Parece óbvio. Mas não é. Pelo contrário, acho muito importante que seja assim. Ao fim do capítulo de estreia da novela Da Cor do Pecado (nesta segunda, 19), o canal Viva exibiu uma mensagem na tela com os seguintes dizeres: “Esta obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada”. Sábia decisão. A conferir se a mensagem valerá para todas as reprises do canal de agora em diante.

A razão é que algumas abordagens de Da Cor do Pecado são hoje consideradas racistas pelo senso comum. A começar pelo título da produção e sua música-tema de abertura. Se fosse produzida hoje, a novela não teria esse título. Tampouco a bela canção teria esse nome e alguns versos.

Até demorou para o Viva tomar essa iniciativa. Entre 2016 e 2017, o canal exibiu A Gata Comeu, um sucesso cativo na memória afetiva de toda uma legião de fãs que acompanharam a novela quando eram crianças. Porém, uma narrativa repleta de abordagens repulsivas aos olhos de hoje, com apologia ao machismo, misoginia e violência contra a mulher. Até escrevi recentemente que um remake dessa novela seria hoje totalmente inviável.

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A inclusão da mensagem não é “problematização” e tampouco desejo do Viva de calar os militantes ou o tribunal da internet. Primeiro porque a militância é necessária. Ainda mais hoje. Existe uma falácia espalhada pela extrema-direita de que militância é “mimimi“, algo ruim, chato. Não é verdade! Isso é coisa de quem acha que seus “direitos” estão ameaçados e que, portanto, o discurso das minorias deve ser minimizado. Como se as minorias não tivessem o direito de exigir o que lhes cabe, tanto quanto qualquer cidadão.

Outra falácia: a “militância” deixa a obra dramatúrgica chata. Ora, assim como existe o merchandising (social ou comercial) bem inserido em uma cena ou trama de novela, e aqueles que são invasivos ou gratuitos, o mesmo vale para abordagens classificadas como “militância”. Pode-se criar algo muito enfadonho, ou excessivamente didático, da mesma forma que pode-se criar algo bem bolado, que gere bons entrechos e que não roube emoção da narrativa – ou melhor, pode ainda servir para potencializar a emoção.

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Temos um mau exemplo na novela Amor de Mãe, com o ativista ambiental Davi (Vladimir Brichta), personagem com discursos chatos e entrechos que soavam forçadas no roteiro da novela, ainda que movimentassem a trama. Um bom exemplo foi visto recentemente, na reprise de A Força do Querer, com Ivana/Ivan (Carol Duarte), personagem minuciosamente construída pelas suas emoções. Nunca uma telenovela foi tão longe ao dar visibilidade a transgêneros, levantando discussão sem parecer invasiva ou piegas.

Sabemos que não existe obrigatoriedade alguma das narrativas incorporarem temáticas caras à sociedade. Entretanto, é necessário parar com a generalização de que toda militância é ruim, porque esta é exatamente a ideia que os reacionários querem que seja cristalizada.

Não é problematização. Quem problematiza é justamente quem reclama. Acho o alerta necessário para deixar claro que as coisas não devem mais ser assim, para não se repetirem. É ensinando que se aprende. Se você já entende, ótimo! Porém, para muita gente é preciso desenhar. E a reiteração cristaliza a ideia. Da mesma forma que foi cristalizada a falácia de que “militância é mimimi“.

Em tempo: o samba “Da Cor do Pecado“, um clássico da música popular brasileira, foi composto por Bororó (Alberto de Castro Simões da Silva) e gravado pela primeira vez em 1939, por Silvio Caldas. Teve várias regravações ao longos dos anos, por Elis Regina, Nara Leão, João Gilberto, Ney Matogrosso, Jacó do Bandolim e outros. A versão da novela é uma bela gravação de Luciana Mello.

SOBRE O AUTOR
Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira.

SOBRE A COLUNA
Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor