou eletrizante, sendo necessário destacar a queda de Josephine no penhasco, após ter sido vítima de sua própria armadilha e a sequência de tirar o fôlego em torno da bomba colocada no trem por Xavier, resultando em um desespero geral dos personagens que viajavam para a inauguração da ferrovia construída por Darcy. Parecia um filme do “007”, sem exagero. A briga entre Brandão e Xavier em cima do vagão e as atitudes dignas de uma super heroína de Elisabeta (que jogou a bomba para fora do trem e ainda ajudou a freá-lo com Ernesto e Darcy) foram de tirar o fôlego. Aquela típica ação que faz parte dos momentos decisivos de qualquer bom roteiro.

O último capítulo foi um verdadeiro espetáculo de poesia, fantasia e muito amor. Após seus planos fracassarem, Lady Margareth se matou e Natália do Vale fechou sua participação brilhantemente. Petúlia ter virado a “madama” e Susana a sua empregada foi uma sacada de mestre, assim como Uirapuru ter ficado impotente e Tibúrcio enlouquecido em sua mansão. A passagem de tempo de cinco anos serviu para apresentar as novas famílias formadas e a ironia de todas as irmãs Benedito terem apenas filhos homens foi genial, assim como Luccino e Otávio morarem em casas vizinhas que se ligam com uma porta no corredor. O livro de Elisabeta recebeu o título da novela e a narração final da mocinha emocionou com um texto belíssimo de Berstein. A chuva de tinta que caiu sobre o Vale do Café, em mais uma armação fracassada de Susana e Petúlia, coroou o desfecho com o toque lúdico que o enredo sempre carregou. Todos felizes e coloridos.

“No Vale do Café, as coisas não são exatamente como as pessoas acham que seja. Temos homens e mulheres de hábitos retrógrados e imutáveis que apenas pensam em manter as coisas que aprenderam dos seus pais. Mas aqui também temos homens maravilhosos que tratam mulheres como iguais.Também temos jornalistas, médicas, enfermeiras, lavadeiras. Até uma Rainha do Café. Talvez seja apenas um mundo de sonhos, de cores fortes como essas que caíram do céu naquele dia. Talvez só exista na cabeça dos desejosos de amor pleno e generoso. Mas se um dia uma pessoa não tiver sonhado com aquilo que hoje chamamos de casa, um lar para viver, talvez ainda estivéssemos todos nas cavernas e não teríamos um lugar para chamar de lar. E hoje temos, eu tenho. O meu lar se chama Vale do Café. O nosso lar dos sonhos.”

Orgulho e Paixão foi uma trama despretensiosa, leve, inteligente e desenvolvida com maestria por uma equipe que transpareceu o amor que sentiu pela produção. Um sucesso de público e crítica. Marcos Berstein escreveu simplesmente a melhor novela de 2018 e soube apresentar uma história perfeita para a faixa das 18h. A média geral foi de 22 pontos – um ótimo índice, levando ainda em consideração o Horário Eleitoral na reta final – e merecia muito mais. Tudo o que se espera de um folhetim desse horário foi apresentado com extremo capricho pelo autor, que criou vários personagens encantadores e romances açucarados cativantes. A saudade já se faz presente e essa deliciosa história ficará na memória do público. Jane Austen com certeza estaria feliz.


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Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor