Existe entre os noveleiros uma espécie de consenso de que A Favorita é superior a Avenida Brasil. Daí saírem clichês como “Avenida Brasil é superestimada” (por favor, se usá-lo, argumente). Claro que me refiro à bolha da internet e suas redes sociais. Se bem que, desmerecer uma na tentativa de enaltecer a outra é uma prática aplicada por fandoms muito antes do advento da internet (googlar Emilinha e Marlene).

Muitos estão vendo de novo (ou pela primeira vez) A Favorita, disponível no Globoplay. E, como a terra plana capota, tenho lido relatos de pessoas criticando a novela… de que ela não é tão boa assim como pintavam, ou que tem falhas de roteiro, ou na narrativa, que incomodam (enrolação, barriga, tramas paralelas desnecessárias). Achei curioso.

Antes de mais nada, é preciso deixar claro que 1) gosto é gosto, é algo bem subjetivo, independentemente dos prós e contras; e 2) toda novela passa por problemas. Pensa: é praticamente impossível manter um ritmo de qualidade por mais de 150 capítulos de produção diária industrial. Ou seja, não existe obra perfeita, completamente redonda. Nem a aclamada Roque Santeiro foi.

Quer dizer… acho que existe uma sim: Vale Tudo. Ainda aos olhos de hoje, é um exemplo ímpar de condução de narrativa no formato telenovela. Porém, se consultar os autores (Gilberto e Aguinaldo), eles narrarão uma série de percalços pelos quais passaram para que essa “perfeição” fosse realizada.

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A memória afetiva também nos trai. Estou revendo Brega e Chique (no Viva) e decepcionado com a barriga e recursos tolos que Cassiano Gabus Mendes tem usado para preencher os capítulos (sarampo do Bruno, pé da Rosinha, bebê do Amadeu, etc). Seria melhor não ver de novo para não quebrar o encanto da primeira vez? Eu não interviria em decisão tão subjetiva.

Também há os casos de “assistir com os olhos da época em que a novela foi feita”, no que concerne crítica a costumes e a preconceitos enraizados. Este não é o caso de A Favorita, uma novela nem tão antiga assim (12 anos).

Entretanto reconhecemos que, nessa última década, a televisão deu passos largos em assuntos como machismo, racismo e homofobia. Maior prova é o fim do Zorra Total. Porém, a heterossexualização de um personagem gay – Orlandinho, que tanto incomoda em A Favorita – foi requentada em Avenida Brasil (2012), A Regra do Jogo (2015-2016) e Segundo Sol (2018). Cabe a crítica sim, ao autor, que insiste tanto nesse entrecho.

Outra reclamação que incomoda quem assiste A Favorita é a inutilidade das tramas paralelas, “tão irritantes” quanto as de Avenida Brasil. Quem conhece as novelas de João Emanuel Carneiro sabe que todas são assim: tramas centrais vigorosas, enquanto as paralelas, em sua maioria, são desconexas, chatas ou irritantes.

Excluindo as paralelas, qual das duas – A Favorita ou Avenida Brasil – tem trama central melhor? Arrisco a primeira, que ousou apresentar protagonistas antagônicas em detrimento do casal romântico central – fórmula repetida em Avenida Brasil. Enquanto isso, as referências da trama central de Avenida Brasil eram mais manjadas: arquétipos de vingança (de Conde de Monte Cristo a Revenge) e crianças carentes (Charles Dickens).

O carisma de Flora e o carisma de Carminha praticamente seguraram as novelas. Força de expressão, claro. Ainda assim, o autor mandou a lógica e a coerência às favas, nas duas novelas, a fim de justificar o roteiro fantasioso (Dona Irene escalando muros, Donatela de fantasma para assustar uma assassina cruel, o pendrive da Nina, etc). Mas, convenhamos, era gostoso viajar na fantasia com Flora e com Carminha.

Também devemos considerar as diferenças técnicas e as propostas estéticas. A Favorita é uma novela azul, fria, de fotografia noir, que deu início a uma nova cara às novelas. Avenida Brasil é vermelha e dourada, quente. A primeira é mais sofisticada na aparência, enquanto a segunda tem um apelo popular maior (nem estou falando das ambientações e caracterizações). Não falo “sofisticado” como o Pernalonga de batom. É apenas uma constatação. O fato da proposta de Avenida Brasil ser mais popular em nada a desmerece. Aliás, A Favorita também é popular, tanto que encerrou-se com ótima audiência e é lembrada até hoje.

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Consideremos ainda as épocas em que foram exibidas. Avenida Brasil, digamos, é um exemplo de novela certa no momento certo, e de uma obra que captou o zeitgeist, o espírito de seu tempo. Mostrava uma nova classe C empoderada em uma época em que sentíamos que éramos mais felizes (antes do degringolamento total).

Sempre me perguntaram: qual a melhor, A Favorita ou Avenida Brasil? Eu, com toda pureza d´alma, não consigo me reter a esse nível de simplismo. Não se deve reduzir a discussão a um 8 ou 80. Apesar de novelas do mesmo autor, repletas de seus vícios e com estilos e características de narrativa que se assemelham, são obras muito diferentes, técnica e esteticamente falando, e de momentos diferentes. Ouso dizer que tocaram corações e mentes de forma distinta.

Cada qual em seu estilo e momento, ambas foram muito felizes ao catalisar audiências. Pendo mais para Avenida Brasil porque vivemos naquele momento uma espécie de catarse coletiva via redes sociais. Qual novela antes parou o Brasil no último capítulo daquela maneira? Qual a chance disso voltar a acontecer? Porém, a popularidade de uma não abafa ou diminui a importância da outra. Adoro as duas, é minha resposta.

SOBRE O AUTOR
Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira.

SOBRE A COLUNA
Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor