Pega entre atores, traição, separação e uma fofoca maldosa envolvendo um galã e uma cenoura. Poderia ser o Surubão de Noronha, mas esses bastidores picantes aconteceram décadas atrás em outra novela, que terminava há 45 anos. Guardadas as devidas proporções, os anos 1970 tiveram um caso equivalente ao burburinho dos bastidores de O Sétimo Guardião.

Exibida entre 13 de dezembro de 1976 e a 13 de junho de 1977, Duas Vidas, de Janete Clair, não é das mais lembradas da “Maga das Oito”, mas, igualmente ao que aconteceu em O Sétimo Guardião em 2019, teve bastidores movimentadíssimos que despertaram mais a atenção do público do que a própria trama.

Abaixo, cito 10 curiosidades sobre essa conturbada obra.

1 – Triângulo amoroso fora da novela

Mario Gomes

Na trama de Duas Vidas, o principal triângulo amoroso era formado por Leda Maria (Betty Faria) indecisa entre o aspirante a cantor Dino César (Mário Gomes) e o médico sisudo Victor Amadeu (Francisco Cuoco). Fora da novela, ganhou notoriedade um triângulo amoroso real, substituindo Cuoco por Daniel Filho, diretor da produção. Chegou a público o romance entre Betty, então mulher de Daniel, com Mário Gomes. Romance, aliás, iniciado antes, durante as gravações do filme O Cortiço, protagonizado por eles.

Daniel assinou a direção geral de Duas Vidas até o capítulo 40, quando passou o bastão para Gonzaga Blota e Jardel Mello. O diretor ficou tão abalado pela situação que praticamente abandonou a novela, como acabou admitindo:

“Foi abandono mesmo. Eu larguei a história e nem mais vi a novela”.

Na época, comentava-se que Daniel Filho, muito influente na alta cúpula da Globo, usaria de seu poder para boicotar a carreira de Mário Gomes. Logicamente, Mário nunca mais foi escalado pelo diretor. No entanto, o ator não ficou longe do vídeo, já que ganhou um papel de destaque em uma das próximas produções da emissora, a novela O Pulo do Gato.

2 – A cenoura

Este não foi o único “diz que diz que” envolvendo Mário Gomes durante a exibição de Duas Vidas. Até hoje permanece no imaginário popular uma fofoca maldosa, com a intenção de prejudicar o ator, envolvendo uma cenoura.

Em 1976, o produtor musical e cineasta Carlos Imperial (foto acima), para promover o seu filme O Sexo das Bonecas – adaptação da peça teatral “Greta Garbo, Quem Diria, Acabou no Irajá” -, teve a ideia de espalhar cartazes pela cidade com Mário Gomes — um dos atores do filme e da peça — travestido de mulher. O ator – que pela primeira vez em sua carreira estava em evidência, após as atuações nas novelas Gabriela (1975) e Anjo Mau (1976) – não gostou: entrou na Justiça e conseguiu o recolhimento do material de divulgação.

Para vingar-se de seu desafeto, Imperial teria “plantado” no jornal Luta Democrática a falsa notícia de que Mário Gomes havia dado entrada no hospital com uma cenoura entalada no ânus.

A nota escandalosa foi publicada na primeira página da edição do dia 24/03/1977, dando conta de que o ator procurara a Maternidade Fernão de Magalhães, em São Cristóvão (RJ), com uma cenoura “em um local absolutamente invisível”.

3 – A tragédia urbana

Com Duas Vidas, a autora Janete Clair (foto acima) tentou dar prosseguimento à proposta de incorporar mais realidade à sua obra – o que foi chamado de tragédia urbana -, iniciada no ano anterior com Pecado Capital. Janete vinha sendo muito criticada pelo seu melodrama rasgado. Esta era uma forma de se aproximar do estilo do marido, Dias Gomes, que fazia sucesso com novelas carregadas de crítica social.

Em Pecado Capital: a discussão acerca da ética por meio do personagem Carlão (Francisco Cuoco), indeciso em entregar ou não uma mala cheia de dinheiro esquecida em seu táxi. Em Duas Vidas: a crítica às obras do metrô carioca, que acabaram por separar as vidas dos personagens. Uma lástima que a autora não tenha conseguido levar adiante sua proposta, nem nesta, nem nas novelas seguintes.

Em O Astro (1978), o diretor Daniel Filho pediu uma trama bem folhetinesca; e Pai Herói (1979) foi uma novela tapa-buraco baseada em uma antiga radionovela. Na década de 1980, Janete voltou definitivamente ao estilo romântico que a consagrara.

4 – A censura

Por ser a principal novelista do principal horário da Globo na década de 1970 (o das oito da noite, de maior audiência e faturamento), Janete Clair era a mais visada pela censura do Regime Militar. Novelas como O Homem que Deve Morrer (1971-1972) e Fogo Sobre Terra (1974) já haviam sido mutiladas pela interferência dos censores de Brasília. Duas Vidas foi outra obra muito prejudicada.

Não era para menos: Janete criticava o metrô carioca, uma obra do Governo Federal. O vilão da novela era o metrô! A censura também implicou com o namoro entre a quarentona Sônia (Isabel Ribeiro) e o rapagão Maurício (Stepan Nercessian), por ela ser bem mais velha que ele – apesar de os dois serem solteiros e desimpedidos. O diagnóstico de Brasília foi implacável: além de subversiva, Duas Vidas atentava contra a moral e os bons costumes. Janete se queixou em uma carta à Divisão de Censura e Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal:

“Quem lhe escreve é uma escritora perplexa e desorientada em face dos cortes que vêm sendo feitos pela Censura Federal nos últimos capítulos da novela Duas Vidas. Perplexa e desorientada não apenas pela drástica mutilação da obra que venho realizando, como também diante do incompreensível critério que orienta a ação dos censores. De fato não posso entender que conceitos morais ou de qualquer natureza possam determinar a proibição de um romance de amor entre um jovem e uma mulher madura, ambos solteiros. (…) Não posso entender igualmente o porquê da proibição de outra cena em que o dono de uma casa de móveis reclama contra a poeira produzida pelas obras do metrô, que lhe emporcalha os móveis e afugenta a freguesia, quando todos nós sabemos dos transtornos ocasionados por essa obra pública (…)”.

5 – Realidade x ficção

Duas Vidas

A fusão de fantasia e realidade não limitou-se apenas à alusão ao problema causado pelas obras do metrô. O personagem-cantor (Dino César) passou a ser cantor também na vida real: o ator Mário Gomes gravou um disco e uma das músicas – “Chiclete e Cabochard” – entrou para a trilha da novela. Muito antes de Cheias de Charme e Rock Story, a ficção já mostrava a luta de um cantor em ascender profissionalmente.

Na trama, Dino se envolve com Cláudia (Susana Vieira), herdeira de uma gravadora. Ela, uma mulher de personalidade forte, lança o rapaz no mercado fonográfico, e, quando a relação acaba, destrói sua carreira.

Em substituição a Dino César, a gravadora de Cláudia lança um novo cantor: Ricardo – aqui, um cantor de verdade que estava sendo lançado na ocasião da novela. Novamente a ficção e realidade se mesclavam.

A música de trabalho de Ricardo, “Eu Gosto de Você”, cantada por ele em Duas Vidas, não constava na trilha oficial da novela, mas acabou entrando para a trilha sonora de uma das próximas produções da Globo, Dona XepaRicardo chegou a fazer sucesso na época e a aparecer em vários programas de televisão. Porém, já na entrada dos anos 1980, caiu no ostracismo.

6 – O título

“Duas Vidas é principalmente a história de muitas vidas, sentimental e geograficamente entrelaçadas, que, de maneira brusca, são dispersadas”, definiu a autora.

A abertura, que mostrava mãos de uma criança e de uma mulher em uma brincadeira de cama-de-gato, sugeria que as duas vidas do título fossem uma referência à relação da protagonista Leda Maria (Betty Faria) com seu filho pequeno, Téo (Carlos Poyart).

O título também pode representar uma simbologia para a mudança de vida de Leda quando ela fica viúva e tem que criar sozinha o filho pequeno. E, em uma análise mais minuciosa sobre a obra, o título pode fazer referência à vida dos moradores do bairro carioca do Catete, antes e depois das obras do metrô, que os fez dispersarem-se.

7 – Modismos

Dino César (Mário Gomes) se apresentava com um pequeno adereço que virou moda nacional: um colar de contas brancas, justo ao pescoço.

Também virou mania entre os telespectadores a brincadeira de “cama de gato”, apresentada na abertura da novela, em que figuras geométricas são feitas com um barbante entrelaçado entre os dedos de dois pares de mãos. Eu era criança na época e lembro da meninada tentando fazer cama de gato na escola!

8 – A trilha sonora

O LP nacional de Duas Vidas emulava a trilha de Pecado Capital, com sambas, sambas-canção e músicas românticas de forte apelo popular. Os maiores sucessos foram “Paralelas”, canção de Belchior gravada por Vanusa, e “As Rosas Não Falam”, de Cartola, em uma gravação de Beth Carvalho. Também fizeram sucesso “Vá Mas Volte” (Ângela Maria), “Sorte Tem Quem Acredita Nela” (Fernando Mendes), “Menina de Cabelos Longos” (Agepê), “Olhos nos Olhos” (Agnaldo Timóteo), e “Deixa”, de Baaden Powell e Vinícius de Moraes, que ganhou um arranjo especial do quinteto vocal feminino Bandits of Love (futuro Harmony Cats) para a abertura da novela: “deeeixa, deeeixa, deeeeeeeeeeeeeeeei-xaaaaaa!”.

O disco internacional trouxe alguns hits clássicos do pop mundial: “I Never Cry” (Alice Cooper), “Tonight´s the Night” (Rod Stewart), “Golden Years” (David Bowie) e “Lost Without Your Love” (Bread). Fez sucesso na época a música instrumental “Eté D´Amour” (com Jean-Piérre Posit) por ter embalado o romance entre Sônia e Maurício. Também as “discos” “Let´s Be Young Tonight” (Jermanie Jackson), “One Love in My Lifetime” (Diana Ross) e “Phoenix” (Norman Connors). O megahit “Nice N´Slow”, sucesso mundial com Jesse Green, aqui ganhou uma versão genérica brasileira, com um tal de John Blackinsell. Também as babas românticas gravadas em inglês por brasileiros: “My Dear” (Manchester), “You´re So Tender” (Chrystian, da dupla Chrystian e Ralf) e ”I Need You Now” (Dennis Gordon).

9 – Estreia

Duas Vidas foi a primeira novela da atriz Christiane Torloni – filha de outra atriz da Globo, Monah Delacy. Na novela, Christiane era Juliana, irmã do protagonista Victor Amadeu (Francisco Cuoco).

A atriz chamou a atenção e ganhou, na sequência, dois personagens de destaque: Lívia em Sem Lenço Sem Documento (novela das sete), e Gina, sua primeira protagonista, na novela Gina (do horário das seis).

10 – Reprise compactada

Entre 1981 e 1982, época de entressafra entre as séries brasileiras e as minisséries, a Globo reprisou, no horário das dez da noite, algumas novelas em forma compactada. Duas Vidas foi reapresentada em apenas 20 capítulos, exibidos entre 5 e 30 de janeiro de 1981.

Quer saber mais sobre Duas VidasAQUI tem a trama, com o elenco completo, personagens, núcleos, trilha sonora e mais curiosidades.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor