Quando reuniu material para a primeira versão de A Viagem, em 1975, Ivani Ribeiro (1922-1995) usou a literatura espírita e também cartas psicografadas, contando com a orientação do médium Chico Xavier (1910-2002).

Para preparar a segunda versão, que foi ao ar em 1994, na Globo, e recentemente exibida pelo canal Viva, ela bebeu da mesma fonte e ainda acrescentou mais cartas psicografadas.

Uma delas foi ditada pelo filho de Nair Bello (1931-2007), Manoel, que morreu, aos 20 anos, após um acidente de automóvel, em 1975.

De acordo com reportagem do jornal O Globo de 18 de setembro de 1994, a atriz e seu marido, Irineu, esperaram 50 minutos na sala principal do Grupo Espírita da Prece, em Uberaba (MG), enquanto Chico Xavier psicografava uma carta de 90 meias páginas.

A matéria ainda mencionou que a carta ajudou Nair a “sair do fundo do poço” e que foi usada por Ivani como orientação para a nova versão da novela. A atriz, inclusive, esteve na trama, como Cininha, dona da pensão que movimenta a trama.

No texto, Manoel fez menções a pessoas desconhecidas da família, como uma tal de Dona Maria Angélica. Nair foi investigar e descobriu que se tratava de uma vizinha da tia de Irineu, morta há muitos anos, em Limeira (SP).

Nair mandou imprimir seis mil cópias da carta, que distribuía para as pessoas. Depois, parou de tentar receber mensagens do filho. “Rezei muito para voltar a sorrir. Se eu me entregasse, ia acabar com minha família e me tornaria uma pessoa chata. A dor e o prazer são sensações muito exclusivas. Não devem ser alardeadas”, declarou à reportagem.

Leia a íntegra da carta psicografada de Manoel

Querida mamãe, meu pai, este é o momento do Mané criança e preciso pedira bênção. Não sei muito bem como escrever aqui. A sala iluminada, muita gente, e o menino aqui, lembrando as provas do colégio. Se a memória não estiver funcionando corretamente, já sei que não consigo o que desejo. Acontece, porém, que tenho bons amigos, auxiliando-me a grafar esta carta.

Creiam vocês, a rapidez da escrita, o tipo da letra, em grande parte pertencem a eles, à Vovó Maria e ao nosso amigo Dr. Trajano, mas o que escrevo, o que passo nas linhas caprichosas do lápis não é cola nem sopro de outras inteligências.

Mãezinha, é hora de chorar com vocês e afirmar que os sentimentos são meus mesmos, são de seu Manoel caladão, enfeitado de tantas idéias e de tantas teimosias que fui até onde a rebeldia e a falta de comunicação me levaram. Já sabemos tudo. Papai foi mais forte, naquele dezembro que estourava com a nossa certeza de uns dias de recreio e bons papos com os nossos de Limeira, quando você, mamãe, fazia tantos planos diante de nós, para ver se descansava de suas lutas no trabalho, eis que o Mané não achou a pedra no caminho, mas encontrou um tronco forte que me pôs a cabeça incapaz de pensar.

Mãezinha e meu pai, eu fiz tudo para levantar o corpo, mas eu creio que o choque me alterou a circulação. Não estamos na hora de saber se rebentei alguma artéria importante ou se abri torneiras de sangue na cabeça intracraneo (vamos criar uma palavra que me ajude a recordar), mas o que é certo é que sou trazido até aqui para consolar-nos, uns aos outros. Erguer-me não pude, falar muito menos, tive apenas a sensação de que caía num sono contra minha própria vontade. E creiam vocês dois que pensei em ambos do mesmo modo que pensei em Deus naqueles momentos em que me apagava devagar. Tanto desejo de sair, buscar algum telefone e contar que fora vítima de um acidente. Mamãe, isso tudo eu pensei com tantas saudades de você. Naquela hora precisava de sua alegria e de sua palavra para suportar o tranco, mas sem saber rezar, em silêncio pedi a Deus nos abençoasse e não deixasse você e meu pai acreditarem em suicídio. Às vezes, o Mané casmurro que eu era, falava em mundo difícil de agüentar e fazia alguma referência que pudesse dar a idéia de que, algum dia, ainda forçaria o por tão de saída da Terra. Mas estejam convencidos de que o carro deslizou sem que eu pudesse controlá-lo. A visão não estava claramente aberta para mim, porque sentia em torno uma névoa grossa e a manobra infeliz veio fatal e com tamanha violência que a tese de suicídio não devia vir à baila.

Isso tudo, eu compreendi muito depois, porque naquele instante eu estava pensando em Natal e em nossa viagem a Limeira. Não sei se recordam que eu demonstrava uma certa indecisão entre acompanhar a família ou ficar em nossa casa. Mas isso tudo era só de mentirinha porque, no fundo, eu queria seguir com todos. Mas eu, que às vezes, falava na morte, não sabia que ela me espreitava assim tão perto. Caí sem querer num sono violento no qual me pareceu estar num poço muito profundo, à espera de que me libertassem, conquanto não me fosse possível gritar por socorro. Por fim, sonhei, como num pesadelo que em carregavam para o hospital e escutei, mamãe, o seu choro abafado. As vozes baixas no sonho eram ainda mais baixas. Senti o cheiro de remédios e escutei o ruído de instrumentos como se penetrando em meu cérebro. O sonho era demorado, um sonho em forma de pesadelo, daqueles que a gente quer acordar sem poder, mas depois, veio um sono silencioso, como se tudo houvesse acabado, o mundo e eu. Despertei não sei quando até hoje, e me senti à vontade, pedindo pela presença de meu pai para conversar. Queria preparar com ele um modo de atenuar os sustos em casa e sempre com a idéia fixa na viagem do Natal. Foi quando minha avó Maria e outra senhora, a quem ela deu o nome de D. Maria Angélica de Vasconcellos me animaram para o conhecimento da verdade. A realidade é que eu estava completamente boiando nos casos. Não conhecia ninguém. Elas me apresentaram a dois senhores, que se identificaram como sendo o Dr. Trajano de Barros e o meu bisavô Souza e depois trouxeram um sacerdote amigo e paternal que me disse conhecer-nos a todos. Tive a idéia de que o grupo se compadecia de minha ignorância, mas o sacerdote encontrou um caminho para abordar-me:

Pois você, Manoel, nunca ouviu em casa de seu avô a história de Frei João, aquele que pretendia curar febres com o suco de limas?

Ele perguntou com um sorriso tão luminoso e tão amigo que meu espanto diminuiu. Se eu estava vendo o frei João de Limeira eu estava entre os mortos ou entre os vivos de outra espécie e perguntando à minha avó Maria sobre isso, com o olhar ela me respondeu: – É verdade, meu filho, a casa de Irineu e de Nair agora é a nossa aqui para você. A morte não existe. Você apenas voltou aos seus. Tínhamos muitas saudades de você também. Aquilo me cortou o coração. E mamãe? Ele me informou que você e meu pai com os irmãos estavam com a bênção de Deus e que eu não devia rebelar-me contra o acontecido mamãe. Não adiantaria qualquer resposta agressiva de minha par te… Então chorei como se “nunca mais” fosse a situação em que a morte nos colocava diante daqueles que mais amamos. As emoções me agravaram a condição de doente e debati-me numa febre que perdurou muito tempo. Febre em que a via alucinada de dor, com meu pai procurando reconfortá-la. Quem disse que a morte liquida tudo estava muito enganado. Nas alucinações ouvia os seus pensamentos: “o que terá você feito, filho? Manoel, conte para sua mãe a verdade! Fale se você não mais nos quis!”. E eu respondia explicando o acidente, mesmo cansado e abatido como estava via meu pai sofrer calado para não aumentar a tristeza em casa e ouvia os irmãos falando em festas de Natal e Ano Novo, com algumas pontas de ironia de quem não compreende a presença do sofrimento, nas horas em que mais pensamos em Deus. Mas, melhorando, comecei a temer por você, Mãezinha. Sua alegria parecia morta, seu coração dava a idéia de uma noite fria e sem estrelas. Você pensava se valeria a pena ficar na terra sem seu Mané casmurro. E tanto amor extravasava de seu coração para o meu -embora as distâncias de Espaço que não existem para os que se amam – que, o teimoso de sempre, inclinei-me para a idéia de Deus e comecei a pedir por sua alegria e por sua vida. Papai e os nossos não podiam ficar sem você e você não poderia vir antes do momento marcado. Pedi e pedi tanto que, um amigo apareceu com a vovó Maria e se identificou por Oduvaldo. Era o nosso amigo Oduvaldo Viana que me disse: -Você pode estar sossegado, Nair é mais corajosa do que você pensa e nós vamos organizar a peça em que sempre desejei ver sua mãe mostrar o talento que lhe conheço.

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Depois de algum tempo, passei a vê-la no espelho de minha visão ocupada com o teatro e Oduvaldo com muitos amigos auxiliando-a. Mãezinha, eu sabia que isso ia dar certo, porque você foi sempre a rainha do trabalho. Serviço nunca lhe deu medo e foi com muitas lágrimas de alegria que fui levado para abraçá-la em sua volta ao palco de paz e alegria. O trabalho diminuiu nossas penas, papai ficou mais calmo ao vê-la mais serena e toda a família reanimou-se.

Perdoem-me me estendi tanto. Não tenho pretensões de sintetizar.

Isto é para os escritores que burilam as palavras e as frases, como os ourives fazem como as pedras preciosas. Aqui, mamãe, é só o coração do filho para tranquiliza-los. Estou bem. Estou em outras faixas e agora menos introvertido. Estou apreendendo aquela ciência em que você e meu pai sempre me quiseram bem formado, a ciência do diálogo. Estou aprendendo a sair de mim mesmo e a ouvir para responder certo. Penso que conseguiu o que desejava: sossegar meu pai e minha mãe, acerca do acidente de que fui vítima. Papai está com excelentes estudos sobre a vida de alma. Quando você, mamãe, puder fazer o mesmo, isso será muito bom. Eu teria chegado aqui mais escovado se tivesse alguma preparação sobre os meus novos assuntos.

Abraços na turma toda, começando por Aparecida e continuando nos irmãos. Diga mamãe, a eles todos que estou melhor e com boas notas de renovação. Desejo a todos uma vida longa e muito feliz. Obrigado, mamãe, por seus gestos de caridade pensando em mim. Esse agradecimento é extensivo ao meu papai. Minhas saudações aos seus e nossos companheiros de trabalho, especialmente aos que vieram com vocês até aqui. Um abração para todos de São Paulo a Limeira e vice-versa. Agora, peço-lhes que me abençoem com alegria. Mamãe, eu creio que principalmente você e eu já nos cansamos de chorar. Coloque a sua alegria em nossa vida como sempre. Seja sempre a nossa Nair Bella, que nós seguíamos atentos em tudo de bom e belo que a sua arte produz. Meu abraço aos dois, a você e a meu pai, com um beijo do filho cada vez mais reconhecido e sempre mais filho de vocês dois pelo coração e com todo o coração do Mané.

Manoel Francisco Neto

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