Boato levou multidão em enterro de personagem de novela da Globo
20/12/2021 às 0h25
Até 1971, Paulo Gracindo (1911-1995) era reconhecido como um homem de rádio e do teatro. Na televisão, geralmente fazia papéis de grã-finos e magnatas.
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A situação mudou com a novela Bandeira 2, da Globo, que estreou há 50 anos, em 28 de outubro daquele ano.
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No papel do bicheiro Tucão, Gracindo conquistou o público brasileiro, que não aceitou a controversa morte do personagem no último capítulo da trama de Dias Gomes (1922-1999).
Bandeira 2 contava a história dos inimigos Tucão e Jovelino Sabonete (Felipe Carone), que disputavam o controle dos pontos do jogo do bicho no subúrbio de Ramos, no Rio de Janeiro.
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A novela, que também tinha nomes como José Wilker, Stepan Nercessian, Marília Pêra e Milton Moraes, logo caiu no gosto do público, mas sofreu bastante com a ação da Censura Federal.
Personagem teve que morrer
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Uma das principais imposições dos censores foi justamente a morte de Tucão, para que, segundo eles, o mal não triunfasse sobre o bem.
Assim foi feito, mas o tiro saiu pela culatra. Durante a gravação do enterro, espalhou-se um boato que Paulo Gracindo havia realmente morrido, mas era simplesmente um engano.
Resultado: mais de 3.000 pessoas compareceram ao cemitério e tiveram que ser contidas pelos figurantes. O jornal O Globo de 14 de julho de 1972 destacou que “o povo acompanhou o enterro e quis ver se o cadáver estava mesmo no caixão”.
O fato também foi utilizado politicamente pelo jornal carioca Luta Democrática, que estampou a manchete “Morreu Tucão” em letras garrafais e teve grande procura de seus exemplares.
O jornal O Globo de 18 de julho de 1972 publicou um grande texto sobre o sucesso do personagem e do polêmico desfecho:
“Morreu Tucão. No último capítulo de Bandeira 2, Pau-de-Arara matou a facadas o rei do jogo do bicho na Leopoldina. As cenas da morte e do enterro de Tucão não emocionaram apenas os espectadores. A multidão que acompanhou o enterro chorou de verdade, na consagração definitiva do trabalho de um ator. E ele também chorou”.
Ninguém falava abertamente em censura, até porque não era permitido. Mesmo assim, Milton Moraes (1930-1993), em outra entrevista, disse que a morte de Tucão foi a melhor solução.
“Se ele não morresse, a novela não acabava nunca. Foi a melhor solução encontrada. Tucão era o filão de toda a trama armada por Dias Gomes. Todos repudiam os atos violentos e, principalmente, o crime. Mas, no caso, a morte foi a melhor forma achada para impedir que Bandeira 2 tivesse um fim de love story. Jamais poderia acabar numa laranjada”, disse.
Nas graças dos bicheiros
Além do sucesso com o público em geral, Paulo Gracindo caiu nas graças dos bicheiros cariocas. Meses antes do desfecho da trama, em 8 de janeiro de 1972, o ator contou ao jornal O Globo que era convidado para conhecer e jantar com os contraventores.
O início da reportagem já dizia tudo: “Há poucos dias, Paulo Gracindo estava em sua casa, preparando-se para assistir a mais um capítulo de Bandeira 2, quando é chamado ao telefone. Gracindo vai atender. Com mil eufemismos, o homem explica ser, sem se identificar, secretário particular de um dos bicheiros mais importantes da cidade. Quer que Gracindo vá conhecer seu patrão, jantar com ele, se for possível. O bicheiro é vidrado em Bandeira 2 e não ficará sossegado se não conhecer pessoalmente o ator”.
Em outra ocasião, quando souberam que uma peça de teatro do ator estava com pouco público, os bicheiros compraram 120 lugares para uma única apresentação.
Para compor o tipo, Gracindo pesquisou bastante, procurando se entrosar com pessoas ligadas ao mundo da marginalidade. Pintou os cabelos grisalhos com tinta preta, alisou-os grosseiramente, comprou roupas velhas, como calças largas e camisas listradas.
“Apareceu na TV, no dia seguinte, para espanto geral. Todos concordavam à primeira vista, de Dias Gomes aos diretores da Globo: é o próprio Tucão”, destacou o jornal.
Ator não era a primeira opção
O personagem, a princípio, foi oferecido a Sérgio Cardoso, que não gostou do tipo e solicitou mudanças. Acabou cortado da trama, remanejado para O Primeiro Amor, folhetim das 19 horas que estreou em janeiro de 1972.
Mas Bandeira 2 também causou prejuízos aos bicheiros, pelo menos em duas ocasiões: no capítulo de 22 de maio de 1972, Sabonete aconselhou um personagem a jogar no pavão.
No dia seguinte, milhares de pessoas seguiram o “conselho”. E não é que deu pavão mesmo?
Na outra coincidência, no dia seguinte em que o último capítulo foi ao ar, deu macaco – o número correspondente ao da sepultura de Tucão.
“Foi a minha maior glória”, declarou Gracindo a O Globo. “Depois de tantos anos, jamais esperava viver papel tão difícil, antipático a princípio, mas que depois agradou em cheio”, completou. “Foi uma coisa maravilhosa. As cartas chegavam diariamente de todos os pontos do país. É minha consagração. Sou o homem mais feliz deste mundo”, disse, em outro trecho da entrevista.
Comprovando a grande fase que vivia, menos de um ano depois, Paulo Gracindo ganhou outro papel marcante na televisão: o político Odorico Paraguaçu, de O Bem-Amado, outra obra-prima de Dias Gomes.
Anos depois, em 1979, o ator retomou o trabalho em Bandeira 2, em termos: é que a novela deu origem a uma peça teatral, O Rei do Ramos, estrelada por Gracindo, com música de Chico Buarque e Francis Hime.
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Marília Pêra deixou a trama
Insatisfeita com os rumos da novela, Marília Pêra pediu para deixar o elenco. Não foi atendida. Sua personagem, Noeli, era uma taxista – a atriz nunca havia dirigido até então – desquitada, disputada por Tucão e Jovelino. Os intérpretes dos bicheiros acabaram suplantando a estrela, que se melindrou com a falta de destaque.
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Noeli também era porta-bandeira da Imperatriz Leopoldinense, então uma tímida escola de samba da “vida real”, sediada em Ramos, que acabou “partindo para a ficção”.
O samba-enredo de 1972, Martim-Cererê, apareceu na trilha sonora, na abertura e na trama, como uma composição de Zé Catimba (Grande Otelo) e de Gibi (sambista da Imperatriz). Todas as agremiações do Rio de Janeiro haviam se candidatado à participação na novela.
Outras tramas de importância no enredo: o relacionamento de Márcio (Stepan Nercessian), filho de Jovelino, e Taís (Elizângela), filha de Tucão; e as fantasias sexuais do Comandante Apolinário (Ary Fontoura) e sua esposa Zulmira (Eloísa Mafalda).
Também os retirantes nordestinos Severino (Sebastião Vasconcelos), Santa (Ilva Niño, estreando em novelas) e Licinha (Anecy Rocha), que invadem a garagem do prédio de Noeli – entrecho inspirado no texto de Dias Gomes, A Invasão, censurado -, e a trajetória do jogador de futebol Mingo (Osmar Prado, que contou com a assessoria do craque Mané Garrincha).