Em 1984, com menos de um ano de existência, a extinta TV Manchete aprontou para cima da Globo. A emissora de Adolpho Bloch (1908-1995) conseguiu os direitos exclusivos de transmissão dos desfiles de Carnaval do Rio de Janeiro, tirando da Globo o principal espetáculo momesco do país, pela primeira vez em um sambódromo.

Foi sintonizada por 70% dos televisores da cidade, contra apenas 8% na Globo. A Manchete, que se tornaria referência em transmissão de Carnaval, “passou a perna” na Globo, segundo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.

Até 1983, os desfiles do Rio de Janeiro aconteciam nas ruas da cidade, como as avenidas Marquês de Sapucaí e Presidente Vargas, com estrutura móvel montada a cada ano. Em setembro de 1983, o então governador Leonel Brizola (1922-2004) anunciou a construção do sambódromo, na própria Marquês de Sapucaí, ideia do vice-governador Darcy Ribeiro (1922-1997), projetada por Oscar Niemeyer (1907-2012).

A obra foi feita em prazo recorde e inaugurada a tempo para os desfiles de 1984, que, no entanto, tiveram uma importante mudança. Até então, os desfiles eram realizados somente no domingo de Carnaval, com longa duração. A nova configuração oferecia desfiles no domingo e na segunda, como acontece até hoje.

A Globo, capitaneada pelo então todo-poderoso José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, foi contra a mudança, que atrapalharia sua grade de programação. A emissora alegou motivos técnicos para declinar da transmissão. Dessa forma, os direitos exclusivos caíram no colo da Manchete, que pagou 210 milhões de cruzeiros para obtê-los.

A história tem várias versões, além da suposta falta de condições técnicas da Globo. Ao blog Ouro de Tolo, especializado em Carnaval, o então narrador da Manchete, Paulo Stein, disse que a Globo não acreditava em Carnaval de dois dias. O fato é confirmado por Boni em O Livro do Boni, com um acréscimo. Segundo Boni, a Manchete “passou a perna” na Globo.

“O governo, com o sambódromo na mão, assumiu a negociação dos direitos. A coisa foi engrossando e, pressionado, achei uma saída: combinei com o Moysés Weltman [então diretor de programação da Manchete], que ele compraria o Carnaval sozinho e depois repassaria a minha parte. Esse compromisso foi assumido pedra e cal, depois dele ter consultado o Adolfo Bloch. Uma vez assinado o contrato, no entanto, o Weltman não me atendia mais, e o Bloch não respondia nenhum telefonema do dr. Roberto Marinho, que declarou guerra ao Adolpho Bloch. Ficamos fora do Carnaval”, escreveu Boni.

A Manchete tratou de tirar proveito da exclusividade. “Queremos dar um show. Não somos nem um pouco modestos”, disse o próprio Weltman (1932-1985) à revista Veja de 18 de janeiro de 1984. Na reportagem, a Globo foi esnobe. “Carnaval não é coisa que prenda o telespectador na cadeira”, disse João Carlos Magaldi, então diretor de comunicação da Globo.

A transmissão teve narração de Paulo Stein e comentários de Fernando Pamplona (1926-2013), Haroldo Costa, Sérgio Cabral, Albino Pinheiro (1934-1999), Maria Augusta, entre outros. A direção ficou por conta de Weltman, Maurício Sherman e Mauro Costa (1939-2011).

Foi uma lavada, como o próprio Boni admitiu em seu livro. A Manchete dedicou toda a sua programação ao Carnaval, transmitindo os desfiles e os bailes, passando compactos durante o dia, fazendo debates e programas especiais. O slogan era “Carnaval Total, Carnaval Brasil”.

Já a Globo fez a cobertura jornalística da festa, com flashes e o slogan “Programação Normal e o Melhor do Carnaval”. No domingo, após o Fantástico, foi exibido o filme inédito Bonnie e Clyde: uma Rajada de Balas. Foi a primeira vez que a revista eletrônica dominical, criada em 1973, perdeu de ponta a ponta. Na segunda-feira, foi exibido capítulo normal da novela das oito Champagne, de Cassiano Gabus Mendes.

“No Rio, a Manchete deitou e rolou na audiência, mas, no resto do Brasil, sem Carnaval, a programação da Globo cresceu em relação aos anos anteriores. Essa é a verdade completa da história. O Brizola, de forma demagógica, tentou inventar que a Globo quis boicotar o sambódromo. Uma infantilidade. Não iríamos perder o evento por causa disso”, explicou Boni em seu livro.

Texto da Veja de 14 de março de 1984 confirmou que os números superlativos da Manchete ficaram restritos ao Rio de Janeiro. Mas isso não diminuiu o entusiasmo dos integrantes da emissora. “Nem nos meus sonhos mais delirantes imaginei que poderíamos obter índices tão expressivos de audiência”, disse Weltman.

Vitória de Pirro

“Quanto à Manchete, foi para ela uma ‘vitória de Pirro’ [expressão que designa quando se conquista uma vitória despendendo muitos esforços e reforços]. Cutucou o leão com vara curta. Nós, que éramos aliados deles, passamos a considerá-los inimigos e, como a característica da Globo foi sempre a de um corredor de fundo, de longa distância, a Manchete sofreu muito com o não cumprimento do acordo”, conclui Boni.

A Globo voltou a transmitir o Carnaval em 1985, em conjunto com a Manchete. Desde a falência da emissora dos Bloch, reina sozinha nas transmissões – durante poucos anos, teve a companhia da Band.


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Thell de Castro

Apaixonado por televisão desde a infância, Thell de Castro é jornalista, criador e diretor do TV História, que entrou no ar em 2012. Especialista em história da TV, já prestou consultoria para diversas emissoras e escreveu o livro Dicionário da Televisão Brasileira, lançado em 2015 Leia todos os textos do autor