A missão de Êta Mundo Bom! não era simples, afinal, tinha a ‘obrigação’ de manter a qualidade da faixa das seis, que vinha de duas novelas anteriores primorosas: Sete Vidas e Além do Tempo. Mas, ao voltar para o horário que o consagrou, Walcyr Carrasco tinha noção da responsabilidade e conseguiu cumprir o objetivo com louvor. Ainda superou as expectativas no quesito audiência, pois a sua trama saiu de cena com uma média geral de 27 pontos (sete a mais que a anterior), atingindo índices expressivos ao longo dos meses – sempre acima dos 30 pontos (chegou até a 36 de média) -, alcançando marcas não obtidas na faixa desde o remake de O Profeta, em 2006 – coincidentemente, um folhetim que contou com sua supervisão.

Foi o próprio autor que pediu para voltar ao horário das seis e, após o fenômeno Verdades Secretas, teve o pedido atendido pela Globo. Após os imensos sucessos O Cravo e a Rosa, Chocolate com Pimenta e Alma Gêmea, Walcyr trouxe de volta para a faixa absolutamente tudo o que deu certo nessa trinca, deixando de lado qualquer tipo de ‘novidade’ ou ‘surpresa’.

Ou seja, o objetivo dele era justamente reutilizar o que o público tinha amado: muita guerra de comida, quedas no chiqueiro, um núcleo de caipiras vivendo em uma fazenda, vilões maniqueístas e situações dramáticas sendo mescladas com humor pueril. Pois funcionou de novo, confirmando um fato incontestável: o telespectador estava com saudades de acompanhar uma história do escritor às 18h.

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Uma das mais longas novelas das seis

A novela, ambientada na década de 40, estreou no dia 18 de janeiro de 2016 e teve seu último capítulo exibido no dia 26 de agosto do mesmo ano, ou seja, ficou quase oito meses no ar. Foram 190 episódios, sendo uma das produções das seis mais longas, levando em consideração a diminuição da duração das obras dessa faixa nos últimos anos. As Olimpíadas influenciaram o esticamento, pois a Globo já havia pedido para o autor desenvolver um folhetim maior para não estrear nada durante os jogos, cujos horários ficam tomados de competições e variações na grade.

Mas, essa situação acabou sendo benéfica, uma vez que a audiência só foi crescendo (o folhetim virou o mais visto da emissora por muito tempo, deixando Velho Chico e Haja Coração para trás) e Walcyr conseguiu evitar a famigerada barriga, sempre criando boas reviravoltas na trama.

A história principal se mostrou muito bem estruturada. A adaptação do conto Cândido ou o otimismo (do filósofo Voltaire) – cuja versão cinematográfica é até hoje lembrada pela interpretação magistral do saudoso Mazzaropi como Candinho – foi desenvolvida com competência pelo autor, tendo como principal acerto a escalação de Sérgio Guizé para viver o protagonista. O ator deu um show na pele do ingênuo caipira que tinha o burro Policarpo como melhor amigo e vivia repetindo a clássica frase de seu quase pai adotivo, o professor Pancrácio (Marco Nanini): Tudo que acontece de ruim na vida da gente é para ‘meiorá’! Ele honrou o protagonismo do enredo, sustentando com talento a posição de personagem central do início ao fim. É um papel que ficará marcado para sempre na carreira do intérprete.

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Aliás, Marco Nanini voltou aos folhetins em grande estilo, após quase 14 anos interpretando o Lineu em A Grande Família. Seu carismático professor de filosofia era uma das principais figuras da novela e o ator viveu 36 tipos diferentes na história, graças ao ofício clandestino de seu personagem, que adorava se disfarçar, encarnando diversos tipos para pedir dinheiro nas ruas. Miss São Paulo, índia, Marquesa de Santos, nadador olímpico, cego, mendigo, vedete, ex-combatente do exército e grávida foram alguns dos seus inúmeros perfis. Vale citar também o arrogante Pandolfo, irmão gêmeo de Pancrácio, que entrou na novela para fazer par com Eponina (Rosi Campos), engrandecendo o núcleo da fazenda. O ator ainda teve uma química evidente com Eliane Giardini (Anastácia) e protagonizou ótimas cenas ao lado de Sérgio Guizé e JP Rufino (Pirulito).

Eliane, por sinal, ganhou um grande papel. A milionária Anastácia representava a mulher à frente do seu tempo e a sua saga em busca do filho Candinho foi envolvente, culminando na cena mais linda da novela, quando a mãe irradiante de felicidade e o caipira se encontram, dando um abraço emocionante. Foram muitas sequências merecedoras de elogios, evidenciando a compensação de Walcyr, que não havia valorizado o talento da atriz em Amor à Vida. Ela, inclusive, formou uma boa dupla com Bianca Bin, intérprete da destemida Maria, que virou a mocinha da novela logo no início, se mantendo no posto até o final. A saga da menina que se via viúva, grávida e expulsa de casa, arrebatou o telespectador, que passou a torcer pela personagem. O envolvimento dela com Celso (Rainer Cadete) foi outro acerto, transformando o casal em um dos melhores da história.

O maior destaque de Maria também serviu para expor o equívoco da então mocinha Filó. Débora Nascimento teve um desempenho apenas regular e ainda não estava preparada para um papel de tamanha importância, por mais que sua principal função tenha sido somente fazer par com Candinho. O enredo em torno de Filomena também não funcionou, pois a personagem cansava pelo excesso de ingenuidade – foi enganada pelo picareta Ernesto (Eriberto Leão) por um longo período – e tudo que a cercava se tornava enfadonho. Foi um dos poucos erros da novela, tanto que a sofredora mulher foi tendo seu destaque diminuído, até virar uma mera coadjuvante, enquanto Maria protagonizava várias cenas importantes, sendo responsável pela maior movimentação do enredo (descobria todas as armações dos vilões) e funcionando como rival direta da vilã Sandra (Flávia Alessandra).

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Núcleo dos caipiras foi um dos grandes êxitos

Composto por um elenco excelente e entrosado, o núcleo dos caipiras foi um dos grandes êxitos da trama. Inicialmente, a história da família que vivia querendo vender a fazenda onde moravam era claramente inspirada no conto O Comprador de Fazendas, de Monteiro Lobato. Esse, inclusive, foi o fator que implicou no romance de Mafalda (Camila Queiroz) e Romeu (Klebber Toledo), o picareta que tentou enganar os jecas. Mas, ao longo da novela, a tentativa de golpe cedeu lugar para outras situações hilárias, como a curiosidade em torno do ‘cegonho’, nome dado pelo autor para o órgão sexual masculino. O termo pegou e virou quase um personagem à parte, caindo na boca do povo. As cenas protagonizadas por Mafalda e Eponina eram hilárias, destacando a sintonia perfeita entre Camila e Rosi Campos — aliás, vale citar que a grata revelação de Verdades Secretas se firmou de vez na carreira vivendo uma caipira fofinha, completamente diferente da sensual Angel, e Rosi finalmente foi valorizada como merecia, após várias figurações de luxo nos últimos anos.

O time da fazenda também teve como destaque a sempre ótima Elizabeth Savalla, parceira de sempre de Walcyr, que brilhou com a sua rabugenta Cunegundes, conhecida como Boca de Fogo (o bordão Meu nome é Cunegundes! foi o mais falado ao longo dos meses). Ary Fontoura fez uma ótima dupla com ela, na pele do submisso Quinzinho, sendo necessário ainda mencionar o genial Flávio Migliaccio interpretando o veterinário Josias. Dhu Moraes (Dita), Anderson Di Rizzi (Zé dos Porcos), Miguel Rômulo (Quincas), Jeniffer Nascimento (Dita), Juliane Araújo (Sarita) e Mauro Mendonça (Inácio) são outros nomes que merecem elogios, compondo o núcleo com maestria, que conseguiu ficar melhor com a entrada de Suely Franco (Paulina, dona do movimentado Dancing) na reta final.

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Como em toda novela, nem tudo foram flores

Entretanto, nem tudo foram flores. Além do já citado problema em torno da Filó, o autor errou na condução do triângulo formado por Mafalda, Zé e Romeu. A indecisão da caipira foi divertida, mas cansou pouco depois da metade da novela e ficou claro que o escritor mudou de ideia no meio do caminho. Isso porque estava tudo sendo encaminhado para Mafalda ficar com Romeu, mas houve uma alteração brusca no enredo, deixando tudo raso e forçado. Afinal, a caipira nunca sentiu nada por Zé dos Porcos e subitamente disse que o amava. Já Romeu havia se redimido quando ganhou na loteria e perdeu toda a sua fortuna tentando conquistar a filha de Cunegundes. Portanto, não fez o menor sentido ele voltar a ser canalha nas últimas semanas, ainda por cima a traindo com Sarita. Ele perderia todo seu dinheiro por uma mulher que não amava? A condução do trio ficou cansativa e o resultado foi uma solução claramente tirada em cima da hora. Se a construção do amor de Mafalda por Zé tivesse sido trabalhada desde o início, tudo ficaria bem melhor.

Outro equívoco da produção foi a escalação do inexpressivo Romulo Neto para viver um tipo ambíguo, o enigmático Braz. O papel era bem interessante, mas o ator não conseguiu imprimir as nuances do irmão de Maria, deixando a desejar em todas as cenas. Foi uma das poucas exceções do ótimo elenco. Porém, o enredo em torno dele foi uma boa trama paralela, destacando Priscila Fantin e Tarcísio Filho. Afinal, o intransigente Severo e a interesseira Diana foram responsáveis (direta e indiretamente) pela morte de Ana (Debora Olivieri), esposa do dono da loja de tecidos da cidade, e acabaram punidos pelo rapaz na reta final do folhetim. Os dois, aliás, acabaram ficando juntos, protagonizando divertidas cenas no melhor estilo gato e rato. Foi uma trama que ficou em foco enquanto a principal entrava em estado de espera, conseguindo manter a atenção do telespectador.

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Romance de Osório e Gerusa se destacou

O romance repleto de delicadeza protagonizado por Osório e Gerusa também merece menção. Arthur Aguiar e Giovanna Grigio tiveram sintonia e o drama que cercava o casal era muito triste, tendo um desfecho trágico – que vinha sendo preparado desde o início da história. A menina que sofria de leucemia e o rapaz que passava a viver em função do seu amor encantaram o público, que torcia para um final feliz. No entanto, o fim do par foi condizente com a situação, até porque curar um câncer na década de 40 era quase impossível. Vale citar a grandiosa presença de Ana Lucia Torre vivendo a preocupada Camélia, avó de Gerusa e dona da pensão por onde passaram vários personagens.

Entre os perfis que faziam parte do núcleo, aliás, estavam Olimpia e Evandro (talentosos Rosane Gofman e Cláudio Tovar), atores que trabalhavam na rádio-novela Herança de Ódio – cujos capítulos puderam ser acompanhados semanalmente pelo Gshow, em um processo de transmídia criativo. O papel da atriz da rádio seria até da querida Neusa Maria Faro, figura sempre presente nas obras do autor, mas a intérprete precisou ser substituída porque se adoentou.

Além do par composto por Osório e Gerusa, é necessário elogiar o casal formado por Anastácia e Pancrácio. A química entre Eliane Giardini e Marco Nanini foi evidente logo na primeira cena e a relação dos personagens foi desenvolvida com competência por Walcyr, que sempre valoriza os veteranos em suas produções. O romance de Celso e Maria formou com os outros dois a trinca de melhores pares do folhetim das seis. Rainer Cadete e Bianca Bin se destacaram, fazendo da relação clássica do amor que muda e transforma um grande acerto. Já nas últimas semanas, o divertido e ‘quente’ casal Josias e Paulina serviu para aumentar essa lista, que também tinha Eponina e Pandolfo, e Cunegundes e Quinzinho.

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Vilania de Sandra foi outro ponto alto

A vilania de Sandra foi outro ponto alto da história. Flávia Alessandra voltou a trabalhar com o autor que mais a valorizou na carreira e se deu bem novamente com ele, pois a sua personagem era responsável pela movimentação da trama principal e se destacou do início ao fim. As semelhanças com seu papel mais marcante, a Cristina, de Alma Gêmea, foram nítidas, como a cor do cabelo e o estilo classudo; entretanto, o escritor se preocupou em diferenciá-las, obtendo êxito. A sobrinha de Anastácia sempre foi a mentora de seus atos e primava pela racionalidade, ao contrário da outra, completamente dependente da mãe, Débora (Ana Lucia Torre), e passional ao extremo. Flávia esteve muito bem e os embates da víbora com a ‘titia’ e Maria eram ótimos, assim como sua parceria com o canalha Ernesto (Eriberto Leão).

Outra situação que funcionou a contento foi a dura vida de Claudinho (Xande Valois, grata revelação da Malhação Intensa). O menino paralítico era maltratado pela madrasta, Ilde (Guilhermina Guinle), e sua saga foi comovente. É preciso destacar a cena mais emocionante protagonizada pela criança, quando Cláudio invade o tribunal e diz que não quer ter um pai covarde, fazendo o pai (Araújo – Flávio Tolezani) mudar o depoimento a favor de Anastácia – no caso do golpe que Sandra deu na tia. A amizade que o menininho tinha com Alice (Nathalia Costa) também primou pela delicadeza, destacando os talentos mirins. O processo de recuperação do menino, após a cirurgia revertendo a paraplegia, também merece citação, assim como o incentivo de Pirulito para o novo amigo fazer um gol. JP Rufino, por sinal, foi mais uma criança talentosa do elenco.

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Penúltimo capítulo parecia o último

O penúltimo capítulo parecia o último. Foram várias cenas lindas e alguns momentos de tensão. O autor não se preocupou em fechar quase todos os ciclos antes do grande final. Aliás, essa é uma preocupação constante do autor: concluir os núcleos paralelos antes, evitando correria no fim. Porém, desta vez, ele também antecipou os instantes mais derradeiros. Uma das cenas mais aguardadas era a morte de Gerusa, que honrou a expectativa. A menina teve a breve recuperação antes da morte, conseguindo se despedir da avó e dançar a última valsa com seu amor. O desespero de Osório e Camélia foi comovente, destacando Arthur Aguiar e Ana Lucia Torre. Um triste e esperado desfecho, primando pela delicadeza. Outro momento que teve a emoção como foco foi quando Araújo conta para o filho que ele e Olga (Maria Carol) irão se casar. Difícil não ter se emocionado vendo Cláudio perguntando se poderia chamar a nova madrasta de mãe, recebendo um sim como resposta. Xande Valois sensibilizou.

Já a sequência da perseguição policial, que culminou na morte de Ernesto e prisão de Sandra, foi dirigida com maestria pela equipe. Fazer uma cena assim com carros de época não é uma tarefa fácil, ainda mais levando em consideração um acidente fatal. Tudo foi feito com capricho e vale destacar o instante em que o carro dos vilões bate em uma árvore, estilhaçando o vidro, assustando Candinho e Filó, pois o bebê deles estava sendo levado pelo casal de canalhas. Flávia Alessandra brilhou quando Sandra se desesperou com a morte do comparsa, aproveitando a cena escrita para ela se destacar. Aliás, ela foi muito bem em todos os instantes do sequestro, incluindo a hora em que a vilã estapeia a noiva do caipira, lhe tomando a criança.

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Último capítulo sem atropelos

O último capítulo foi sem atropelos, exibindo cenas muito boas, como o emocionante momento protagonizado por Arthur Aguiar e Giovanna Grigio. Osório se despediu e Gerusa no velório, teve um mal súbito, e faleceu, indo se encontrar com a amada. A valsa deles no céu primou pela delicadeza, reforçando o otimismo do enredo, pois o amor superou a morte. Já Flávia Alessandra deu um show na sequência em que Sandra vai para a cadeia e lá vive um verdadeiro inferno. O desfecho da vilã, inclusive, foi mais pesado do que o de muitos vilões do horário nobre.

Apesar da construção equivocada do roteiro, o instante em que Mafalda conheceu o famigerado cegonho divertiu. E a última cena destacou o protagonista, que logo após ter se casado com Filó fez questão de deixar uma bonita mensagem sobre esperança e, claro, enfatizando que tudo o que acontece de ruim na vida da gente é para ‘meiorá’. Ainda finalizou dizendo Êta mundo bão!. Sérgio Guizé emocionou e foi divertido a palavra ‘fim’ aparecendo na ‘retaguarda’ de Filó, para a surpresa de Pirulito – uma clara referência ao filme Candinho, de 1954. O capítulo ainda prestou uma bonita homenagem ao saudoso Amácio Mazzaropi e o Policarpo encarnou o clássico Leão da MGM, figura emblemática nas sessões de cinema.

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Êta Mundo Bom! foi um verdadeiro fenômeno das seis, provando que Walcyr Carrasco é mesmo o rei da faixa, apesar de já ter provado ser capaz de emplacar grandes sucessos em todos os horários da Globo. É o escritor mais versátil do país, sem dúvidas. Após o imenso êxito de Verdades Secretas em 2015, o autor emplacou o maior triunfo de 2016, obtendo uma audiência impressionante. A retomada da bem-sucedida parceria com o diretor Jorge Fernando fez bem para os dois, resultando em mais um produto acertado da dupla – vide Chocolate com Pimenta, Alma Gêmea e Caras & Bocas.

O folhetim chegou ao fim cumprindo sua missão da melhor maneira possível, onde a despretensiosidade do enredo e o clima de otimismo em torno do protagonista se fizeram presentes do primeiro ao último capítulo. O mundo, infelizmente, ainda está longe de ser bom, mas a novela foi bem mais que isso. Foi ótima.

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Sérgio Santos é apaixonado por TV e está sempre de olho nos detalhes. Escreve para o TV História desde 2017 Leia todos os textos do autor