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Terminando sua trajetória na Globo com sucesso, a segunda parte de Todas as Flores estreou no início de abril no serviço de streaming e teve como missão manter o interesse do público pela história, que fez um grande sucesso ano passado. A novela exclusiva do Globoplay, desenvolvida por João Emanuel Carneiro, teve sua exibição interrompida para não concorrer com o BBB23.
Sophie Charlotte e Caio Castro em Todas as Flores (Divulgação / Globo)O autor se saiu bem diante do hiato. Afinal, a continuação manteve a trama em primeiro lugar de produtos mais consumidos do streaming da Globo. Todo mundo queria saber o que aconteceria com os personagens principais. Porém, os 40 capítulos restantes, de um total de 85, ficaram muito aquém dos 45 anteriores.
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É preciso ressaltar que o enredo já tinha sido prejudicado com a passagem de tempo na reta final da primeira parte. O avanço dos meses destruiu a lógica da narrativa, principalmente em torno da gravidez de Maíra (Sophie Charlotte) e Jéssica (Duda Batsow). As duas engravidaram praticamente no mesmo momento, mas a protagonista deu à luz assim que o tempo passou, enquanto a irmã de Diego (Nicolas Prattes) só teve seu filho na parte de 2023.
O concurso Garoto Rhodes ficou ainda mais interminável do que já era diante da cronologia apresentada. A própria fuga de Diego, que quase foi preso por Luís Felipe (Cássio Gabus Mendes), se mostrou ridícula porque o rapaz entrou em um VLT (Veículo Leve sob Trilhos), que não passa dos vinte quilômetros por hora, no Centro do Rio de Janeiro. Mas eram situações que davam para relevar diante do conjunto da obra.
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O problema é que os defeitos foram agravados na segunda parte. Os maiores equívocos, que se resumiam a núcleos secundários repetitivos e sem a menor graça (o ponto fraco do autor em toda novela), tomaram conta da trama central.
Mocinha perdida
Maíra estava entrando na lista de melhores mocinhas de João Emanuel Carneiro, o que era algo difícil diante de tantas protagonistas fracas criadas pelo escritor, com exceção de Preta (Taís Araújo), de Da Cor do Pecado (2004), e Nina (Débora Falabella), de Avenida Brasil (2012).
A deficiência visual nunca foi o mote dos dramas da personagem. Era apenas uma condição. E não a atrapalhava em nada, tanto que Maíra conseguiu descobrir os podres das vilãs sozinha e ainda se mostrou desconfiada em diversas situações. Porém, parece que a cirurgia para voltar a enxergar transformou Maíra em uma imbecil.
Primeiramente, é preciso ressaltar que a ideia de uma operação milagrosa no último capítulo da primeira parte foi um dos muitos furos do roteiro. Por que a mocinha nunca contou para Judite (Mariana Nunes) ou Rafael (Humberto Carrão) que tinha a possibilidade de voltar a enxergar com uma cirurgia?
Ficou claro que o autor inventou aquela carta na manga para criar um gancho potente para a segunda parte. Porque na prática não houve alteração alguma na narrativa. Tudo o que a protagonista fez com baixa visão, faria cega. Foi um plot desnecessário e até um desserviço diante da causa tão importante que a história levantou sobre os deficientes visuais.
Mas voltando à burrice da mocinha, foi constrangedora a vingança que João Emanuel criou para a perfumista. O grande plano para dar o troco na mãe e recuperar o seu bebê, sequestrado pela avó, foi virar uma traficante de crianças e criar uma aliança com Galo (Jackson Antunes) para o vilão entregar os podres de Zoé (Regina Casé). Não seria mais fácil ter contado a verdade para Rafael, o pai rico do bebê?
O pior foi Maíra ter levado uma das crianças compradas para morar com ela. E ainda ter confirmado para a polícia que pagou, sim, pela menina, mas com o intuito de salvá-la. Aliás, qual o nexo da polícia ter ido atrás da mocinha assim que Zoé a denunciou? Nem houve investigação antes. Tudo beirou o ridículo. E mais absurdo ainda foi Maíra ter fugido da cadeia posteriormente. Como uma pessoa com baixa visão conseguiu fugir tão facilmente com um plano tão besta (derrubando comida no chão e saindo enquanto a carcereira limpava)?
Vinganças sem sentido
Aliás, todo o conjunto em torno da protagonista se mostrou um show de estupidez. Maíra fugiu alegando que não aguentava mais ficar na cela. E fugiu sem qualquer objetivo. Foi para casa de Judite e depois passou a morar com Rafael. Vivendo uma vida normal de dona de casa, sem qualquer importunação. Como a polícia não foi atrás dela em locais tão óbvios? E os policiais só foram até a casa de Judite depois que Vanessa denunciou a irmã. Mas ainda não acabou.
A mocinha desenvolveu uma nova fragrância de perfume para ajudar Rafael a reerguer a Rhodes e a sequência serviu para uma ação do patrocinador. Como a empresa aceitou ser associada a uma fugitiva, ainda que na ficção? E Maíra no antepenúltimo capítulo foi atrás de Zoé para provar sua inocência. Mas provar como se realmente comprou crianças? Por incrível que pareça, a personagem foi para a cadeia por um crime que, de fato, cometeu e a sua mãe não teve nada a ver com aquilo.
Outra saga que naufragou foi a envolvendo Diego, que também acabou prejudicada pelo conjunto de situações estapafúrdias. A morte de Samsa (Ângelo Antônio), assassinado por Débora (Barbara Reis), foi uma das melhores cenas da segunda parte. A catarse surpreendeu e tirou o fôlego do telespectador. Mas tudo o que aconteceu depois decepcionou.
Não fez sentido algum Luís Felipe ter caído na chantagem da vilã. Que promotor de justiça iria para a cadeia por ter assassinado o líder de uma quadrilha procurada há anos pela Polícia Federal? Até porque quem matou foi Débora, mas, ainda que tivesse sido ele, seria em legítima defesa. Algo facilmente provado pela circunstância do crime. Não deu para engolir.
E Diego que tentou fugir da fundação apontando uma arma para Débora e depois virando as costas, sendo desarmado? Sem comentários. Aliás, a fuga do rapaz também foi outro furo complicado de aceitar. Diego e Luís Felipe foram parar em uma ala que deixava os prisioneiros em surto por conta de um forte medicamento. Os dois não tomaram os remédios e conseguiram armar uma fuga. Simples assim.
O fim da organização
O desfecho da trama da fazenda foi mais um erro grave de João Emanuel Carneiro. O autor é um expert em sequências de suspense e tinha tudo para fechar o arco de forma apoteótica. Afinal, era o que o público esperava porque se tratava do enredo central da novela. Tudo estava voltado para a poderosa organização que traficava crianças, órgãos e praticava trabalho escravo.
Mas a mãe de Samsa, vivida pela talentosa Denise Weimberg, se revelou uma vilã decepcionante e tudo foi resolvido por Rafael e seu segurança particular, além de Diego. Três pessoas desmontaram a estrutura de uma quadrilha gigantesca que estava por toda parte da fazenda. A polícia, para variar, não fez diferença e só chegou no final.
A morte da insuportável Ciça (Samantha Jones) não teve impacto algum e Jéssica nem apareceu sendo resgatada, após tanto sofrimento. A irmã de Diego apenas surgiu com os figurantes depois que tudo estava resolvido. E o filho que pariu? Ela nem se lembrou depois de ter falado por mais de 40 capítulos que não deixaria que levassem seu bebê.
O telespectador ainda ficou sabendo que Biel (Rodrigo Vidal) estava em um ala infantil na fazenda depois que desapareceu do enredo após a morte da algoz de seu irmão.
Aliás, o assassinato de Débora foi outro ponto controverso. Embora a sequência tenha surpreendido com a ótima virada provocada por Zoé, o espirro do sangue teve um delay que prejudicou o resultado final. No caso, a culpa nem foi do autor e, sim, da direção da equipe de Carlos Araújo.
Destaques em segundo plano
Entre os acontecimentos sem lógica da segunda parte, é preciso ainda citar a perda de rumo de uma das personagens mais queridas da história: Mauritânia. Thalita Carauta deu um show, mas a ex-atriz pornô perdeu todo o destaque que tinha quando se envolveu com Javé (Jhona Burjack).
Para culminar, foi ridículo uma mulher tão vivida quanto aquela ter caído no golpe do Humberto (Fábio Assunção) e perdido suas ações na Rhodes. A decepção foi maior porque era uma das únicas integrantes dos repetitivos e desinteressantes núcleos secundários que protagonizava geniais cenas cômicas.
E voltando ao enredo de Humberto, o personagem tinha uma complexidade muito atrativa. Era um canalha, mas apresentava momentos de fragilidade e seu amor por Judite era sua fraqueza. Mas o seu desfecho foi uma decepção. O pai de Pablo (Caio Castro) descobriu o endereço de Zoé ligando para várias imobiliárias. Fácil assim. E depois que chegou ao casarão houve um breve enfrentamento com a sua ex-aliada, onde acabou assassinando Galo a sangue frio.
Antes de prosseguir, um adendo: qual o nexo de um sujeito tão asqueroso que manipulava crianças ter virado uma pessoa com problemas mentais graves? Jackson Antunes brilhou em cena, mas o papel se perdeu desde que resolveu se aliar a Maíra. Toda a inteligência virou burrice misturada a uma instabilidade emocional que nunca tinha sido apresentada antes. Por isso sua morte não teve densidade. Levou um tiro de Humberto durante um surto sem qualquer cabimento.
E Humberto foi morto por Zoé enquanto tentava resgatar a sua fortuna enterrada. Mas foi morto por uma vilã deitada de bruços e com as duas pernas quebradas. A uma distância imensa. Ainda assim, Zoé acertou direitinho o coração de seu “amor” e foi se arrastando até ele para uma despedida. Depois se arrastou de volta até o casarão e comeu uns biscoitos. Depois se arrastou novamente até uma estrada, onde acabou encontrada por Vanessa (Letícia Colin) e Pablo. Incrível a força da matriarca.
Momentos finais
Já os embates entre Vanessa e Zoé na mansão, que acabou virando um cativeiro, foram geniais graças ao talento de Regina Casé e Letícia Colin. O grande trunfo da novela foi a dupla de vilãs e as duas acabaram carregando a segunda parte nas costas. Apenas elas renderam cenas deliciosas que mesclaram humor e perversidade. Até porque a prometida vingança de Maíra virou piada.
O Globoplay reservou os capítulos 84 e 85 para esta semana. O penúltimo exibido na terça-feira, dia 30, em uma live, e o último no dia 1º de junho, também no mesmo esquema.
O objetivo foi aumentar a audiência no streaming, e consequentemente o engajamento em tempo real, porque o autor declarou que reservou os dois capítulos finais exclusivamente para o acerto de contas de Maíra, Vanessa e Zoé. Mas não foi bem verdade… O escritor arrumou tempo para inserir uma cena sem qualquer importância do casamento de Brenda (Heloísa Honein) e Celinho (Leonardo Lima Carvalho).
Aliás, o penúltimo capítulo apresentou mais uma leva de situações sem qualquer lógica. Como Maíra e Pablo conseguiram tirar Zoé do porão? A vilã estava com as duas pernas quebradas e a escada era feita de cordas.
Só que o pior ainda estava por vir: Pablo traiu Vanessa e ajudou Maíra e colocá-la no porão no lugar de Zoé. No entanto, na hora que foi dar uma maçã para Vanessa, o filho de Judite desceu a escada ao invés de simplesmente jogar o alimento de cima. A atitude, claro, resultou no contra-ataque de Vanessa, que o golpeou por trás. O último gancho do enredo foi a filha tentando enforcar a própria mãe.
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Chance perdida
O último capítulo era a chance do autor amenizar os vários equívocos da segunda parte com um desfecho digno para sua história. Mas, infelizmente, apenas fez jus aos vários problemas da narrativa. Não houve nenhuma cena emocionante ou catártica. Nada.
Vanessa não enforcou a mãe e tentou atirar em Maíra, que tomou a arma da irmã e a feriu no ombro. As três ficaram sentadas esperando a polícia. Maíra desistiu da vingança que nunca chegou a realizar. E por mais absurdo que pareça, a protagonista seguiu burra até no final. Assim que o delegado chegou, Vanessa incriminou a irmã e teve a cumplicidade de Zoé. Maíra foi presa e durante o julgamento dependeu da súbita confissão de Zoé, que admitiu todos os crimes que cometeu para inocentar a filha. A mocinha terminou de forma passiva e sem qualquer vitória. Só escapou porque a vilã resolveu ser mãe pela primeira vez na vida.
Diego ficou ao lado de Joy (Yara Charry) e foi outro que não fez vingança alguma. Tudo ficou na promessa. Já a gravidez de Jéssica foi algo sem qualquer necessidade, ainda mais depois do trauma de ter seu bebê traficado. A comemoração da menina ao lado de Rominho (Luiz Fortes) soou ridícula. Dois jovens de 18 anos que nem concluíram os estudos felizes porque terão um filho. Por sinal, que fim levou a organização? Tinham sede até na Croácia e ninguém descobriu.
Já os destinos dos personagens dos núcleos secundários fizeram jus aos enredos fracos: Brenda (Heloísa Honein) no “Big Brother” da Estônia, Darcy (Xande de Pilares) namorando Darci (Zezeh Barbosa) e Chininha (Micheli Machado) fracassando mais uma vez na carreira de atriz. E o que dizer sobre o desfecho de Pablo? O interesseiro fugiu com os milhões desviados da Rhodes e guardou tudo em um armário de hotel? A ponto de ser roubado por duas prostitutas? É subestimar demais a inteligência do telespectador.
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Final aceitável, mas questionável
O único final aceitável, embora bastante questionável, foi o da dupla que carregou a novela nas costas: Zoé e Vanessa terminaram como batedoras de carteira. Regina Casé e Letícia Colin brilharam do início ao fim. Mas o autor prometeu um final nunca visto antes em novelas e não cumpriu nada, nem mesmo com a dupla de vilãs. O que mais tem na ficção é vilão que termina pobre e dando golpes. E Zoé ter seguido sem escrúpulos enfraqueceu sua motivação para a confissão de seus crimes. E Vanessa se contentaria em uma vida de ladra de rua? Safa do jeito que era? Há controvérsias.
A última cena foi de Maíra e Rafael com seus filhos na praia, incluindo Aninha, a menina que tinha sido comprada pela mocinha. Um último capítulo insosso, capenga e inconsistente.
O saldo geral de Todas as Flores não é ruim, ainda mais comparado aos dois últimos trabalhos do autor – as problemáticas e desinteressantes A Regra do Jogo (2015) e Segundo Sol (2018). João Emanuel Carneiro comprovou que segue hábil na construção de vilãs e fez da dupla Zoé e Vanessa um sucesso. Mas também deixou claro que não sabe construir bons mocinhos, vide a controversa saga de Rafael e Maíra, onde o rapaz transbordou burrice na primeira parte e transferiu sua estupidez para o par romântico na segunda.
Ficou evidente, mais uma vez, que os núcleos secundários sempre serão o ponto fraco das suas histórias. Já o enredo central apresentou atrativos e tensos conflitos, mas que se perderam diante da quantidade de absurdos que tomou conta da narrativa.
Os 40 capítulos de 2023 não fizeram jus aos 45 exibidos no ano passado. A decepção do público e da crítica foi inevitável. Pena.