O objetivo da Globo era claro: investir pesado na divulgação de uma novela medieval e proporcionar todo o capricho que uma produção deste porte necessitava. A emissora pelo menos cumpriu a sua parte. Nunca se viu uma divulgação tão intensiva quanto a de Deus Salve o Rei. A trama das sete teve uma forte campanha e até a criação de um fã-clube da produção foi elaborada para interações nas redes sociais, visitas aos estúdios e participações em conversas ao vivo na internet diretamente dos Estúdios Globo. A escalação de atrizes com forte apelo entre os adolescentes como protagonistas foi claramente intencional e gerou repercussão. A qualidade dos cenários e figurinos também impressionou. Todavia, o mais importante, a história, foi o maior obstáculo.

O estreante Daniel Adjafre, após um período na função de colaborador, enfrentou dificuldades no desenvolvimento de seu primeiro enredo como autor principal. A lentidão da narrativa afastou o público e o telespectador podia se dar ao luxo de acompanhar a produção a cada quinze dias que não perdia nada de relevante. Isso porque a limitação da história ficou evidente nos meses iniciais. O conflito em torno do rompimento do acordo entre os reinos de Artena e Montemor, unidos anteriormente por uma troca de interesses, demorou demais para acontecer e a vilã Catarina (Bruna Marquezine) ficou um longo tempo apenas planejando seus passos, sem agir.

Já o romance entre o rei Afonso (Rômulo Estrela) e a plebeia Amália (Marina Ruy Barbosa) encantou no começo em virtude da incontestável química entre os atores. Porém, acabou cansando pela ausência de maiores obstáculos. É inevitável: casal que fica muito tempo feliz perde destaque ou relevância. Os dois viviam bem em quase todos os momentos e o motivo da primeira separação expôs a fragilidade do roteiro. A mocinha simplesmente não aguentou ficar nem dois dias no castelo ao lado de seu amor – por medo do preconceito – e preferiu voltar para sua vida de feirante. Nenhuma mulher naquela situação tomaria tal atitude. O autor poderia, ao menos, ter explorado a sua rotina no castelo e a dificuldade de se enquadrar nos padrões da nobreza.

O mocinho, por sua vez, resolveu abandonar o trono para viver ao lado de sua amada. A controversa decisão provocou uma desgraça em Montemor, pois o deslumbrado Rodolfo (Johnny Massaro), seu irmão, virou rei e afundou o reino em uma crise avassaladora. O gesto egoísta do protagonista acabou resvalando em Amália, uma vez que a feirante virou a responsável indireta pela ruína de um povo. Afinal, se tivesse ao menos tentado ser uma boa rainha tudo seria diferente. Óbvio que não haveria novela, mas a situação não foi bem desdobrada por Adjafre.

Tanto que esse era o único conflito de peso do enredo, pois Catarina seguia sem agir e o núcleo de Rodolfo era voltado apenas para a comicidade através de divertidas situações protagonizadas por Lucrécia (Tatá Werneck), Heráclito (Marcos Oliveira), Latrine (Júlia Guerra), Petrônio (Leandro Daniel) e Orlando (Daniel Warren). Havia ainda o deslocado núcleo da Taverna – protagonizado por uma viúva “amaldiçoada” (Matilda – Cristiana Pompeo) – que nada acrescentava ao roteiro, enquanto o promissor enredo das bruxas não se desenvolvia. Nem mesmo o vilão Virgílio (Ricardo Pereira) movimentava a trama. A participação do fraco ator português José Fidalgo, que só sussurrava como Constantino, mostrou-se um equívoco. Para culminar, a robótica interpretação de Marquezine despertou uma avalanche de críticas e despertou até mais atenção do que a novela em si.

Nem mesmo a entrada de Glória (Monique Alfradique) e sua mãe Naná (Betty Gofman) provocou alguma melhora, uma vez que o conflito da menina que comia frutas enfeitiçadas para não ficar gorda era totalmente avulsa. Parecia que a novela naufragaria de vez. Porém, Ricardo Linhares foi chamado para interferir no enredo. O medo de piorar o que já estava ruim existiu, afinal, o autor foi o responsável pela descaracterização da problemática A Lei do Amor em 2015 e conseguiu deixar a novela ainda mais equivocada na época. Mas, na trama das sete, a sua intervenção funcionou.

Novos personagens foram inseridos e outros eliminados em uma peste que deixou a população assustada – com isso, Saulo (João Vitor Oliveira) e Martinho (Giulio Lopes) morreram. A chegada do vilão Otávio (Alexandre Borges acima do tom) se mostrou um acerto e movimentou a história. A participação de Stênio Garcia também serviu para impulsionar o contexto das bruxas e seu aterrorizante Inquisidor teve um ótimo destaque quando se voltou contra Amália, incentivado por Catarina. A vilã, aliás, finalmente virou um elemento ativo. Após ter usado Rodolfo para fingir uma guerra entre Montemor e Artena, manteve o próprio pai (Rei Augusto – Marco Nanini) como prisioneiro e se apaixonou por Afonso, estabelecendo como meta ser rainha ao seu lado.

A volta de Afonso ao trono de Montemor resultou na melhor virada da novela e desde então o enredo entrou nos eixos. Até mesmo os conflitos em torno da rejeição que Amália sofreu dos reis e rainhas foram atrativos. A mocinha necessitava de um drama pessoal urgente e finalmente ele veio. É necessário, aliás, citar a ótima participação de Stella Miranda vivendo uma rainha debochada e arrogante. Até mesmo a rápida aparição de Paula Fernandes vivendo uma princesa que iria se casar com o rei para manter as aparências funcionou.

A queda de Rodolfo e sua ida para Alcaluz, reino falido de Lucrécia, foi outro ponto positivo e Cristina Mutarelli brilhou como rainha louca. A vilania de Otávio virou um dos focos do folhetim e a troca de interesses entre ele e Virgílio rendeu boas cenas, assim como a sua cobiça por Catarina, que não suportava o rei de Lastrilha. A entrada da bruxinha Agnes (Mel Maia) foi um bom chamariz para o entrecho da bruxaria, destacando Brice (Bia Arantes) e Selena (Marina Moschen), até então deslocadas. A aliança do trio despertou interesse, assim como o desdobramento em cima da procura da filha perdida de Brice.

O mistério sobre a herdeira, inclusive, provocou uma boa repercussão e rendeu um criativo mote na reta final. Várias pistas enigmáticas a respeito da origem de Catarina e Amália foram inseridas na história, despertando curiosidade e teorias. Até mesmo a imprensa chegou a divulgar que a mocinha era a filha perdida de Otávio com Brice. Mas o autor soube construir uma situação que não estava prevista na sinopse de forma criativa e coerente. A vilã ser a filha perdida de Brice com o falecido pai de Amália foi uma virada surpreendente e fez jus ao bom folhetim.

A rainha cheia de pose sempre foi uma plebeia e herdeira de uma bruxa. Para culminar, irmã da sua maior inimiga. E Selena finalmente teve o destaque que merecia quando a revelação a respeito de seu pai, Otávio, foi ao ar no antepenúltimo capítulo. A bruxa chefe da guarda de Montemor era a herdeira perdida de Lastrilha. Uma outra reviravolta digna de uma ótima reta final. Todas as cenas em torno dessas personagens engrandeceram os últimos acontecimentos da trama e destacaram as atrizes. Bia Arantes esteve muito bem como Brice e não lembrou em nada a doce Cecília da recém-terminada Carinha de Anjo, no SBT. Após meses atuando de forma constrangedora, Bruna melhorou o seu desempenho ao longo da novela e Marina Moschen fez uma Selena cativante, sendo necessário citar sua química com Giovanni De Lorenzi – intérprete do tímido Ulisses.

A última semana da produção foi repleta de sequências empolgantes e a resposta veio na audiência através de recordes quebrados. Chegou a marcar 31 pontos na quinta-feira (26/07) e teve picos de 34 na sexta. A prova de que teria sido um imenso sucesso caso o enredo não tivesse se arrastado tanto nos primeiros meses e exibido conflitos desinteressantes. Bastou focar na bruxaria e nas cenas de guerra para deslanchar, deixando o excesso de romantismo de lado. Aliás, o embate entre Selena e Brice primou pelos caprichados efeitos especiais, assim como a guerra entre Lastrilha e Montemor, que resultou na morte de Otávio. Vale elogiar, ainda, o fato de Afonso ter assassinado o vilão em um bem realizado duelo em meio ao combate entre os reinos. É raro mocinhos matarem, mesmo que seja em legítima defesa.

Todavia, apesar da evidente melhora no conjunto, alguns erros não conseguiram ser consertados. O elenco veterano, por exemplo, foi subaproveitado e foram poucos os atores mais experientes escalados. Rosamaria Murtinho poderia ter rendido muito mais como Rainha Crisélia, assim como Tarcísio Filho como Demétrio. Caio Blat foi retirado do enredo gratuitamente e Cássio era um perfil bem mais interessante que o seu substituto, o insosso Gregório (Danton Mello). Marco Nanini passou boa parte do enredo sendo um figurante de luxo e Rei Augusto só foi crescer na reta final. Débora Olivieri, a Constância, também não foi valorizada como merecia. Rosa Maria Colin esteve muito bem na pele da misteriosa Mandigueira, mas a personagem foi outra que morreu desnecessariamente.

Um time de maior peso fez falta na escalação e os poucos presentes não tiveram o merecido espaço. O enredo de Selena era um dos mais promissores, mas a personagem foi se apagando ao longo dos meses e o sensível romance com Ulisses merecia mais destaque. Ao menos, como já mencionado, cresceu na reta final.

É preciso citar, entretanto, quem brilhou. Rômulo Estrela merecia um protagonista há tempos e ele finalmente veio. O ator interpretaria Tiago, irmão de Amália, mas ficou com o mocinho após a desistência de Renato Góes. Sorte a dele, pois o perfil que ficou com Vinícius Redd era insosso e avulso. Rômulo convenceu protagonizando sua primeira novela e protagonizou várias cenas difíceis. Uma das melhores foi o momento das pazes com Rodolfo, expondo a sua entrega e de Johnny Massaro. Johnny, por sinal, também merece elogios. Seu controverso personagem proporcionou situações cômicas e dramáticas, muito bem aproveitadas por ele. Sua parceria com Tatá Werneck, Leandro Daniel e Daniel Werren divertiu.

Marcos Oliveira cresceu com o atrapalhado Heráclito e soube mergulhar no ritmo ágil do improviso de Tatá. Júlia Guerra, Giovanni De Lorenzi e Carolina Ferman foram gratas revelações vivendo Latrine, Ulisses e Lucíola, respectivamente. Ricardo Pereira viveu seu primeiro grande vilão com competência e Isadora Ferrite conseguiu bons momentos mesmo com um pequeno papel como Brumela.

O capricho dos cenários e figurinos foi algo que impressionou. Não será surpresa, portanto, se a novela ganhar o Emmy Internacional caso seja indicada pela Globo. A premiação costuma valorizar muito esse tipo de produção e a beleza da fotografia – exibindo imagens colhidas em viagens por Inglaterra, Islândia, entre outros locais deslumbrantes – ainda encheu os olhos.

O trabalho em torno das cenas de batalha ficou evidente pelo cuidado nas coreografias e nos efeitos de sangue e flechadas, não muito explícitos por causa do horário. O elevado investimento estava presente em todos os momentos. A abertura, inclusive, refletiu a preocupação nesses detalhes. Há tempos a Globo não exibia algo tão bonito, incluindo a grafia do título – já a música Scarborough Fair, cantada por Aurora, combinou perfeitamente com o clima do folhetim.

O penúltimo capítulo presenteou o telespectador com várias cenas bem interpretadas, como a briga de tapas entre Amália e Catarina, fazendo jus ao clichê do barraco da mocinha com a vilã. O momento em que Selena prende a ex-rainha de Artena também merece menção, assim como a emocionante reconciliação de Selena e Ulisses. Marina Moschen e Giovanni De Lorenzi demonstraram toda a sensibilidade que aquele instante pedia. Pena que o autor tenha perdido tanto tempo deixando a personagem com Saulo e depois com Tiago. O choro desolador da bruxa pelo pai morto foi outra cena bonita. E o último gancho, com Amália descobrindo através de Brice que Catarina era sua irmã, honrou as emoções finais do enredo.

O último capítulo fechou a trama com habilidade e cenas fortes. A condenação de Catarina durante o tribunal destacou o show de Marco Nanini na hora do doloroso depoimento do Rei Augusto e a emoção de Bia Arantes com a morte de Brice, virando pó e se desculpando com a filha. Já a coroação de Selena como Rainha de Lastrilha foi delicada, sendo necessário aplaudir a sintonia entre Marina e Giovane. A rainha que luta com o novo rei que cozinha.

O último momento de Catarina na forca também merece menção, pois Bruna Marquezine fez bonito. A sequência, aliás, foi muito bem realizada e chocou, sem ficar inapropriada para o horário. Lucrécia parindo quatro bebês foi hilário e o casamento de Afonso e Amália emocionou. Que capricho. A última cena, com todos dançando animados e mesclando a confraternização dos personagens com a dos atores, encerrou o enredo de maneira clássica e bonita.

Deus Salve o Rei foi uma aposta alta da Globo e é fato que não teve o resultado que se pretendia. No entanto, passou longe de um fracasso. A média geral foi de 26 pontos, a mesma que a elogiada Rock Story, por exemplo. Um bom índice. Afinal, Pega Pega, trama anterior, que obteve 29 pontos, foi um fenômeno atípico.

A novela poderia ter sido muito melhor se tivesse iniciado com o mesmo nível de conflitos que terminou. Ao menos, Daniel Adjafre conseguiu contornar os problemas e a intervenção de Ricardo Linhares foi positiva. Da metade para o final, a trama deslanchou e apresentou bons conflitos para o público. A última semana provou que a estrutura do roteiro poderia ter rendido muito mais se fosse ao ar na faixa das 23h, com menos meses e mais liberdade para sequências mais densas. Mas, após um começo preocupante, a equipe soube dar a volta por cima e a produção chegou ao fim de forma digna. Valeu a ousadia.


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Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor