A premissa era interessante: três moças que não se conheciam, testemunhas de um crime, são dadas como mortas e recebem novas identidades para escapar de bandidos. Poderia ser uma série de ação e suspense. Poderia ser uma novela de proposta realista, para o horário das nove ou das onze. Entretanto, a sinopse foi idealizada por Daniel Ortiz, autor de novelas do horário das sete, como Haja Coração (2016). Logo, o resultado foi a comédia escrachada.

Salve-se Quem Puder (concluída nesta sexta-feira, 16) foi um verdadeiro deus nos acuda para Ortiz. O autor teve dificuldades para levar adiante a sua ideia original, por causa da interrupção e das limitações nas gravações, decorrentes da pandemia de Covid-19. Neste detalhe, tanto Globo quanto Ortiz estão de parabéns, por terem conseguido finalizar a novela apesar dos obstáculos, e pela ótima audiência alcançada: média final de 27 pontos no Ibope da Grande SP.

A trama de Ortiz ficou caracterizada pela comédia infantil e pelo melodrama latino – o que, de certa forma, a aproxima das produções do SBT.

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Novela infantil

De forte apelo infantil – em que personagens conversavam com uma galinha, metidos em confusões absurdas, sem qualquer comprometimento com a verossimilhança -, o humor de desenho animado divertiu quem se propôs a embarcar no escapismo puro e simples, sem muitas exigências com texto, trama ou interpretações. Uma fórmula já vista e aprovada anteriormente em várias produções, de Ortiz a Walcyr Carrasco e novelas do SBT.

Assim, as atrizes Deborah Secco e Vitória Strada – que viveram Aléxia (Josimara) e Kyra (Cleyde), duas das protagonistas – chafurdaram na comicidade infantil sem receio de errar. Não erraram. Vitória ainda teve o mérito de viver uma personagem diferente das mocinhas sofredoras de trabalhos anteriores. Destaque também para Grace Gianoukas – porque Grace Gianoukas é sempre um destaque, não importa o papel.

Me nego a comentar a atuação da galinha Filipa.

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Novela mexicana

As referências às tramas mexicanas – representadas pela terceira protagonista, Luna (Fiona) (Juliana Paiva) – eram explícitas. Primeiro na ambientação e no perfil de alguns personagens: Luna era meio mexicana e meio brasileira, devota fervorosa de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira do México. Foi neste país, inclusive, que a história teve início.

Porém, a referência maior às produções da Televisa esteve na trama melodramática de Luna: acreditava ter sido abandonada pela mãe quando criança (no que seu pai também acreditava) e, uma vez em solo brasileiro, decidiu conhecê-la sem ela desconfiar de sua real identidade. Helena (Flávia Alessandra), a mãe, por sua vez, acreditava que seu primeiro marido e filha estavam mortos.

Para aumentar ainda mais os conflitos, Luna se apaixonou pelo filho de Helena enquanto se estranhou com a mãe. Enfim, Ortiz foi muito feliz em criar esse emaranhado e desfazer os nós aos poucos até o desfecho, exibido em 05 de julho, em que Luna revela a Helena que ela é sua mãe. Elogiei aqui.

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Péssima representatividade negra

Que bom que Salve-se Quem Puder teve atores negros, alguns em papeis de destaque. Entretanto quantidade não quer dizer qualidade. Batemos nesta tecla porque há situações que não são mais aceitáveis. A Globo oferece um programa maravilhoso chamado Falas Negras ao mesmo tempo em que sua novela das sete falha miseravelmente na questão da representatividade.

As três protagonistas eram brancas. Já começou errado aí. Por que não, pelo menos, uma delas negra? Para as protagonistas não havia pares negros, apenas brancos. Foram seis atores brancos disputando as protagonistas, dois para cada uma (sem contar o ator José Condessa, que deixou a novela). A Babu Santana e Cosme dos Santos restou o apelo cômico, o circo: Nanico e Edgar disputavam Ermelinda (Grace Gianoukas).

Cada protagonista branca enfrentou uma antagonista… negra, que reforçava estereótipos associados à mulher (por serem personagens negativas). Inacreditável que ninguém da novela reparou nestes “detalhes”.

Renatinha – papel de Juliana Alves, a antagonista de Kyra – era trambiqueira, ardilosa e mau-caráter. Topava qualquer artifício para cativar um homem, branco, Rafael (Bruno Ferrari), que sempre deixou claro que não queria nada com ela. A mulher que rasteja por um homem que a despreza.

Úrsula – vivida por Aline Dias, antagonista de Fiona – era louca e descontrolada, vivia à base de remédios, e sua “loucura” se manifestava pela paixão desenfreada que sentia pelo ex. O clássico estereótipo da mulher louca. Renatinha e Úrsula eram mulheres negras – uma mau-caráter e outra louca – dependentes de homens (brancos) que as rejeitavam.

Por fim, havia Bel, personagem de Dandara Mariana, a antagonista de Josimara. Bel não era má, nem trambiqueira e nem louca. Porém, representava a hipersexualização da mulher negra. Contudo, tenho receio de resvalar no machismo ou misoginia ao apontar hipersexualização em Bel, só porque ela era dona de seu corpo e se insinuava para o homem que desejasse.

Por favor, eu sou um homem branco escrevendo sobre questões que não vivo, se eu estiver errado em minhas observações, aceito a correção.

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A melhor pior novela

No contexto da telenovela mexicana, Daniel Ortiz usou e abusou de inúmeros clichês do formato. Não está errado, faz parte. Eu, particularmente, não consegui me conectar, me prender à trama e personagens. O humor infantiloide também me afastou. Nem o chororô de Luna e Helena me fizeram embarcar no escapismo de Salve-se Quem Puder. Contudo, que bom que divertiu e agradou a tantos.

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Só acho equivocadas justificativas do tipo “Precisamos do escapismo para esquecer a realidade neste momento difícil” (ao referir-se à pandemia). Precisamos de todo o tipo de entretenimento, escapista ou não. Embarca quem quer e nunca é errado embarcar neste ou naquele. Torço para que sempre seja entretenimento de qualidade, escapista ou não.

Em meu texto anterior, chamei Salve-se Quem Puder de “A melhor pior novela do momento” (ok, só havia ela e Gênesis, da Record). A promissora trama policial do início sucumbiu à formação de casais shipáveis: o grande suspense do último capítulo foi saber com qual homem Luna e Kyra terminariam. Por que cada mulher tem que terminar com um homem? Por que não surpreender e fazer com que ao menos uma terminasse com dois homens (ou mais), ou com outra mulher, ou sozinha e feliz (desfecho de Ermelinda, o alívio cômico).

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor