Uma grande virada de jogo. Assim pode ser definida a volta de Glória Perez ao horário das nove. Imensamente criticada em Salve Jorge (2012-13) – não sem razão, pois foi sua pior novela -, a autora subverteu todas as desconfianças com a aclamação de A Força do Querer, novela das 21h que estreou em abril deste ano e terminou nesta sexta-feira (20 de outubro) após 172 capítulos, em pouco tempo mostrou sua força. O resultado: um imenso sucesso em todos os sentidos – audiência, público, crítica e repercussão.
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Abandonando a antiga fórmula adotada no grande sucesso O Clone (2001-02) e repetida em suas novelas posteriores, Glória Perez mostrou que aprendeu com boa parte de seus erros e apresentou um enredo repleto de histórias fortes, personagens densos e condução ágil em grande parte do tempo. A mobilização do público em torno destes perfis alcançou níveis que não se viam desde Avenida Brasil (2012), último grande sucesso do horário.
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O ponto de partida de A Força do Querer desta vez trouxe não uma, mas três riquíssimas protagonistas: Ritinha (Isis Valverde), Jeiza (Paolla Oliveira) e Bibi (Juliana Paes). Como é tradição na carreira de Glória, foram elas que ditaram o tom das histórias principais, através de suas vivências, trajetórias, desatinos, sonhos e experiências.
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Os perfis das três mulheres se complementavam. Ritinha, a sedutora sereia paraense, era uma garota inconsequente e egoísta, capaz de mentir e manipular, mas que não tinha noção do que era certo ou errado e por isso não via maldade em suas ações. Jeiza, a policial e lutadora empoderada, foi a representação da mulher dos tempos atuais, que mostra que pode fazer o que quiser e não deixa de ser feminina e sensual mesmo estando em ambientes considerados masculinos. Bibi, inspirada na história de Fabiana Escobar (ex-esposa de um traficante carioca), foi o perfil mais controverso, ao se envolver com o malandro Rubinho (Emílio Dantas) e embarcar no mundo do crime, para desespero da mãe – um relacionamento que mais tarde se mostraria bastante abusivo.
Em paralelo às protagonistas, se desenvolveram os dramas da família Garcia. Joyce (Maria Fernanda Cândido), casada com Eugênio (Dan Stulbach), acreditava ter uma família perfeita, mas seu castelo de ilusões desmoronou aos poucos ao descobrir que o filho Ruy traiu a noiva Cibele (Bruna Linzmeyer) com a sereia Ritinha e a filha Ivana (Carol Duarte) não se identificava com seu gênero, enquanto o marido, desanimado com o casamento, se deixou seduzir pela interesseira Irene (Débora Falabella).
O merchandising social, também recorrente na obra de Glória Perez, se fez presente através da abordagem de temas como o vício em jogos de azar – através de Silvana (Lilia Cabral); machismo – através de Zeca (Marco Pigossi) e Eurico (Humberto Martins), marido da Silvana; identidade de gênero – protagonizada por Ivana e por Nonato (Silvero Pereira), motorista que levava uma vida dupla, se travestindo como Elis Miranda; e o combate ao crime, através de Jeiza.
Nesta novela, Glória aprendeu com grande parte dos erros cometidos nas novelas anteriores. A autora desta vez trabalhou com um grupo mais enxuto, em torno de 50 atores, e as histórias foram bem melhor entrelaçadas, permitindo uma maior integração entre os núcleos e personagens. Os dramas das protagonistas foram abordados através de um rodízio, onde uma tem destaque por um certo período, passando para a outra e assim por diante.
A direção da equipe de Rogério Gomes foi outro ponto positivo. A chegada do novo diretor foi um upgrade e tanto, o que permitiu que o afiado texto de Glória se agigantasse na tela. Além disso, várias grandes cenas foram de tirar o fôlego, especialmente as operações policiais e os bailes funks ocorridos no Morro do Beco. E a escolha do elenco foi um grande acerto em sua maioria, com alguns nomes vivendo os melhores papeis de suas carreiras e apresentando promissoras revelações.
Isis Valverde, Paolla Oliveira e Juliana Paes, três grandes estrelas, honraram a força do trio protagonista. Isis esteve fantástica na pele da sereia Ritinha, mostrando todas as facetas do papel com competência e deu um ar misterioso e sensual que coube como luva para a garota paraense.
Paolla, por sua vez, ganhou sua protagonista mais completa. Após brilhar vivendo a sedutora Danny Bond em Felizes Para Sempre e a vilã Melissa em Além do Tempo, a atriz deu vida ao perfil mais íntegro do triângulo. Jeiza foi uma personagem cativante e irresistível: policial competente, lutadora cheia de energia e mulher decidida, linda e sexy. Seja fardada, nos ringues ou à paisana, Paolla deu um show e se destacou em todos os momentos, fazendo da empoderada protagonista um dos melhores perfis de sua carreira e mostrando que também sabe fazer ótimas protagonistas.
Juliana Paes, igualmente em grande fase, foi responsável por viver a personagem mais polêmica. A atriz esteve em completo estado de graça, retratando genialmente a impulsiva Bibi, que foi capaz de entrar para o mundo do crime e colaborar com bandidos da pior espécie, em nome do desejo de ser idolatrada – nas palavras dela, “amar grande e ser amada grande”. Bibi irritou em muitos momentos por sua extrema cegueira em relação ao Rubinho e por não ouvir sua mãe – e Juliana foi maravilhosa em todas estas fortes sequências.
Dan Stulbach e Maria Fernanda Cândido, atores que andavam sumidos das novelas, voltaram ao formato e se destacaram na pele do casal em crise – aliás, ela foi um dos maiores destaques da novela, mostrando sua competência ao interpretar a preconceituosa dondoca Joyce. Elizângela, intérprete de Aurora – mãe de Bibi -, viu sua personagem crescer merecidamente com o destaque da trama de Bibi e emocionou com o desespero da mãe, tornando-se uma porta-voz do público.
Zezé Polessa divertiu na pele da interesseira Edinalva, mãe de Ritinha; Emílio Dantas fez uma impecável composição do bandido Rubinho; Tonico Pereira e Luci Pereira formaram uma ótima dobradinha como Abel e Nazaré, pai e tia de Zeca; Lilia Cabral foi fantástica na pele de Silvana; Marco Pigossi e Humberto Martins mostraram versatilidade – dando ótimas nuances que distanciaram seus atuais perfis de outros personagens da carreira; Karla Karenina e Cláudia Mello fizeram de Dita e Zu ótimas confidentes; e Juliana Paiva, mesmo com um papel de orelha, finalmente se libertou dos traços de Fatinha, sua personagem em Malhação, e mostrou que é uma atriz promissora.
A novela ainda trouxe ótimas revelações, a começar por Carol Duarte. A estreante, responsável por Ivana, a garota transgênero que se transforma em homem (Ivan), mostrou uma impressionante maturidade para um primeiro trabalho e protagonizou sequências belíssimas. Silvero Pereira, intérprete do chofer Nonato, que se transforma em Elis Miranda, também esteve perfeito e formou uma excelente parceria com Carol. Dandara Mariana, como Marilda (amiga de Ritinha), fez uma divertida dupla com Isis Valverde. João Bravo, como Dedé, filho de Bibi e Rubinho, foi a grande revelação mirim do ano e emocionou em todas as cenas. Lorenzo Souza, o Ruyzinho, apesar de sua muito pouca idade, encantou pela graciosidade, fazendo todo o elenco (e o público) se apaixonar pelo filho de Ritinha.
Pouco mais tarde, foi a vez de Jonathan Azevedo cair nas graças do público. O intérprete do bandido Sabiá, com seu linguajar do morro, tornou o personagem um dos mais carismáticos da trama, apesar dos crimes nas costas – tanto que a autora desistiu de matar Sabiá e o deixou até o fim. E a novela ainda contou com o retorno de Carla Diaz, que estava atuando na Record e, na pele da periguete Carine, a “protegida” de Rubinho, reeditou a parceria com Juliana Paes, agora como rivais.
E não faltaram bons casais, como em toda boa novela. O melhor deles, disparadamente, foi o par formado por Jeiza e Zeca. A policial feminista e o caminhoneiro machista pareciam um casal improvável, porém, a antipatia inicial deu lugar a uma irresistível e arrebatadora história de amor, temperada pela explosiva química entre Paolla Oliveira e Marco Pigossi. O casal de marrentos não demorou a conquistar o público e ganhou um apelido nas redes sociais: Jeizeca, junção dos nomes dos personagens, formando uma torcida que se manteve fiel ao par mesmo quando estavam separados.
A história mal resolvida entre Caio e Bibi foi outro acerto, pois o advogado era o genro ideal para Aurora e, ao lado dele, a ex-estudante de Direito reafirmara que nunca deixou de amá-lo, enquanto o que sentia ao lado de Rubinho era apenas o prazer de ser venerada e desejada. Juliana Paes repetiu a excelente sintonia ao lado de Rodrigo Lombardi e, mesmo sendo a relação com Rubinho muito abusiva, também teve uma química ótima com Emílio Dantas.
Mesmo numa boa novela, nem tudo funciona a contento. Também é preciso abordar onde a trama não foi feliz. O erro mais grave foi a escalação de Fiuk para o viver o mauricinho Ruy. A falta de traquejo do rapaz e sua inexpressividade fizeram com que o personagem – um tipo imaturo e intragável em essência – se tornasse ainda mais insuportável, comprometendo seriamente o conjunto. Isto ficou ainda mais evidente nas cenas que exigiam mais dele, destoando muito dos demais.
Outro erro foi a vingança de Cibele. A ex-noiva de Ruy embarcou em um projeto de se vingar do rapaz que não teve resultado prático nenhum e só mostrou a falta de amor próprio da garota. Tanto que ela perdeu a função ao longo da novela e a personagem de Bruna Linzmeyer não tinha mais razão de existir.
Aliás, Bruna não foi a única que ficou avulsa. Outros nomes não tiveram muito destaque, mesmo com um elenco mais enxuto e melhor aproveitado. Foram os casos de Edson Celulari (Dantas, um sócio de Eurico que era apaixonado por Silvana), Gustavo Machado (Cirilo, amigo de Caio), Michele Martins (Shirley, namorada de Dantas), Mariana Xavier (Biga, secretária de Eurico) e Lua Blanco (Anita, amiga de Cibele). A participação de Fafá de Belém como Almerinda, mãe de Zeca, também não disse a que veio.
A vilania de Irene, que prometia atingir todos os núcleos, se restringiu apenas a infernizar a vida de Joyce e Eugênio – inclusive com o surrado clichê da falsa gravidez. A psicopata, cujo nome verdadeiro era Solange Lima, não chegou a apresentar grandes maldades na novela. Ainda assim, Débora Falabella mostrou seu talento e versatilidade e a sequência da morte de Irene, com toques de filmes de terror, impactou.
Ainda se deve enfatizar a má condução do enredo de Silvana, que andou em círculos durante muito tempo e apresentou duas falsas viradas. Eurico chegou a descobrir o vício da mulher e ela foi para uma clínica psiquiátrica, mas logo ela conseguiu fugir e tudo voltou à estaca zero. A repetição cansou, bem como a eterna cumplicidade de Dita e o fato de Eurico não desconfiar de nada.
A novela também chegou a despertar críticas de setores mais conservadores, especialmente em função da história de Bibi – muitos enxergaram apologia e glamourização do crime no enredo. Neste caso, porém, a própria condução do enredo tratou de quebrar este argumento, através da presença de Aurora – a mãe desesperada pela vida criminosa da filha – e Jeiza, a policial competente.
Um ponto que também desagradou foi a resolução dos principais dramas da novela apenas nos últimos capítulos – em vez de fazê-lo gradualmente ao longo do último mês. Com muitos desfechos a se resolverem, havia a chance de o final ficar corrido e as cenas não terem o impacto que mereciam.
E, de fato, foi o que se viu em parte do último capítulo. Muitas soluções ficaram corridas, como o momento em que Eurico descobriu que Nonato se traveste como Elis Miranda – o empresário aceitou a situação de forma muito rápida – e o sequestro de Simone, em que Silvana finalmente admite ser viciada em jogos de azar. Também não ficou crível a repentina amizade entre Ruy e Zeca – que passaram a criar Ruyzinho juntos -, após a tempestade que os dois enfrentaram novamente (como no primeiro capítulo). Alguns desfechos foram exibidos apenas no bloco final, narrados por Garcia (Othon Bastos).
No entanto, a maioria dos finais foi excelente, com destaque para a arrepiante luta de Jeiza no UFC e a retomada do casal Jeizeca, que teve gêmeos; a prisão de Bibi por incendiar o restaurante de Dantas e sua redenção, com direito à reconciliação com Caio e ao lançamento de um livro com sua história – inclusive com a presença de Fabiana Escobar, a verdadeira Bibi; a derrocada final de Rubinho e Sabiá – o primeiro morto e o segundo preso; a felicidade de Ivan ao lado de Cláudio na praia, ao som da linda ‘True Colors’; e o sucesso de Ritinha como sereia nos Estados Unidos.
Tamanho sucesso rendeu inclusive uma edição especial do Globo Repórter, mostrando os bastidores da produção da novela – como os reflexos das tramas de Ivana/Ivan e Silvana na vida real, o encontro de Elizângela com a mãe da Bibi da vida real, as filmagens na região Norte, na vila que originou a fictícia Parazinho; e as gravações na comunidade de Tavares Bastos, nas quais o elenco conviveu com os moradores da região.
Com mais acertos que erros, Glória Perez conseguiu o que parecia improvável nos últimos anos: resgatar a mobilização em torno de uma novela das nove e fazê-la cair na boca do povo. Como resultado, a audiência da novela elevou o ibope do horário em impressionantes nove pontos em relação à antecessora A Lei do Amor (27 pontos), encerrando seu ciclo com média geral de 36 pontos. O maior sucesso desde Avenida Brasil, último grande fenômeno da faixa.
Por tudo que apresentou, A Força do Querer não é apenas a melhor novela das 21h dos últimos anos. É também a melhor novela de Glória Perez, superando até mesmo a aclamada O Clone (2001-02). A autora mostrou uma clara reinvenção em seu estilo, criou grandes dramas e personagens ricos, escalou um time de primeira, com inúmeros talentos e poucas exceções, e apresentou uma novela forte, intensa e deliciosa de acompanhar, resgatando assim o prazer de ver uma boa novela das nove. A Força do Querer já está deixando saudades e fatalmente deverá ganhar diversos (e merecidos) prêmios. Palmas para Glória Perez, Rogério Gomes, elenco e equipe pelo imenso sucesso e pelo grandioso resultado!