Autora de Travessia já fez tudo que podia para salvar sua obra

29/10/2022 às 14h45

Por: Nilson Xavier
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Nilson Xavier

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Glória Perez voltou ao horário das 9 da Globo com Travessia. Apesar de alguns percalços iniciais, ainda é cedo para saber se a trama vai ser sucesso ou não. Novela é obra aberta, sujeita a tempestades no decorrer do percurso.

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Glória uma é autora reconhecida por driblar em sua obra as mais imprevisíveis intempéries. Na maioria das vezes, conseguiu reverter os problemas a seu favor, como em América. Outras, nem tanto.

Relembre:

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Partido Alto

Partido Alto

A primeira adversidade ocorreu logo em sua estreia como novelista titular, porém não solo. Em 1984, Glória escreveu Partido Alto juntamente com Aguinaldo Silva, então estreante nos folhetins. Porém, a parceria não surtiu o efeito desejado.

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“A falta de sintonia entre os autores ficou evidente. A dupla se desfez e Glória conduziu o texto até o final. Porém, a falta de critério inicial se projetou até o fim”, descreveu Ismael Fernandes em “Memória da Telenovela Brasileira”.

Glória Perez declarou ao livro “A Seguir, Cenas do Próximo Capítulo”, de André Bernardo e Cíntia Lopes:

“Partido Alto foi um casamento arranjado entre duas pessoas que não se conheciam, literalmente, e tinham estilos completamente diferentes. Como não éramos noivos muçulmanos nem indianos, não podia dar certo!”.

No mesmo livro, Aguinaldo Silva deu sua versão:

“O método [de escrever] da Glória é completamente diferente, eu diria o oposto até. (…) Aí era um drama porque a gente simplesmente não conseguia trabalhar junto. (…) Então é claro que essa tensão toda acabou se refletindo na nossa relação. Houve momentos em que a gente não conseguia sequer se falar. Mas não era por problema de egos, e, sim, por incompatibilidade de métodos de trabalho”.

Carmem

Lucélia Santos

Na novela seguinte da autora, Carmem, produzida pela TV Manchete em 1987-1988, o problema foi a escalação de Lucélia Santos para a protagonista. Lucélia não tinha a exuberância que a clássica personagem exigia.

Glória se queixou ao livro “Autores, Histórias da Teledramaturgia” (do Projeto Memória Globo):

“Carmem é a história de uma mulher que, pelo impacto causado por sua beleza, destrói a vida dos homens à sua volta. Nesse tipo de história, o physique du rôle tem importância fundamental (…) Mas a estrela era a Lucélia, havia que se dar um jeito”.

Para contornar essa questão, a autora inventou o pacto com a pombagira:

“O ovo de Colombo foi transformar a cigana do conto original de Merimée na cigana da umbanda, porque o mágico ninguém discute. Dessa forma, a personagem fazia um pacto com a pombagira e se tornava a cigana do conto”.

Barriga de Aluguel e De Corpo e Alma

Barriga de Aluguel

Barriga de Aluguel (1990-1991) foi um sucesso, mas custou para sair. Em 1985, munida de uma história com base científica, Glória apresentou a sinopse à Globo e a novela foi cotada para substituir Roque Santeiro, na faixa das 20 horas.

Por causa do ineditismo de sua trama, a história foi não só rejeitada como também tachada de “maluca”. Desgostosa com a situação, a autora deixou sua ideia de lado e saiu da Globo (foi contratada pela Manchete e escreveu Carmem).

Barriga de Aluguel

Em 1989, com Glória de volta à Globo, a sinopse de Barriga de Aluguel foi desengavetada. No final dos anos 1980, o desenvolvimento de um feto no útero de outra mulher, que não fosse aquele que o gerou, já era uma realidade conhecida.

A emissora inicialmente pensou em veicular a novela às 20 horas. No início de 1989, a sinopse estava em discussão praticamente aprovada para substituir O Salvador da Pátria.

Entretanto, desceu uma ordem de Boni para mudar tudo, alegando que esta não era uma trama para o horário das oito, mas para às seis. Assim, Tieta substituiu O Salvador da Pátria e Barriga de Aluguel só foi estrear no ano seguinte (1990), às 18 horas.

De Corpo e Alma

Em De Corpo e Alma (1992-1993) – todos sabem – o problema maior extrapolou a ficção: o assassinato de Daniella Perez, filha de Glória, pelo colega de elenco Guilherme de Pádua e sua mulher Paula Thomaz. A força da autora para continuar escrevendo sua história, enquanto lidava com as investigações sobre o crime, foi descrita na série documental Pacto Brutal, o Assassinato de Daniella Perez.

Mesmo abatida pela tragédia, a autora conduziu sua novela até o fim. Gilberto Braga e Leonor Bassères escreveram capítulos por sete dias até Glória retomar seu trabalho, aproveitando para incluir mais dois assuntos polêmicos na trama: a morosidade da Justiça e a inadequação do Código Penal.

Explode Coração e remake problemático

Explode Coração

Em sua novela seguinte, Explode Coração (1995-1996), o povo cigano não gostou da forma estereotipada com que foi retratado. O figurino dos personagens ciganos ricos e urbanos acabou alterado, já que os trajes típicos (que vestiam no dia a dia) deveriam ser usados apenas para festas.

Uma cena de sexo envolvendo Dara e Júlio (Tereza Seiblitz e Edson Celulari) levou a advogada cigana Myrian Stanescon à Justiça. Sob a alegação de que o episódio fora inspirado em sua vida e que depreciava sua imagem e a de seu povo – cuja tradição impõe a virgindade para mulheres solteiras -, ela obteve uma liminar para impedir a exibição da cena. A TV Globo impetrou um recurso e a cena foi exibida sem cortes.

Pecado Capital

O remake de Pecado Capital (1998-1999) – a clássica novela de Janete Clair – foi outro problemão para Glória. Além de enfrentar audiência aquém da esperada, Carolina Ferraz e Francisco Cuoco, que viviam o par romântico Lucinha e Salviano, se desentenderam.

Na época, foi noticiado que Carolina se negava a beijar Cuoco em cena. Para acalmar os ânimos, Glória criou um novo interesse amoroso para Salviano, Laura, personagem que não existia na novela original. Vera Fischer entrou então na novela para contracenar com o veterano.

O Clone

O Clone

O Clone (2001-2002) é reconhecidamente um grande sucesso, mas custou para sair do papel. Quando a autora entregou a sinopse à direção da Globo, muita gente achou que seria uma insensatez produzir uma novela como essa, centrada em temas complexos como islamismo, clonagem humana, drogas e alcoolismo.

Pouco antes da estreia, com os atentados terroristas nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001 – que colocaram em evidência o fanatismo muçulmano -, essa impressão se reforçou. Com o advento da guerra contra o terror, a mistura de drogas, clonagem e cultura árabe passou a ser ainda mais questionada. Glória, no entanto, manteve a certeza de que o folhetim seria um sucesso.

Houve também problemas com a diretora reservada para a trama, Denise Saraceni, que não gostava do tema sobre muçulmanos e não tinha afinidades com a autora. Outro diretor, Luiz Fernando Carvalho, leu a sinopse, mas não conseguiu se adequar ao texto dinâmico de Glória.

Jayme Monjardim foi então o escolhido, adiando um pouco mais a novela, já que ele estava no comando da minissérie Aquarela do Brasil. Jayme e Mário Lúcio Vaz – então diretor-geral da Central Globo de Controle de Qualidade e único membro da direção que comprou a ideia da autora desde o início – apostaram no projeto.

América

América

América (2005) também registrou relevante sucesso, mas Glória penou. Primeiro os desentendimentos e a incompatibilidade de ideias entre a autora e o diretor Jayme Monjardim, A dupla de sucesso de O Clone não conseguiu se entender no trabalho seguinte. Decorridos 25 capítulos no ar e 38 gravados, a direção passou a Marcos Schechtman e, o núcleo, a Mário Lúcio Vaz.

Os problemas de relacionamento ocorreram desde antes da estreia, quando Glória e Jayme não chegavam a um consenso sobre os intérpretes ideais para os protagonistas Sol e Tião. Jayme queria Camila Morgado e Marcos Palmeira. Glória queria Deborah Secco e Murilo Benício, e acabou vencendo, ao ceder à vontade do diretor em outras questões da novela.

Pouco antes da estreia da novela, Glória Perez sofreu ataques, em seu perfil no Orkut, por quem definiu como psicopatas. Na página da autora, foram escritas mais de 8 mil mensagens com ataques violentos à memória de sua filha Daniella Perez.

As mensagens foram enviadas por grupos que se intitulavam “protetores dos animais”, que estariam insatisfeitos com a abordagem do tema rodeio na novela. Com a agressão, Glória resolveu fazer algumas alterações no perfil dos personagens de Caco Ciocler, Raul Gazola e Gabriela Duarte, militantes da causa.

América

Por fim, criou-se grande expectativa com o último capítulo, em que aconteceria o primeiro beijo homossexual masculino em uma novela da TV Globo – entre Júnior e Zeca (Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro). Porém, por decisão da emissora, a cena, que foi escrita e gravada, não foi exibida, para a frustração da maioria. Glória Perez explicou ao livro “A Seguir, Cenas do Próximo Capítulo”:

“O [Octavio] Florisbal [executivo da Globo] decidiu que o beijo não deveria ser mostrado. Nós argumentamos muito, mas não conseguimos mudar a decisão. Na verdade, nem era para ir ao ar o trecho que foi, porque ali já havia a intenção do beijo. A primeira ideia era cortar até isso! Mas conseguimos que pelo menos a intenção ficasse”.

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Caminho das Índias

Caminho das Índias

Durante a escrita de Caminho das Índias (2009), Glória Perez enfrentou (e venceu) um câncer na tireoide. Carlos Lombardi e Elizabeth Jhin foram chamados para substituí-la. A princípio, apenas prestaram um auxílio, escrevendo algumas cenas. Glória nunca chegou a se afastar totalmente da novela e escreveu mais de cem capítulos em meio ao seu tratamento.

A autora ainda enfrentou as críticas ao seu texto, pelo excesso de liberdade criativa ao retratar a caracterização de personagens indianos – como mulheres no dia a dia vestidas e maquiadas como se estivessem em uma festa tradicional, ou núcleos familiares inteiros dançando por qualquer motivo.

Também pela abordagem pouco condizente com a Índia contemporânea, como a questão dos intocáveis (dálits) ou o sistema de castas. Tudo isto contribuiu para que a Índia mostrada na novela soasse um tanto quanto carnavalesca e obsoleta. Ou como se a Índia representada fosse a do início do século 20.

Outra crítica (aliás, recorrente em sua obra) foi ao fato da autora ignorar a diferença de fusos entre o Brasil e a Índia, causando no telespectador a sensação de que o Rio de Janeiro e Nova Deli eram bairros vizinhos. Algo já apontado em O Clone – a distância entre o Rio e Marrocos -, e, posteriormente, em Salve Jorge (2012-2013) – a distância entre o Rio e a Turquia.

Salve Jorge e A Força do Querer

Salve Jorge

Salve Jorge enfrentou críticas por toda parte, pela repetição de temas e elenco, pelo número excessivo de personagens e pelas dancinhas e bordões estrangeiros que já não despertavam mais tanto interesse como na época de O Clone. A Turquia retratada pareceu uma mistura de Marrocos (de O Clone) com a Índia (de Caminho das Índias).

Glória Perez apelidou os usuários de redes sociais que criticavam sua novela de “bonde do recalque”. Chegou a sugerir que havia gente recebendo dinheiro para falar mal da trama. De fato, houve uma campanha contra Salve Jorge antes de sua estreia: os evangélicos se movimentaram para boicotar a novela, acusando de que ela fazia apologia às religiões afro-brasileiras.

Contudo, as críticas geraram ruído e repercussão. Salve Jorge entrou para a história como uma das novelas com mais furos no roteiro. E o bonde do recalque foi implacável com a autora. Nada passou despercebido.

Salve Jorge

O auge ocorreu na sequência em que Raquel (Ana Beatriz Nogueira) é assassinada: ela entra no elevador do hotel para melhorar o sinal do celular (?) e Lívia Marine (Cláudia Raia) mete-lhe uma seringa envenenada no pescoço, ignorando o fato de que qualquer elevador possui câmeras de segurança. A autora foi ao Twitter tentar se explicar: “Livia Marine tinha contatos no hotel”(!).

Outra justificativa muito usada por Glória foi a da licença poética, de que novela é ficção, não tem a obrigação de mostrar a realidade. Sua frase “É preciso voar!” é até hoje usada para justificar a ausência de verossimilhança em tramas de novelas.

A autora pecou pelos furos e incoerências enquanto a direção derrapou em várias sequências, com direito a erros de continuidade (o “cabelo bipolar da Morena”, por exemplo, ora liso, ora cacheado). Ficou a impressão de que a direção preferiu fechar os olhos a esses “detalhes” e dar vazão ao lema da autora de que era preciso voar.

A Força do Querer

Nem A Força do Querer (2017) – sua última novela e um de seus maiores sucessos – escapou ilesa às críticas, da interpretação de Fiuk – escalação infeliz de um ator sem estofo para um personagem tão importante – às acusações de apologia ao crime e glamurização da bandidagem – referência à trama da personagem Bibi Perigosa, de Juliana Paes.

Vamos aguardar para ver o que Travessia nos reserva. A torcida pelo sucesso e para tudo corra bem para Glória Perez é grande!

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