A atual novela das nove vem apresentando ótimos índices de audiência, fazendo por merecer esses bons números. A trama de Glória Perez está bem estruturada, com poucos personagens e dramas convidativos. A maior ousadia da autora é o drama de Ivana (Carol Duarte), uma menina que não se identifica com seu corpo e sofre diante da pressão da mãe e da sociedade. Essa situação é um dos principais acertos do folhetim, ganhando novos contornos através de um interessante paralelo criado com outro personagem que vem crescendo: o Nonato (Silvero Pereira).

A questão do transgênero ser explorada em uma novela é um bom avanço e a escritora está sendo muito corajosa. O método escolhido por ela expõe a sua criatividade, além de servir como uma explicação objetiva, sem parecer didático ou piegas. Isso porque essa dualidade que começou a ser focalizada no enredo tem funcionado para destacar os dois perfis, ao mesmo tempo que expõe as diferenças que os separam, embora enfrentem o mesmo tipo de preconceito. O que o público vê é um homem muito bem resolvido com seu corpo e uma mulher que não se identifica com o seu reflexo no espelho.

Ivana sempre sofreu pressão da mãe, a fútil Joyce (Maria Fernanda Cândido), para que fosse quase um clone seu. Na breve primeira fase da novela, que durou apenas o primeiro bloco do primeiro capítulo, ficou explícita a intenção da perua para com sua filha, transformando a criança em uma cópia mirim de si mesma.

A menina já demonstrava desconforto na época. O tempo passou, mas nada mudou, a não ser a vontade da garota, que cresceu e deixou de seguir as ordens da mãe. A personagem tem mais compreensão do pai, Eugênio (Dan Stulbach), embora ele não tenha noção do que está acontecendo com ela. O que se vê é uma mulher linda, mas sem qualquer vaidade, deixando de lado maquiagem, acessórios, sapatos, enfim.

Já Nonato começou timidamente na história. Parecia um mero figurante inicialmente. Mas não era. Pelo contrário, serviria para engrandecer o convidativo drama de Ivana. O rapaz deixou o Nordeste para tentar a vida no Rio de Janeiro e começou a trabalhar como motorista do preconceituoso Eurico (Humberto Martins). Aos poucos, a autora foi revelando para o público a vida desse homem aparentemente muito tímido e retraído.

Transformista e homossexual, ele precisou se portar como ‘homem’ para conseguir um emprego digno, pois declarou que no Brasil não dão emprego para travesti, que acaba entrando na prostituição. Mas Nonato faz questão de dizer que é muito bem resolvido e não quer se transformar em mulher. Gosta do seu corpo e adora interpretar a Elis Miranda, perfil que criou para se apresentar em shows. Não é transexual, é travesti.

Desde que se revelou para o telespectador (pois para os personagens segue fingindo ser o que não é), as cenas do motorista vêm sendo exibidas intercaladas com as da Ivana, que a cada dia tem sua autoestima piorada em virtude da não identificação com seu corpo. A filha de Joyce ainda nem tem ideia de que seja transgênero, mas a terapia tem servido para desabafos e questionamentos mais frequentes, além dos momentos em que a menina conversa com sua a prima e melhor amiga Simone (Juliana Paiva). Ivana já declarou que não sente atração por mulher e tem interesse em Cláudio (Gabriel Stauferr), menino com quem tentou namorar, sem sucesso em virtude do incômodo que ela sente com o toque e em se mostrar.

O drama de Ivana é o melhor enredo da novela e a condução de Glória é de forma cautelosa, sem atropelos. A autora criou uma história que impossibilita o telespectador de não se envolver com a angústia daquela garota. Ou seja, a situação virou uma poderosa arma para a reflexão até dos preconceituosos. Ela é um homem que nasceu no corpo de uma mulher.

Tudo o que envolve os transgêneros ainda é muito ‘novo’ para o grande público, inclusive o fato de existir mulher que vira homem, mas segue se interessando pelo sexo masculino, como deve ser, ao que tudo indica, o caso de Ivana. Nesse caso deve ser considerado um caso de heterossexualidade ou homossexualidade? É uma pergunta que gera muitas dúvidas, o que é bem compreensível. Não será fácil lidar com isso na trama, mas o desafio já começou.

E essa mescla com a vida de Nonato deixa o contexto ainda mais convidativo, expondo as diferenças entre transexualidade e transformismo. As cenas estão ótimas, destacando o talento dos intérpretes. Silvero Pereira e Carol Duarte são dois estreantes na televisão e não poderiam ter começado de forma melhor.

Ele, inclusive, estrela o espetáculo BR-Trans pelo Brasil e encerrou recentemente a temporada de “Uma Flor de Dama”, peça onde também vive um travesti. Foi por causa desse trabalho do ator cearense que Glória o chamou para seu folhetim. Nonato vem sendo defendido com competência e o perfil mistura humor e drama com maestria. O seu melhor momento até agora foi quando o motorista contou que foi espancado pelo seu irmão, que o flagrou travestido em um espetáculo e o expulsou de casa. Cena forte que refletiu a realidade do país. Já Carol vem brilhando em todos os momentos, expondo com perfeição toda a agonia daquela menina que não sabe o que é. Tem tudo para ser a revelação do ano.

A Força do Querer está muito bem construída, com uma grande direção de Rogério Gomes, e Glória Perez acertou em cheio na abordagem dos transgêneros em sua obra, sendo muito feliz na apresentação simultânea de dois tipos tão parecidos e tão distintos. A coragem está sendo recompensada.

SÉRGIO SANTOS é apaixonado por televisão e está sempre de olho nos detalhes, como pode ser visto em seu blog. Contatos podem ser feitos pelo Twitter ou pelo Facebook. Ocupa este espaço às terças e quintas


Compartilhar.
Avatar photo

Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor