A festejada faixa de novelas das 23h da Rede Globo recebeu este ano sua terceira história inédita, que chega ao fim nesta segunda, 18 de setembro. Os Dias Eram Assim, de autoria das estreantes titulares Ângela Chaves e Alessandra Poggi, ex-colaboradoras de autores como Miguel Falabella e Manoel Carlos, se iniciou no dia 17 de abril com um novo tratamento: passou a ser chamada de “supersérie”, nome adotado sob a alegação de que facilitaria as vendas para o exterior.

A despeito disso, sua trajetória mostrou que a obra dirigida por Carlos Araújo nada tinha de super, muito menos de série. Tratava-se de uma autêntica novela, com todos os elementos do gênero. O que não seria uma crítica por si só, caso fosse um enredo bem conduzido pelas autoras. Não foi o que aconteceu. O texto raso, arrastado e maniqueísta cansou o público, apesar de sua boa audiência.

Ambientada na ditadura militar brasileira, a trama teve como mote principal o romance de Renato (Renato Góes), um médico que sonhava com a democracia; e Alice (Sophie Charlotte), uma garota empoderada e rebelde, de família conservadora: filha do reacionário empreiteiro Arnaldo (Antônio Calloni) e da reprimida Kiki (Natália do Vale), estava noiva do corrupto Vitor (Daniel de Oliveira), que se revelaria um psicopata obsessivo ao longo dos capítulos.

Com o relacionamento descoberto, Arnaldo e Vitor, com a ajuda do delegado Amaral (Marco Ricca), armaram para ligar Renato a atos terroristas cometidos pelo irmão dele, o irresponsável Gustavo (Gabriel Leone); o que obrigou o médico a fugir para o Chile, enquanto Alice pensa que seu grande amor morreu e, grávida dele, se casa com o mauricinho e tem dois filhos: Lucas (Xande Valois) e Gabriela (Isabella Koppel). Renato se encanta pela chilena Rimena (Maria Casadevall), se casa com ela e também tem um filho, Valentim (Luiz Felipe Mello).

O tempo passou e a abertura política no Brasil ganhou força, desde a Lei da Anistia (1979) até as Diretas Já (1984). Neste momento, Alice ficou chocada ao reencontrar Renato e os dois viram a chance de reviver a paixão adormecida, para o desespero de Rimena. Ela acabou se envolvendo com Gustavo, enquanto Vitor foi se transformando em um homem violento e perigoso.

O primeiro capítulo era promissor, com os primeiros encontros dos mocinhos nos protestos contra o regime. No entanto, o que se viu logo depois foi uma história excessivamente arrastada, onde as situações demoravam muito tempo para se resolver. A presença de núcleos paralelos dava a impressão de render bons alívios para a história principal. Era só impressão. Estes nem mesmo foram desenvolvidos de maneira convincente, deixando o pouco que ainda restava de interessante para o núcleo central.

Com as passagens de tempo e o reencontro dos mocinhos, parecia que a história finalmente ganharia um novo impulso. Ledo engano. Alguns capítulos depois, tudo voltou à pasmaceira de sempre. A abordagem do período militar se esvaziou completamente, estando presente apenas na militância de Gustavo, o que irritou bastante. Os personagens perderam suas essências e ficaram cansativos – e isso também inclui os protagonistas, outrora cativantes. Os núcleos paralelos seguiram sem fôlego. A morte de Arnaldo ficou esquecida por muito tempo e só foi relembrada na reta final.

Para piorar, a loucura de Vitor com a rejeição de Alice chegou a níveis absurdos e surreais, resultando em cenas gratuitas, como a sequência em que o delegado Amaral abusa de Alice. Foi agonizante e desnecessário ver tamanho terror em uma cena sem a menor razão de existir, feita apenas para chocar.

Outro ponto que deixou claras as limitações do enredo da novela foi a personalidade excessivamente maniqueísta dos personagens: os opositores eram quase sempre os jovens românticos, enquanto os apoiadores eram, em maioria, os mais velhos. Isto ficou evidente especialmente na personalidade de Gustavo, o tipo mais irritante da história. O rapaz prejudicou a família inteira em nome de sua militância, mas era colocado pelas autoras como um herói da resistência traumatizado pela tortura. Ficou pouco crível.

Ainda assim, houve acertos, como a abordagem da AIDS através de Nanda (Julia Dalavia), irmã mais nova de Alice. A garota herdou a personalidade rebelde da irmã, que havia se tornado submissa como a mãe, e era adepta do amor livre. Contraiu a doença após um relacionamento passageiro e a descoberta a fez desabar em lágrimas, pois a síndrome vivia sua época mais devastadora, onde a informação sobre o tratamento ainda era escassa.

Além disto, chamou atenção também a primorosa trilha sonora. Repleta de clássicos dos anos 60, 70 e 80, a seleção musical contou com nomes como Secos e Molhados, Elis Regina, Roberto Carlos, Belchior, Elis Regina, Caetano Veloso, Djavan, Milton Nascimento, Cazuza, Plebe Rude e Lulu Santos. Ainda merece destaque a inserção de imagens de arquivo dos anos 70 e 80, embora estas muitas vezes servissem como muletas para disfarçar a ausência de história.

No elenco, os mais beneficiados foram Sophie Charlotte, Renato Góes, Daniel de Oliveira, Maria Casadevall, Natália do Vale, Cássia Kiss, Susana Vieira e Marco Ricca, excelentes em seus personagens. Sophie e Renato esbanjaram química, apesar de o casal ter perdido força em virtude da má condução do enredo. E foi um prazer ver Natália do Vale de volta às novelas, além de Susana Vieira em uma personagem fora da comicidade e Marco Ricca em outro momento de grande versatilidade.

Julia Dalavia merece uma menção especial. Seu desempenho nos desdobramentos da revelação da AIDS de Nanda emocionou o público e foi impossível não se sentir tocado pelo desespero da garota. A entrega da atriz, que emagreceu bastante para o papel, se refletiu em uma impressionante maturidade cênica e a fez sair de cena ainda mais forte do que entrou, pronta para maiores desafios.

Apesar disso, foi impossível não perceber a quantidade de talentos desperdiçados em perfis que não fizeram jus à competência de todos: Gabriel Leone, Marcos Palmeira, Letícia Spiller, Maurício Destri, José de Abreu, Carla Salle, Bárbara Reis, Mariana Lima, Bukassa Kabengele, Juliane Araújo e Ricardo Blat são os maiores exemplos disto. A saída precoce de Antônio Calloni também foi um erro, uma vez que o ator estava fantástico na pele do direitista Arnaldo, que poderia render boas discussões com as passagens de tempo da trama.

Inicialmente planejada para o horário das 18h, Os Dias Eram Assim foi promovida para a faixa de maior liberdade artística da Globo após a suspensão do projeto de Jogo da Memória, da talentosa Lícia Manzo – alegou-se na época que a proposta de Lícia poderia não ter história suficiente. No entanto, a trajetória de Os Dias Eram Assim fez esta motivação cair por terra, uma vez que não teve estofo para segurar 88 capítulos (um número excessivo para uma trama das 23h).

Mesmo com todo este conjunto negativo, a novela de Ângela e Alessandra conseguiu se tornar a maior audiência da história das 23h, cuja média de 21 pontos supera a elogiada Verdades Secretas (2015). Entretanto, deve-se levar em conta a atual conjuntura de audiência global, especialmente o sucesso da atual novela das 21h, A Força do Querer.

A história de Glória Perez vem elevando o ibope de sua faixa a níveis que a emissora carioca custava a alcançar (frequentemente acima dos 40 pontos) e, com isto, beneficia as atrações seguintes. E a novela das 23h, a partir de meados de maio, inverteu seu horário com a série Vade Retro nas quintas-feiras e passou a ser exibida após a trama das nove (como é feito nas segundas). A estratégia deu certo em números.

Ainda assim, audiência e qualidade nem sempre andam juntas e Os Dias Eram Assim foi uma prova viva disso. A “supersérie” não passou de uma novela fraquíssima, decepcionou em muitos aspectos e se arrastou por muito tempo, deixando a sensação de que não acabava nunca. Personagens maniqueístas, enredo raso, clichês mal-usados e ritmo excessivamente arrastado foram as principais marcas desta que pode ser considerada facilmente a pior novela já exibida na atual faixa das 23h. Um roteiro que não honrou o horário em que foi exibido e será rapidamente esquecido.


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