Há 45 anos, a TV e a democracia brasileiras sofreram um duro golpe: a censura da novela Roque Santeiro pelo Governo Federal (em época de Ditadura do Regime Militar) minutos antes de sua estreia, às 20 horas no dia 27 de agosto de 1975. Veja em dez tópicos como tudo aconteceu.

1 – Em 1975, em comemoração ao décimo aniversário da TV Globo, a emissora programou o lançamento da novela A Saga de Roque Santeiro e a Incrível História da Viúva que Foi Sem Nunca Ter Sido – ou simplesmente Roque Santeiro -, escrita por Dias Gomes e dirigida por Daniel Filho, a nova atração do horário das oito da noite que prometia inovar o gênero.

Daniel pretendia dar uma arejada na grade da Globo. Em seu livro “Antes que me Esqueçam”, declarou: “Tínhamos planejado uma mexida no horário das oito da noite. Eu pensava que os melodramas de Janete Clair deviam ser revistos. Achávamos que era preciso dar uma renovada naquilo. Talvez fosse o momento de passar o horário das dez, que era mais de experiência e pesquisa de linguagem, para as oito. Era preciso levar para as oito o melhor autor das dez, Dias Gomes. (…) Os melodramas de Janete Clair levavam a muitas fantasias, e a crítica político-social do Dias Gomes, mais seca e ferina, dava margem para que fizéssemos um belo trabalho”.

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2 – A sinopse foi mandada para a censura junto com vinte capítulos escritos, como era exigido na época, tendo sido aprovada para as 20 horas, conforme ofício do chefe da censura, Rogério Nunes, em 04/07/1975 (“Livro do Boni”). A produção seguiu a todo vapor. O livro “Janete Clair, a Usineira de Sonhos” (de Artur Xexéo) dá conta de que a novela já tinha 51 capítulos escritos, quase 30 gravados e 10 editados. Já o “Livro do Boni” informa que foram gravados 36 capítulos.

A novela estrearia em 27/08/1975, em substituição a Escalada, de Lauro César Muniz. No dia 20, houve uma reviravolta e a censura, depois de assistir aos capítulos gravados, oficiou a Rede Globo que Roque Santeiro só poderia ser exibida às 22 horas, assim mesmo com cortes que destruiriam a obra e impediriam a sua compreensão. Tentou-se ajustar a novela às exigências da censura e ver se era possível liberar Gabriela, a atração das 22 horas, para mais cedo, permitindo uma inversão. O pedido foi negado pela censura. (“Livro do Boni”)

3 – Pairava no ar o receio de que Roque Santeiro não fosse liberada pelo Governo Federal. A Globo acreditava que a situação se resolveria. Na verdade, a equipe da novela apostava que, mais cedo ou mais tarde, o dono da emissora, Roberto Marinho, conseguiria a liberação com o próprio ministro da Justiça, Armando Falcão, com quem tinha um estreito contato. Dias Gomes só percebeu que a situação estava mesmo difícil quando soube, poucos dias antes da estreia prevista, que Falcão não estava atendendo aos telefonemas de Marinho (“Janete Clair, a Usineira de Sonhos”, Artur Xexéo).

4 – Na noite de 27/08/1975, faltando poucos minutos para começar a atração, o apresentador Cid Moreira deu a notícia no Jornal Nacional e leu o editorial escrito por Armando Nogueira, então diretor do telejornal, anunciando o veto (leia o editorial completo abaixo). O Governo justificava: “A novela contém ofensa à moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja”.

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Na verdade, as autoridades se sentiram atingidas porque enxergaram na trama uma crítica a si. A história da novela narrava a farsa de Roque Santeiro, institucionalizada pelo poder para tirar vantagens próprias. O Brasil vivia sob a Ditadura Militar, que, de certa maneira, projetava sobre o povo uma versão da história e da sociedade que não existia. Como na trama da novela.

5 – Para tapar o buraco no horário deixado pelo veto de Roque Santeiro, a Globo providenciou uma reprise compacta da novela Selva de Pedra (de 1972) e enviou para a análise da Censura Federal três novas sinopses: as adaptações dos romances “O Resto é Silêncio”, de Érico Veríssimo, e “Os Cangaceiros”, de José Lins do Rêgo, e Saramandaia, de Dias Gomes (que estrearia às 22 horas no ano seguinte). A resposta da Censura veio rápida: “Por favor, tirem a sinopse do Dias Gomes para a gente não ter de proibir de novo.” Os trabalhos de Veríssimo e Lins do Rêgo também acabaram censurados (“Janete Clair, a Usineira de Sonhos”, Artur Xexéo).

6 – A solução foi acionar Janete Clair para, às pressas, escrever uma nova trama, usando praticamente a mesma equipe de Roque Santeiro. Janete vinha roteirizando a novela Bravo!, a atração das sete horas, com a parceria de Gilberto Braga. Deixou-a nas mãos de seu colaborador e começou a trabalhar em Pecado Capital, que estreou em novembro de 1975.

7 – Para escrever Roque Santeiro, Dias Gomes baseou-se em sua peça “O Berço do Herói”, escrita em 1963, proibida, à época, pela censura do Governo Militar de ser encenada. Contando a história de um cabo da Força Expedicionária Brasileira que deserta e, por engano, é considerado herói de guerra, a Censura Federal não deixara o texto ser encenado, alegando que ele denegria a carreira militar.

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Havia mesmo um general, Amaury Kruel, que ameaçara Dias Gomes dizendo que “essa peça jamais será representada enquanto nós formos o poder”. Comandante do 2º Exército, o general Kruel tinha sido um dos pracinhas brasileiros da FEB. Ele não gostava nem um pouco de “O Berço do Herói”. Dias tirou todas as fardas de sua história e, acreditando que o Exército não tinha mais razões para se incomodar, adaptou-a para a televisão (“Janete Clair, a Usineira de Sonhos”, Artur Xexéo).

8 – Sobre a proibição de Roque Santeiro, Artur Xexéo narrou em seu livro “Janete Clair, a Usineira de Sonhos”: A sinopse estava em Brasília quando o autor recebeu um telefonema do amigo Nelson Werneck Sodré:

O que é que você está fazendo?’ – quis saber Werneck.

Uma pequena sacanagem’ – respondeu Dias. ‘Estou adaptando O Berço do Herói para a TV’.

Mas a Censura vai deixar passar?’

Não tem mais o cabo. Assim passa. Esses militares são muito burros!’

Como também era hábito, o telefone de Werneck Sodré estava grampeado. A conversa foi gravada, a censura entendeu as intenções de Dias, os militares voltaram a se sentir atingidos e a sinopse nunca foi oficialmente liberada.

9 – A classe artística se movimentou para protestar em Brasília. A ideia era levar pessoalmente ao presidente Ernesto Geisel uma carta, um manifesto dos artistas mostrando a repulsa contra a Censura Federal e a proibição da novela. Daniel Filho liderou o movimento e conseguiu juntar quase 40 artistas de peso, entre eles Paulo Gracindo, Tarcísio Meira, Glória Menezes, Regina Duarte, Juca de Oliveira e Lauro César Muniz. Em Brasília, o máximo que conseguiram foi Daniel entregar a carta em mãos ao então chefe da Casa Civil, o general Golbery do Couto e Silva (“Antes que me Esqueçam”, Daniel Filho).

10 – Dez anos depois, em 1985, com os ares liberais da Nova República, Roque Santeiro pôde enfim ir ao ar, em nova produção, tornando-se um dos maiores sucessos da TV brasileira de todos os tempos. Para a segunda versão da novela, Betty foi naturalmente pensada para o papel da Viúva Porcina, a intérprete em 1975, mas o recusou, caindo este nas mãos de Regina Duarte (“O Circo Eletrônico”, Daniel Filho).

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Editorial lido por Cid Moreira no Jornal Nacional do dia da estreia (27/08/75) sobre a censura de Roque Santeiro (extraído de O Globo, quinta-feira, 28/08/1975, página 5):

“Desde janeiro que a novela Roque Santeiro vem sendo feita. Seria a primeira novela colorida do horário das oito da noite. Antecipando-se aos prazos legais, a Rede Globo entregou à Censura Federal o script dos vinte primeiros capítulos. No dia 4 de julho, finalmente, o diretor de Censura de Diversões Públicas, Sr. Rogério Nunes, comunicava à Rede Globo: os vinte primeiros capítulos estavam aprovados para o horário das oito “condicionados porém – dizia o ofício – à verificação das gravações para obtenção do certificado liberatório”. O mesmo ofício apontava expressamente os cortes que deviam ser feitos e recomendava que os capítulos seguintes, a partir dos vinte já examinados, deviam manter – palavras textuais da censura – “o mesmo nível apresentado até agora”. Todos os cortes determinados foram feitos. A Rede Globo empregou todos os seus recursos técnicos e pessoais na produção da novela Roque Santeiro. Contratou artistas, contratou diretores, contratou cenógrafos, maquiladores, montou uma cidade em Barra de Guaratiba, enfim, a Globo mobilizou um grandioso conjunto de valores que hoje é necessário à realização de uma novela no padrão da Globo. Foram mais de 500 horas de gravação, das quais resultaram os vinte primeiros capítulos, devidamente submetidos à censura. Depois de examinar detidamente os capítulos gravados, o Departamento de Censura decidiu: a novela estava liberada, mas só para depois das dez da noite. Assim mesmo, com novos cortes. Cortes que desfigurariam completamente a novela. Assim a Rede Globo, que até o último momento tentou vencer todas as dificuldades, vê-se forçada a cancelar a novela Roque Santeiro. No lugar de Roque Santeiro, entra em reapresentação, e em capítulos concentrados, a novela Selva de Pedra, com Regina Duarte e Francisco Cuoco. Dentro de alguns dias, porém – esse é um compromisso que assumimos com o público -, a Rede Globo estará com uma nova novela no horário das oito. Para isso começou hoje mesmo a mobilização de todo o nosso patrimônio: o elenco de artistas, os técnicos, os produtores, enfim, todos os profissionais que aqui trabalham com o ânimo de apurar cada vez mais a qualidade da televisão brasileira. Foi desse ideal de qualidade que nasceu a novela Roque Santeiro e é precisamente com esse mesmo ideal que, dentro de alguns dias, a Globo estará apresentando no horário das oito da noite uma novela – esperamos – de nível artístico ainda melhor que Roque Santeiro.

Roberto Marinho, presidente das Organizações Globo”

AQUI tem a trama e o elenco completo da versão censurada de Roque Santeiro.

SOBRE O AUTOR
Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira.

SOBRE A COLUNA
Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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