Mais que tributo ao negro brasileiro, AmarElo de Emicida é uma cobrança por reparação histórica
15/12/2020 às 12h58
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Assistindo pela TV ao show AmarElo, de Emicida – realizado em novembro de 2019 no Teatro Municipal de São Paulo -, imaginei a experiência sensorial única que foi ver aquilo tudo ao vivo. O show está no documentário AmarElo, É Tudo Pra Ontem, recém-lançado na Netflix, realização da Laboratório Fantasma com direção de Fred Ouro Preto e produção de Evandro Fióti, irmão de Emicida.
Pela TV, o espetáculo já incrível por si só, com músicas do premiado álbum AmarElo cantadas por Emicida e convidados. Contudo, o doc vai muito além do registro do evento musical, seus bastidores e bate-papos com artistas.
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Não se trata apenas de um documentário muito bem realizado, em roteiro, direção, fotografia, etc – como se isso já não fosse o bastante! Essas qualidades são apenas um detalhe diante da grandiosidade do espetáculo a que Emicida nos conduz.
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Ele, um dos maiores rappers brasileiros e uma das personalidades negras mais influentes do país, realiza um trabalho que é pura poesia audiovisual. Com seu linguajar coloquial e voz mansa, mas enfática, Emicida traça um painel histórico de cem anos da cultura negra brasileira, as lutas e movimentos por seus direitos, explicando e ensinando o que os livros de História ficaram nos devendo.
E é tudo tão didático, acessível e atraente que só não dá para dizer que Emicida explica desenhando porque as animações que cortam o filme já cumprem este papel.
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Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Oswald de Andrade, Ruth de Souza, Luís Gama, Wilson das Neves e Marielle Franco são algumas das personalidades que têm suas trajetórias, lutas e conquistas reverenciadas pelo rapper. Fernanda Montenegro participa, assim como Zeca Pagodinho, Majur, Pabllo Vittar e tantos outros.
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“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”
Este ditado iorubá abre o doc. Emicida propõe revisitar a história (jogar a pedra hoje) a fim de ocupar um lugar que foi recusado ao negro brasileiro (o pássaro morto ontem).
Por isso “ocupar” o Teatro Municipal de São Paulo tem uma simbologia muito forte: quantos negros, em cem anos, ajudaram a levantar o templo máximo das artes paulistas e quantos de fato o frequentaram? Ou, o quanto foi rejeitado ao negro que o frequentasse?
A mesma simbologia é aplicada ao espaço conquistado com a Netflix. Nenhuma produção nacional representativamente negra chegou a tanto na plataforma. Emicida pensa no alcance que seu filme pode atingir na Netflix.
AmarElo, É Tudo Pra Ontem é mais que um tributo à identidade e ao negro brasileiro, é uma cobrança por reparação histórica.
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“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”
Emicida ainda extrapola as expectativas. Ele cobra diversidade do rap – um ambiente predominantemente machista –, ressaltando que uma luta não minimiza a outra – a do negro, a da mulher, a do gay, a da trans – e propõe a união de forças e energias.
“Assim como o prisma decompõe a luz branca em muitas outras cores, eu gostaria de decompor o preconceito em muitas outras possibilidades unidas no AmarElo”, diz o rapper. Lá estão Majur e Pabllo encerrando o show em um momento catártico, apoteótico.
Há ainda a simbologia do enfrentamento social diário por representatividade e diversidade em uma sintonia – não prevista no roteiro – aplicada ao ano de 2020, que se finda (ano da pandemia): “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro“, frase da música “Sujeito de Sorte”, de Belchior.
SOBRE O AUTOR
Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira.
SOBRE A COLUNA
Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.