O contato do grande público com lendas e personagens do folclore brasileiro sempre restringiu-se aos livros ou ao apelo infantojuvenil de programas de televisão como o Sítio do Picapau Amarelo e o Castelo Rá-Tim-Bum. Incorporar nossos seres fantásticos a uma narrativa de série policial para o streaming, com embalagem adulta e contemporânea, soa até ousado. Ou, no mínimo, causa estranhamento.

Não para Carlos Saldanha, criador e co-produtor de Cidade Invisível, série nacional disponível na Netflix. Saldanha já foi indicado ao Oscar, conhecido pelas franquias animadas A Era do Gelo e Rio, entre outras. Cidade Invisível é o seu primeiro projeto live-action.

A série convida o público a acompanhar uma investigação policial que revela que seres fantásticos de nossas matas, rios e mares convivem conosco, disfarçados em meio à multidão, escondendo suas reais identidades e poderes – como os androides de Blade Runner, os X-Men, os Mutantes (sim, a novela da Record), e o deuses de American Gods.

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O roteiro de Cidade Invisível é muito hábil em envolver o público, com ganchos eficientes e ferramentas de narrativa que geram empatia e identificação. Como o batido arquétipo do herói (ou quase anti-herói): o policial bom e justo (Marcos Pigossi) em crise existencial (perdeu a mulher que amava, com uma filha pequena doente), passa por cima da lei e da ordem estabelecidas para investigar por conta própria o que há por trás da morte da mulher e dos fenômenos que vivencia.

Soma-se ao roteiro o apelo dos personagens fantásticos. Como resistir a Alessandra Negrini como uma inusitada Cuca? Esqueça a jacaroa escandalosa perpetuada pelo Sítio. As caracterizações dos seres fantásticos na série são muito boas. Percebam como é inteligente a representação contemporânea do Saci (Wesley Guimarães), distante do guardado no inconsciente coletivo.

Não poderia haver melhor escalação para Iara, a sereia, do que a atriz Jéssica Córes, com seu olhar profundo e rosto e curvas de peixe. Porém, o melhor foi deixado para o final: Fábio Lago, visceral como o Curupira. Talvez o público estrangeiro se envolva com nossos seres folclóricos, mas me pergunto se a aparição do Curupira em Cidade Invisível causa o mesmo impacto em quem nunca ouviu falar do personagem.

A iniciativa é louvável não só pela importância de reverenciar a identidade brasileira, mas também porque o enredo alerta para as consequências funestas do desmatamento e da não preservação do meio ambiente. A trama incorpora esses personagens lendários na realidade do Brasil de hoje, em que nosso meio ambiente é escancaradamente vilipendiado pelo poder público.

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A lição é a mesma ensinada nos livros do ensino fundamental sobre o Saci, Mula Sem Cabeça, Boitatá, Curupira e Caipora que a menina Luna (Manu Diegues) folheia em Cidade Invisível.

Serviço:

Netflix, 7 episódios. Com Marco Pigossi, Alessandra Negrini, José Dumont, Jessica Córes, Fábio Lago, Wesley Guimarães, Manu Diegues, Julia Konrad, Victor Sparapane, Áurea Maranhão e outros.

Realização da Prodigo Films, produzida por Beto Gauss, Francesco Civita, Caito Ortiz (Prodigo Films), Maresa Pullman (BottleCap Productions) e Marco Anton (Boipeba Filmes), também assinando a produção executiva, com Mirna Nogueira como roteirista-chefe. Dirigida por Luis Carone e Julia Jordão, com direção-geral de Luis Carone.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor