Nilson Xavier

Não seria natural que uma novela ambientada no Nordeste brasileiro tivesse um elenco formado majoritariamente por atores nordestinos? Ou que uma novela ambientada na Bahia tivesse mais da metade de seu elenco de atores negros? Há até pouco tempo atrás, não!

Mar do Sertão - Rena

A atual novela das seis, Mar do Sertão, criada e escrita por Mário Teixeira (um paulistano criado no Ceará), tem um elenco de quase 20 atores nordestinos.

Entre eles, os paraibanos Isadora Cruz, Nanego Lira, Suzy Lopes, Thardelly Lima, Everaldo Pontes e Quitéria Kelly (que nasceu em João Pessoa, mas foi criada em Natal, RN); os potiguares César Ferrario, Titina Medeiros e Matteus Cardoso; os pernambucanos Renato Góes (foto acima) e Clarissa Pinheiro; o maranhense Déo Garcez; o cearense Lucas Galvino; e os baianos Érico Brás, Cyria Coentro e Felipe Velozo.

Novos tempos. Ainda bem!

Mar do Sertão

Hoje em dia, a representatividade é o mínimo que se espera. Porém, tudo isso é novo no universo televisivo. Até a década de 1990, negros representavam menos de 5% dos elencos das novelas (quando havia atores negros), sempre em papéis menores (empregados, escravos ou marginalizados). Enquanto isso, atores paulistanos e cariocas forjavam sotaques fakes nas histórias passadas no Nordeste.

Apesar de sempre ter havido reclamações acerca da falta de representatividade, foi na era das redes sociais que essa demanda passou a ser levada a sério pelos produtores de audiovisual.

Blackface

A Cabana do Pai Tomás

Na novela A Cabana do Pai Tomás, produzida pela TV Globo em 1969, o ator branco Sérgio Cardoso (1925-1972) viveu o negro Pai Tomás. É o mais famoso caso de blackface da história da TV brasileira. Para a caracterização de seu personagem, o ator pintou o corpo e usou peruca e rolhas no nariz, o que acabou gerando revolta no meio artístico.

O ator Plínio Marcos, que comandava uma coluna diária no jornal Última Hora, não concordava com o fato de um ator branco interpretar um personagem negro. Todos achavam que o papel deveria ser de Milton Gonçalves, que contava que, todas as vezes que se encontravam, Sérgio tinha sempre a preocupação de se justificar.

A Cabana do Pai Tomás causou tanto mal-estar que o próprio Sérgio Cardoso se adiantava à possível pecha de racista. O ator chegou a fazer declarações infelizes do tipo:

“Tenho vários amigos de cor que são como meus irmãos. Tenho afilhados pretinhos que amo como se fossem meus filhos”.

Isso aconteceu há mais de 50 anos, porém, só há alguns anos é que situações como essa passaram a ser consideradas inadmissíveis.

Bahia branca

Segundo Sol

Em 2018, a novela Segundo Sol cometeu um erro gravíssimo: a pouca incidência de atores negros em uma trama que se passava na Bahia. A produção foi acusada de “esbranquiçar” o estado, conhecido pela predominância de negros.

As chamadas apresentavam os protagonistas e nenhum deles era negro. O ator Fabrício Boliveira até teve bastante destaque na história, mas seu personagem não fazia parte do núcleo central. No elenco fixo, os negros eram em menor número e a maioria relegados a papéis menores.

Yellowface

Sol Nascente

Pouco antes, em 2016, a novela Sol Nascente havia ligado o alerta de que decisões erradas estavam sendo tomadas na escalação de atores na Globo. O ator Luís Mello foi escolhido para interpretar o japonês Tanaka. Neste caso, um ator branco (mestiço na realidade, já que Mello tem ascendência indígena) que se caracterizou de japonês.

Os autores Walther Negrão, Júlio Fischer e Suzana Pires tiveram que justificar várias vezes no roteiro que Tanaka era filho de um japonês com uma americana. Também Giovanna Antonelli, como a filha branca do japonês – na trama da novela, foi explicado que a personagem era sua filha de criação.

Alvo de críticas de grupos de filiação oriental, a Globo foi questionada e cobrada por não ter escalado atores de origem nipônica para os personagens, em vez de remendar com explicações sobre suas ascendências. Pesou ainda o fato de Giovanna Antonelli ser mulher do diretor da novela, Leonardo Nogueira.

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Nordestinês

Tieta

Várias foram as novelas globais ambientadas no Nordeste. A primeira foi Verão Vermelho, em 1970, cuja história se passava na Bahia. Seguiram-se outras, muitas de grande sucesso, como O Bem-Amado, Saramandaia, Roque Santeiro, Tieta, Pedra Sobre Pedra, Renascer, Fera Ferida, A Indomada e Porto dos Milagres. Na última década, tivemos Cordel Encantado e Velho Chico.

Quantos de seus elencos eram de atores genuinamente nordestinos? Quantos atores tiveram aulas de prosódia para forçar sotaques diluídos, dos quais não se sabia exatamente de qual região do Nordeste era, uma vez que cada estado tem um sotaque próprio, às vezes vários dentro de um mesmo estado. O nordestinês das novelas da Globo acabou virando jargão, usado com ironia.

Já não há mais espaço na TV brasileira para a falta de representatividade genuína. Mar do Sertão tenta quebrar essa barreira, juntando em um só elenco e apresentando a todo o Brasil atores talentosos de outros rincões que não apenas o eixo Rio-SP. Que o exemplo se estenda a tramas em outras regiões do país.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor