“Betty Faria tem 33 anos”. Foi a primeira coisa que a atriz disse à jornalista Marisa Raja Gabaglia. Nesta entrevista à Manchete (Ed.1167), Gabaglia oferece à diva tangerinas descascadas e talheres “Para que você não guarde o cheiro da fruta nas mãos”. E a jovem atriz, que estava grávida naquela ocasião, achou isso coisa muito curiosa.

Em 1973, Betty gravou a novela “Cavalo de Aço” (foto abaixo). Tão logo encerrou sua participação nesta obra, foi convidada a fazer parte da montagem de “Calabar”, peça de Chico Buarque. Todavia, às raias da estreia, a peça foi censurada pelo Governo Federal de então. De uma hora para outra, os 40 atores viram-se desempregados. Foi neste contexto que a atriz recebeu o convite para fazer “A Estrela Sobe”. Foi uma contratação providencial, tanto para ela – atriz – como para os produtores do filme, afinal Leniza Mayer passou pelas mãos de várias atrizes até chegar às de Betty.

O primeiro nome pensado para protagonizar “A Estrela Sobe” foi Dina Sfat. A então esposa de Paulo José havia sido a protagonista de “Tati, a Garota”, incensado filme de estreia de Bruno Barreto. Sfat já estava preparando-se para as gravações – inclusive tendo aulas de canta com Dori Caymmi, segundo apontaram os jornais da época – quando foi convocada pela TV Globo a fazer “Os Ossos do Barão”. Iniciou-se, então, uma cruzada para encontrar a substituta de Dina.

A primeira delas, Sandra Bréa, não pode aceitar, assim como Adriana Prieto – que, inclusive, viria a falecer naquele ano de 1974. Betty foi, então, a quarta opção, porém a mais assertiva. Além de ter experiência com dança, já possuía alguma vivência como cantora, pois em 1966 havia gravado o contracanto de “Canto de Ossanha”, dos Afro Sambas, disco de Vinicius de Moraes.

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Embora tenha cantado em todos os números musicais do filme, a voz de Leniza nos diálogos não é da atriz Betty Faria. Naquele tempo, a técnica de filmagem obrigava que o som fosse gravado separadamente da imagem. Em “A Estrela Sobe” houve uma situação peculiar, influenciada pela gravação de uma novela.

É o que conta com exclusividade ao TV História o diretor do filme, Bruno Barreto: “Betty já estava envolvida na produção de O Espigão, o que impediu a gravação de sua voz, já que a dublagem duraria cerca de um mês. Este fato nos obrigou a procurar outra atriz para dublar suas cenas. A escolhida foi Norma Blum”. Para interpretar Dulce Veiga, outra personagem relevante em “A Estrela Sobe”, o cineasta afirma que um nome foi unânime: Odete Lara (foto abaixo). O fotógrafo de cena, um novato que pisava pela primeira vez num set de filmagem, acabou por apaixonar-se pela atriz e casar-se com ela. Seu nome: Euclydes Marinho.

“Estrela” é o segundo filme da carreira de Barreto e, tal como o primeiro, “Tati, a Garota”, tratou-se de uma adaptação literária. As negociações para a compra dos direitos do filme iniciaram-se ainda em 1973 e foram mediadas por Lucíola Barreto, avó do diretor. Consta em alguns jornais da época que não se tratou de uma negociação fácil, pois Rebello já havia passado os direitos de uma outra obra sua, “Marafa”, a Adolfo Celi, que não a encenou. À Revista O Cruzeiro (Ed. 43, 1974), porém, Barreto diz que Rebello estava muito empolgado em ver “O seu livro favorito” nas telas: “eu assino qualquer coisa. Quero ver esse livro filmado – afirmou o romancista, que, desafortunadamente, viria a falecer ainda naquele ano, sem antes ter visto a fita concluída”.

Em “Estrela” questões delicadas como a bissexualidade e o aborto são tratadas. Numa elogiosa crítica ao filme, Flávio Marinho apontou que ele traz a “nostalgia dos anos 40 com pitadas de anos 70” e pontuou: “Betty está irrepreensível. Aliás, é importante ressaltar que a abordagem a esses temas ainda hoje pode ser considerada corajosa, em face da onda conservadora que assola o País.

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Em 1974, ainda vigorava a censura e o filme não passou incólume por ela. A cena que mais chocou os censores não foi a temática sexual, o aborto ou o flerte da protagonista com a prostituição, mas a perda de sua virgindade. Barreto afirma ao TV História que a cena foi cortada das cópias do filme, embora mantida nos festivais, únicos locais onde o filme foi exibido integralmente.

Leniza Mayer talvez seja a primeira personagem de Betty Faria a revelar uma característica que viria a ser recorrente entre as suas personagens: aquela que não faz nenhuma concessão em favor de seus objetivos, mesmo que para isso necessitem corromper-se. À Revista Manchete (Ed. 1309), a atriz disse: “Eu me empolguei com esse projeto (o filme). Havia muita coisa a ser explorada: medo, insegurança, dor, luta, vontade de afirmação”.

Além disso, a própria revista da Bloch destacou o pioneirismo de “Estrela” ao trazer fortes personagens femininas: “(As mulheres ganham) um papel decisivo, um papel central, deixando de ser personagens secundárias como o são até agora” (Manchete, Ed. 1137). Este cuidado com a questão feminina foi pensado pelo diretor do longa, que informou haver contratado a roteirista Isabel Câmara a fim de que ela desse um tratamento, um olhar mais feminino, especialmente aos diálogos de Leniza.

Além de Câmara, o roteiro foi escrito por Leopoldo Serran e contou com a colaboração de Cacá Diegues, que afirmou ao TV História ter tido “uma participação muito pequena neste belo filme. Mais por ser grande admirador da obra de Marques Rebello”.

Em seu livro, Betty afirma que as relações com Barreto eram difíceis, fato confirmado pelo diretor ao TV História – Eu era um ditadorzinho – disse. Numa entrevista, ainda em 1974 (Manchete, Ed. 1167), Betty disse haver brigado “para ter as oito horas de trabalho que me eram devidas e as diárias quando o filme foi concluído (…). Existe um desrespeito humano pelo profissional, pois a profissão não é regulamentada” – Fato este que parece ter colaborado no desgaste entre ambos àquela época. A atriz relata em sua biografia que a amizade com o diretor só foi restabelecida nas gravações de “Romance da Empregada” (1988) , o que é negado por Barreto: “Inclusive, fiz questão de homenageá-la em Dona Flor e Seus Dois Maridos, em que Betty fazia um número musical. No filme, Vadinho (José Wilker) apresenta-a como Leniza Mayer, ‘uma grande cantora do Rio de Janeiro’” – afirma.

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As cenas iniciais e finais do filme foram gravadas nos estúdios da antiga TV Rio, emissora onde Betty estreou, sendo uma das girls do programa “Noite de Gala”, além de ter sido a televisão na qual fez a sua primeira novela, “Acorrentados”, que marcou a “primeira falência” da TV. À época da gravação de “Estrela”, a emissora já havia deixado o prédio do Cassino Atlântico, no Posto 6, em Copacabana e estava em seu “segundo” estágio pré-falimentar, tendo seus estúdios abrigados no prédio de um hotel abandonado em Ipanema, cujas construções foram paralisadas devido à falência da construtora. A TV Rio “faliu” três vezes, sendo a última em 1994.

Em 1975, a Manchete anunciou que o próximo filme de Barreto seria um policial. Não foi. Logo após “A Estrela Sobe”, Bruno gravou “Dona Flor e Seus Dois Maridos” filme de maior bilheteria do cinema nacional entre 1976 e 2010. O filme policial em questão só seria gravado em 1979, “Amor Bandido”. Tanto “Amor Bandido” como “A Estrela Sobe” foram produzidos pela ICB, que viria a ser uma espécie de embrião da atual Globo Filmes, e tinha Walter Clark como um de seus sócios, além do próprio Luiz Carlos Barreto. Com o falecimento de Walter, em 1997, ambos os filmes passaram a fazer parte do espólio do ex-diretor da Globo. “Bandido”, porém, dispôs de melhor sorte e foi relançado em DVD, além de ter apresentações episódicas no Canal Brasil. Ao contrário da “Estrela”, que só teve um relançamento, em VHS.

Betty Faria tem 79 anos – talvez ela dissesse hoje à Manchete, caso a revista ainda existisse. Naquela ocasião, disse que “envelhecer é armazenar experiências” e que, por causa da cantora do bairro da Saúde, passou a achar que personagens com inicial em “L” lhe traziam boa sorte. Leniza rendeu à atriz muitos prêmios importantes, como o Air France, e foi determinante para que, a partir dela, viessem Leda Maria, Lazinha, Lili Carabina. A sua eterna personagem Tieta quebrou a tradição. Talvez porque até mesmo a tradição para chegar a Betty Faria precisa ser rebelde. Ao contrário da tangerina de outrora – comida com garfo e faca – sua história é perfume que esparrama pelas mãos. É fragrância que exala o perfume de uma vida enriquecida de experiências. Vida de uma estrela que sobe para ver outra estrela aparecer na manhã de um novo amor.

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Sebastião Uellington Pereira é apaixonado por novelas, trilhas sonoras e livros. Criador do Mofista, pesquisa sobre assuntos ligados à TV, musicas e comportamento do passado, numa busca incessante de deixar viva a memória cultural do nosso país. Escreve para o TV História desde 2020 Leia todos os textos do autor