Em 1989, o Brasil estava engatinhando com uma nova forma de governo. A ditadura militar tinha acabado e com ela veio o fim da censura e o início de uma nova fase de liberdade de expressão. Era hora de expurgar os fantasmas. Com a novela Tieta, Aguinaldo Silva deu um belo tapa na cara do conservadorismo hipócrita imposto pelo regime militar anos antes, quando era comum censurar capítulos e personagens. Resultado: uma trama marcante, eternizada na memória do público e atualmente a reprise de maior sucesso do Canal Viva.

Livremente inspirada na obra do escritor baiano Jorge Amado, a novela estreou no horário das oito da Globo em 14 de agosto de 1989. E contava a história de Tieta (Cláudia Ohana / Betty Faria) que, no primeiro capítulo, é expulsa da cidade fictícia de Santana do Agreste pelo pai, Zé Esteves (Sebastião Vasconcelos), movido pelas intrigas de sua outra filha, Perpétua (Adriana Canabrava / Joana Fomm). Tieta vai embora para São Paulo jurando que voltaria um dia para se vingar da cidade. 25 anos depois, ela retorna, poderosa e rica, para cumprir sua promessa, e transformar a rotina da pacata cidade estacionada no tempo.

A trama “sambava na cara da sociedade” já com a abertura espetacular criada pela equipe de Hans Donner, com a participação da modelo e atriz Isadora Ribeiro, que aparecia se fundindo a elementos da paisagem de mangue seco. Foi exatamente isso que estampou a capa do volume 1 da trilha.

Seguindo a mesma fórmula de sucesso da novela Roque Santeiro (1985), outra trama regional escrita quase toda por Aguinaldo, Tieta também teve duas trilhas sonoras nacionais, reunindo grandes nomes da MPB e representantes da música regional, muito valorizada e aproveitada por Mariozinho Rocha, o produtor das trilhas das duas novelas.

Para acompanhar a ousadia na abertura de Tieta, Boni, diretor de programação na época, queria uma música forte e por isso ele mesmo compôs em parceria com Paulo Debétio a canção ‘Tieta do Agreste’, que foi entregue para o rei do “fricote” Luiz Caldas gravar. A música, em ritmo de lambada, sacudiu os 196 capítulos e se tornou um dos grandes sucessos do repertório de seu disco ‘Timbres’, de 1989.

O forró ‘Paixão de Beata (Neném de Mulher)’ do músico e cantor Pinto do Acordeon, era tema das duas carolas mais “sem vergonha” da TV brasileira: a viúva Amorzinho (Lília Cabral) e “Ciniiira” (Rosane Gofman), que não podia ver um homem na frente e se tremia toda, provocando algumas das cenas mais cômicas da trama. As duas viviam sob as asas e o julgamento da beata-mor, Perpétua, representante da moral e dos bons costumes de Santana do Agreste, só que não. Pinto do Acordeon se interessou por música na infância e chegou até a fazer parte da trupe do “rei do baião” Luiz Gonzaga.

Ainda na linha regionalista, o tema de Carmosina (Arlete Salles), a funcionária dos Correios solteirona e romântica que sabia da vida de todos da cidade porque abria as cartas alheias no bico da chaleira ‘Cadê o meu amor’ foi composta e gravada especialmente para a personagem pelo Quinteto Violado. Formado nos anos 70 na cidade de Recife por Antonio Alves, Marcelo Melo, Luciano Pimentel, Fernando Filizola e Alexandre Johnson, o grupo sempre se dedicou à divulgação da música e do folclore nordestinos. A música está presente no seu 19º disco de carreira, chamado ‘Kuiré – O Concerto’.

É do Nordeste que vem também ‘Amor escondido’, composição de Abel Silva e Fagner. A música tem uma sanfona chorosa se fundindo com o dedilhado de uma guitarra e serviu de tema para a “teúda e manteúda” de Modesto Pires (Armando Bógus), Carol (Luiza Tomé) que, ao longo da novela, se liberta do amante para viver uma nova história. Um dos belos momentos da carreira de Fagner, que entrou para seu disco ‘O Quinze’, de 1989.

O sertanejo passaria por sua fase de maior repercussão no início dos anos 90, algum tempo depois da estreia de Tieta, mas foi nos anos 80 que surgiram alguns dos maiores clássicos do estilo musical.

Em 1982, devido ao impacto da música ‘Fio de Cabelo’, as rádios abriram as portas para a dupla Chitãozinho e Xororó, que conquistou todo o território nacional e seguiu durante anos lançando um sucesso atrás do outro. Em 1989, eles se preparavam para lançar o primeiro trabalho pela Polygram e o 14º de carreira, ‘Meninos do Brasil’, de onde saiu o tema do sedutor Osnar (José Mayer), um dos membros mais desejados de Santana do Agreste, que já havia tido até um “trelelê” no passado com Tieta. A música ‘No Rancho Fundo’ é uma recriação feita por Lamartine Babo para a música ‘Na Grota Funda’, que Ary Barroso escreveu para a peça musical ‘É do Balaco-Baco. Não gostando da versão original, Lamartine mudou a letra e sem consentimento de Ary Barroso a apresentou em uma rádio como ‘No Rancho Fundo’. A canção acabou se tornando fundamental para contar a história da música sertaneja.

O público jamais se esqueceu da volta triunfal de Tieta para Santana do Agreste. Ela chega à cidade na sua “missa de corpo ausente” preparada pela irmã Perpétua, que comemorava a possível herança que iria receber. A música que marcou essa volta e todas as cenas em que a personagem deixa a vingança de lado para lembrar com saudade de seu passado foi ‘Coração do Agreste’, na voz de Fafá de Belém. Em 1985, a cantora deu uma virada em sua carreira e passou a incluir estilos mais populares em seus discos como lambada, brega e sertanejo, mas o que a consagrou mesmo nas trilhas de novelas dos anos 80 foram as músicas românticas. Os marcantes versos que falavam por si – “Regressar é reunir dois lados/ À dor do dia de partir/ Com seus fios enredados/ Na alegria de sentir” – foram brilhantemente criados por Moacyr Luz e Aldir Blanc.

Outra canção marcante da trilha que nos causa identificação imediata é o tema de locação de Santana do Agreste, ‘Meia lua inteira’, composição do então desconhecido do grande público, Carlinhos Brown, na voz inconfundível de Caetano Veloso. Música digna pra abrir a trilha e tocar nas primeiras chamadas da novela em 1989. Entrou para o disco ‘Estrangeiro’, de Caetano, gravado em Nova York.

A irmã dele, Maria Bethânia, também participa de forma luxuosa na trilha. Em 1989, ela lançava seu álbum ‘Memória da Pele’, produzido por ela mesma e por Jaime Além; aliás uma parceria que percorreu vários anos. Três músicas desse disco fizeram parte de trilhas sonoras: ‘Morena’ na minissérie Riacho Doce (1990), ‘A mais bonita’ em Rainha da Sucata (1990) e, em Tieta, ‘Tenha Calma’, uma belíssima composição de Djavan, tema do polêmico romance de Ricardo (Cássio Gabus Mendes), o seminarista filho de Perpétua, com a tia.

Quem sempre colecionou sucessos em trilhas de novela foi Guilherme Arantes. Em 1975, ele abandonou o grupo de rock progressivo do qual fazia parte para seguir carreira solo e adotou a música pop como estilo. Naquele final dos anos 80, ele lançou seu 11º álbum de estúdio ‘Romances Modernos’, que garantiu ‘Raça de heróis’, em Que Rei Sou Eu?, às 19h, e ‘Por você, com você’ em Tieta. A primeira fez a diferença na trama capa e espada, já a segunda não foi marcante.

Tim Maia introduziu o poder da soul music na música brasileira, ao mesmo tempo em que colecionava músicas românticas de dor de cotovelo como ‘Azul da Cor do Mar’ e ‘Primavera’. Nos anos 80, essa vertente se tornou mais forte e presente em seus discos. Tim garantiu na trilha de Tieta a música ‘Paixão Antiga’, do seu álbum ‘Carinhos’, lançado em 89, como tema de Helena (Françoise Forton), uma mulher fria e calculista que, no início da novela, abandona o marido Ascânio (Reginaldo Faria), e depois volta pra correr atrás do prejuízo.

Falando em românticos da MPB, o maior deles aparece em Tieta também. José Augusto começou sua carreira nos anos 70 com o grupo Golden Boys, até que o produtor Renato Correa descobriu o seu talento e imediatamente o contratou. Seu primeiro disco foi lançado em 1973, com as músicas ‘De Que Vale Ter Tudo Na Vida’ e ‘Eu Quero Carinho’. A partir daí, passou também a compor músicas para outros artistas brasileiros. Um das mais bonitas e delicadas canções na sua voz é ‘Eu e Você’, composição de Renato Barros e Vadinho. Na novela, foi tema de Elisa (Tássia Camargo), a meia irmã de Tieta, casada com Timóteo (Paulo Betti), que sonhava em ter uma vida de artista de TV.

É exatamente um ambiente de sonho o que sugere uma grande surpresa presente na trilha de Tieta. Naquela época, Emílio Santiago emplacava com sua ‘Aquarela Brasileira’, projeto da Som Livre que rendeu mais 6 lançamentos. Bem cotado, o cantor carioca foi convidado para gravar em dueto com Verônica Sabino, uma versão de Nelson Motta para ‘All I Ask Of You’, canção imortalizada no musical O Fantasma da Ópera. ‘Tudo que se quer’ foi feita especialmente para a trilha e esteve naquele ano de 1989 somente no álbum da novela. Saiu no ‘Aquarela Brasileira – vol. 6’, da discografia de Emílio Santiago, somente em 1993.

Outra surpresa nas trilhas de Tieta é, quem diria, as músicas instrumentais. Muitas vezes, elas encerravam os dois lados dos discos de novela sem nenhuma importância, apenas de enfeite, fazendo o sulco ficar mais fino e o vinil perder qualidade sonora. Mas a trilha de Tieta fugiu à regra. Fechando o lado A, o tema ‘Segredos da noite’, composto por Paulo Debétio e Julinho Teixeira. A música aparecia na novela durante as aparições da misteriosa Mulher de Branco, uma figura mitológica que aterrorizava e fascinava os homens de Santana do Agreste. Já pra fechar o lado B, o tema instrumental ‘Imaculada’, composto por Ary Sperling, acompanhava a personagem de mesmo nome (interpretada por Luciana Braga) que era vendida pelos pais ao Coronel Arthur da Tapitanga (Ary Fontoura) para ser uma de suas “rolinhas”. A garota nunca aceitou esse destino, era rebelde, malcriada, sonhava com um príncipe que viria buscá-la e conquistou o público. O instrumental tinha tanto a cara da personagem que ganhou letra no volume 2 da trilha, que a gente aborda aqui na coluna semana que vem.

Confira outras curiosidades desta trilha em “A história do álbum: Tieta – volume 1”, no canal Vinilteca.


Compartilhar.
Avatar photo

Sebastião Uellington Pereira é apaixonado por novelas, trilhas sonoras e livros. Criador do Mofista, pesquisa sobre assuntos ligados à TV, musicas e comportamento do passado, numa busca incessante de deixar viva a memória cultural do nosso país. Escreve para o TV História desde 2020 Leia todos os textos do autor