Com transição de Ivana, A Força do Querer escancara poder da novela de conscientizar e emocionar
30/08/2017 às 7h00
Há quase 40 anos, a Globo exibia o último capítulo de Locomotivas, sua maior audiência às 19h na década de 70. O Brasil praticamente parou para ver Milena (Aracy Balabanian) confessar que Fernanda (Lucélia Santos), criada como sua irmã, era, na verdade, sua filha. Roteiro e direção optaram por uma sequência que remetia a um parto: Lucélia “escorregava” por Aracy até ficar próxima ao ventre da colega de cena, “nascendo” de novo, “parindo” a nova configuração familiar.
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Eis que, quatro décadas depois, uma nova gestação mobilizou a atenção do telespectador. Em cena, não um conflito primário, como o da maternidade oculta, mas uma mensagem de tolerância, respeito e afeto. O capítulo 127 de A Força do Querer, novela das 21h mais debatida e prestigiada em anos, marcou o início do processo de transição de gênero de Ivana (Carol Duarte). Com frases lancinantes – como “eu nasci nesse corpo errado” e “a natureza blefou com vocês e blefou comigo” -, Ivana (agora Ivan) revelou à família ser transgênero.
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O olhar, o gestual e a respiração de Carol deram o tom do diálogo, libertador para Ivana, perturbador para o irmão Ruy (Fiuk) e os pais Eugênio (Dan Stulbach) e Joyce (Maria Fernanda Cândido). Uma cena de oito minutos que deve garantir a Carol, merecidamente, os prêmios de revelação do ano – a torcida das redes sociais ela já conquistou. Não parou por aí: antes de sair de casa, Ivana se trancou no quarto e cortou os cabelos. Deixou no “casulo” a infelicidade e a capa que fora obrigada a vestir até aquele momento.
Joyce flagrou a investida da filha. Caiu em prantos. Acolheu Ivana nos braços, como se tentasse empurrá-la de novo para o ventre, gestando uma nova criação, sem os erros que supostamente cometeu. Mas quem nasceu ali foi Ivan. E também a mensagem que pretendem passar para o público a autora e a Globo – que sabiamente uniu o primeiro bloco da novela a uma campanha que visa a reflexão sobre a identidade de gênero. E o folhetim das 21h, tão combalido nos últimos anos, cumpriu outra vez sua função de reproduzir os movimentos da sociedade e ajudar esta a compreender tais mudanças.
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“Nasceu” aqui também uma nova atriz: Maria Fernanda Cândido suplantou o rótulo de “mulher mais bela do século”, que o Fantástico lhe conferiu na virada do milênio. Está em seu melhor momento na televisão, reflexo de anos de amadurecimento em outros trabalhos de relevância, coroados aqui com a tão palpável Joyce, a mãe incapaz de compreender as angústias de sua cria, espelho de uma geração que se acostumou a aceitar o “diferente” quando este não está dentro de seu lar.
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Um outro momento, com Joyce e Eugênio sentados na cama contemplando o vazio do quarto, como se observassem o apagar dos anos vividos até ali ao lado de uma filha, foi tão representativo quanto as cenas anteriores. Caberá agora a Ivan entender que para os pais o futuro é tão difícil quanto o passado foi para ele, enquanto Ivana.
Merece destaque também a jovem Juliana Paiva, cuja personagem, Simone, é acusada por uma parcela dos telespectadores de apenas servir de “orelha” a Ivana. É esta a melhor função para a garota. Tivesse uma “trama própria” poderia estar avulsa num roteiro pouco atrativo, como foi Salve Jorge (2012), novela anterior da autora marcada pelo excesso de personagens que não interessavam a quase ninguém. Simone, como porto seguro de Ivana, participou de sequências memoráveis como a de ontem e libertou Juliana, enfim, das menininhas bobinhas e deslumbradas que viveu – também muito bem – em Malhação (2012) e Totalmente Demais (2015).
Ainda, o contraponto à mensagem transmitida pela novela: Eurico (Humberto Martins) reage atônito à decisão da sobrinha de seguir com o processo de transição de gênero. Retrógrado, o empresário representa a fatia do público ainda alheia às mudanças pelas quais a sociedade passa. Cumpre a função da teledramaturgia de dar voz a todos os tipos. Pode soar como representante dos intolerantes, mas é pertinente para o folhetim e para o debate.
E eis que Ivan, sem as amarras de Ivana, prendeu o público a uma narrativa bem estruturada, bem dirigida e bem interpretada. E a novela reverbera, é debatida e auxilia a humanidade a caminhar, rumo a um tempo de maior compressão e respeito.