A Força do Querer acolheu Brasil órfão de boas novelas
21/10/2017 às 17h00
Em tempos de audiência pulverizada – entre TVs e aplicativos -, e onde tudo o que há de bom e de ruim vai parar nos TrendingTopics, qual a melhor forma de mensurar o sucesso de uma novela? As ruas. Na minha leiga opinião, é no boca-a-boca que se comprova o êxito de A Força do Querer.
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Evidente, claro, que o maior índice do horário das 21h nos últimos cinco anos e os inúmeros comentários acerca da trama nas redes sociais pesam na conta. ‘Força’, no entanto, resgatou algo que não víamos faz tempo: nas conversas, se substituiu o termo “novela das nove” por “novela de tal personagem”. E aí, pode ser Bibi (Juliana Paes), Jeiza (Paolla Oliveira), sereia Ritinha (Ísis Valverde), Zeca (Marco Pigossi), Irene (Débora Falabella), Nonato / Elis Miranda (Silvero Pereira)…
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Em quase todas as minhas atividades de ontem (20), do caixa eletrônico ao balcão da farmácia, encontrei conhecidos que, sabedores da minha paixão por teledramaturgia, só faziam perguntar: “e a novela, hein?”. Não era para agradar meu íntimo, que se alegra sempre que os folhetins dominam minhas conversas; era para tentar saber um tiquinho que fosse das emoções previstas para o derradeiro capítulo.
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O ouvido sempre atento de noveleiro também “pescou” referências à trama de Gloria Perez em bate-papos paralelos: “vou desligar o celular pra que ninguém me ligue na hora da Bibi” ou “quero ver se saio mais cedo pra não perder a luta da Jeiza”. Não foi só hoje. Ao longo dos últimos meses, ouvi sem querer ou querendo debates acerca da transgênero Ivana (Carol Duarte), do traficante Rubinho (Emílio Dantas), da viciada em jogos de azar Silvana (Lília Cabral)…
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É certo que A Força do Querer foi além dos personagens. Foi fundo no debate; na tomada de consciência. No momento em que ouvi de uma senhora de quase setenta anos que “Ivana não se sentia bem no corpo de mulher, tinha que buscar a felicidade como homem”, senti que a mensagem que Gloria buscava passar ao falar em transgêneros estava dada. Trata-se uma visão simplista, mas muito respeitosa, afável. Além da discussão, tão pertinente, tivemos ainda a escalação de Maria Clara Spinelli, transexual, como Mira. Na trama, não houve referências à cirurgia de redesignação sexual a qual a atriz se submeteu anos atrás – e que, em outros tempos, poderia ser tratada como chamariz para a personagem. Um acerto! Estamos diante de uma artista, não de uma história de vida que, para o público, não influi no folhetim.
Muito se falou na má influência de Bibi Perigosa. A acusação de que Gloria Perez estaria “defendendo” o crime jamais se sustentou: como acreditar que a bandidagem compensa quando o que se via, no roteiro e fundo dos olhos de Juliana Paes, era a angústia da moça com medo da polícia, com receio de tiroteio no morro, com o marido preso enquanto o ex, que ela trocou por acreditar que ele não “amava grande”, ganhava funções na secretaria de segurança? Bibi foi a personificação do medo. O medo da violência urbana, de romper com o que julgamos ser amor, de admitir que errou e de não ter mais como consertar. E do “medo” da TV influenciar as crianças – quando há educação e estrutura familiar isto não acontece, estejam cientes.
Bem assessorada pelo tão menino e tão brilhante João Bravo (Dedé), por Emílio Dantas – não à toa, promovido a protagonista da próxima novela de João Emanuel Carneiro -, e por Elizângela – a quem a Globo deve um contrato vitalício -, Juliana Paes brilhou! Ganhou peso de protagonista e certamente vai faturar, merecidamente, os prêmios de atriz do ano.
Destaque ainda para a opção do diretor artístico Rogério Gomes – o melhor de sua geração – por gravações em externas como a comunidade Tavares Bastos (na ficção, o Morro do Beco). E para Jonathan Azevedo, o Sabiá, que chegou para uma participação pequena, mas se mostrou tão grande em cena que acabou ficando.
Aliás, A Força do Querer foi a novela dos grandes personagens pequenos. Comentários que li hoje pela manhã questionam os finais de Cândida (Gisele Fróes) Dita (Karla Karenina), Zu (Cláudia Mello), Marilda (Dandara Mariana), Nazaré (Luci Pereira) e Amaro (Pedro Nercessian). Não há final. Eles tocaram suas vidinhas, como fizeram ao longo de toda a narrativa, assessorando figuras centrais do roteiro. Ao “poupar” determinados coadjuvantes de tramas próprias, Gloria evitou o excesso de fios soltos que poderiam emaranhar sua novela – como vimos na fatídica Salve Jorge (2012).
Desta forma, brilharam Mariana Xavier e Juliana Paiva. Não precisávamos de mais uma história da mulher acima do peso que encontra o sucesso como modelo plus size; os comentários de dona Biga (Mariana) sobre lingeries e namoros já deixavam a mensagem clara: não interessa o corpo, mas a essência. Biga se sentia feliz daquele jeito, a ponto de ter ânimo o suficiente para motivar Nonato / Elis, ocultando sua identidade dentro de um terno – o contraponto à amiga sem amarras que a impediam de ser o que era. O mesmo para Simone. Valeu muito mais ver Juliana – enfim distante do estilo “periguete simpática” de Malhação (2012) e Totalmente Demais (2015) – contribuindo para as tramas de Ivana e Silvana do que vivendo uma “conflito pessoal”, talvez vazio.
Também não é possível acusar Gloria de ter desperdiçado Edson Celulari, muito bem colocado em diversas situações importantes no desenrolar dos capítulos. O grande problema de Dantas era estar inserido num núcleo fraco, em comparação com os demais: a namorada Shirley (Michelle Martins) só voltou para cumprir tabela; a filha Cibele (Bruna Linzmeyer) se meteu numa equivocada vingança contra Ruy. Dentre as possibilidades oferecidas pela autora para esta turma, foi Celulari quem se deu melhor.
Deslizes nós vimos, sim, na reta final: ficou para o último capítulo dois momentos vitais para a trajetória de Ivan e Nonato. A controversa gravidez do primeiro – que serviu para reaproximá-lo da mãe Joyce – bem poderia ter sido “substituída” pela volta de Cláudio (Gabriel Stauffer). Soou estranho ver o rapaz rejeitar Ivan num primeiro encontro e, tempos depois, aparecer aos beijos com ele numa praia. Da mesma forma, Eurico descobriu “em termos” a Elis Miranda que habitava o íntimo de Nonato. A conversa dos dois rendeu uma cena terna e divertida. Mas teríamos outras possibilidades para ambos se esta descoberta não tivesse sido protelada até o último instante.
De volta às novelas após anos de afastamento, Maria Fernanda Cândido e Dan Stulbach surpreenderam com Joyce e Eugênio. Lamenta-se, contudo, que o casal não tenha descoberto a falsa gravidez de Irene antes da morte da vilã. Gloria poderia ter aproveitado este entrecho de outra forma, usando o fim da farsa da bandida para acentuar seus transtornos psicológicos – que a faziam acreditar estar realmente grávida e que a levaram para a morte. Cabe aqui pedir palmas para a autora por ter fugido do clichê “quem matou?” nos momentos finais, conforme a imprensa chegou a noticiar.
Esperávamos mais também da relação de Zeca com a mãe Mere Star (Fafá de Belém) – ofuscada talvez pela ótima sintonia de Abel (Tonico Pereira), pai do caminhoneiro, com Edinalva (Zezé Polessa); e de Garcia (Othon Bastos) e sua hilária Elvira (Betty Faria em seu melhor papel em anos!).
Pois é. A Força do Querer chegou ao fim, após meses “habitando” grande parte dos lares brasileiros, agora mais vazios. A partir de segunda-feira, caberá a O Outro Lado do Paraíso, de Walcyr Carrasco, colocar os nomes de seus personagens na boca do povo e suas tramas em debate em todas as conversas. Torcemos para que a equipe consiga essa proeza.