Assim o dramaturgo Jorge Andrade definiu sua novela O Grito quando ela estreou, em 27 de outubro de 1975: “O paraíso de se viver em São Paulo. O retrato dessa realidade. A vida nas suas vinte e quatro horas de correria, poluição, gente se esbarrando e nem sentindo, solidão, superpopulação e potencialidades, marginalidades e neurose”.

Infelizmente, a proposta não foi bem aceita, nem pelo público, nem pela crítica. Mesmo com um argumento promissor, ancorado em um elenco de peso, e o sucesso da estreia como novelista com Os Ossos do Barão (1973-1974), Jorge de Andrade não obteve êxito com O Grito, que terminou em 30 de abril de 1976, e conquistou fama de incompreendido no meio televisivo.


Jorge de Andrade e o elenco da novela (foto: Cedoc/TV Globo)

As chamadas de estreia anunciavam: “O Grito! Quando a sua intimidade está ameaçada!”. A história propunha fazer um retrato da vida em São Paulo, já uma megalópole caótica em 1975, a partir do convívio entre os moradores do Edifício Paraíso (atente para o nome!), levantado no centro da cidade por uma família quatrocentona, mas que se desvalorizou com a construção do Minhocão – o então Elevado Presidente Costa e Silva, hoje rebatizado de Elevado Presidente João Goulart.

Todas as classes sociais estavam representadas no edifício, o que gerava os conflitos. Os mais pobres (muitos, empregados de seus vizinhos ricos) eram moradores dos andares mais baixos, que davam de frente para o elevado. Quanto mais se subia no prédio, maior o valor do imóvel e a classe social do morador. Os donos do edifício, aristocratas soberbos, moravam na cobertura.

A trama se iniciava com o impasse entre os moradores em expulsar ou não uma nova condômina, a ex-freira Marta (Glória Menezes), mãe de um menino com problemas mentais que gritava durante a noite, o que incomodava os vizinhos. Daí o título da novela.


Glória Menezes e Yoná Magalhães (foto: Cedoc/TV Globo)

O Grito provocou as mais diversas reações. No Rio de Janeiro, aparentemente influenciados pela novela, moradores de um edifício em Ipanema tentaram expulsar uma criança excepcional.

Em São Paulo, a história causou indignação, porque julgou-se que o objetivo do autor era criticar a capital paulista. Jorge Andrade rebateu, argumentando que sua intenção foi mostrá-la como é na realidade: “dura, fechada, fria”. O protesto chegou no Congresso, onde o então deputado federal Aurélio Campos fez um pronunciamento contra o que ele qualificava de “distorção da imagem de São Paulo”.

Apesar de toda a problemática envolvendo a novela, O Grito hoje é reconhecida pela ousadia de Jorge Andrade, um dramaturgo cultuado no meio artístico e acadêmico. Já há algum tempo ventila-se a ideia de fazer um remake, principalmente nesta última década, quando começou-se a discutir em São Paulo o destino do Minhocão. Eu, particularmente, acho uma excelente ideia, desde que reduzida a pelo menos a metade. Originalmente O Grito ficou seis meses no ar, de 27 de outubro de 1975 a 30 de abril de 1976, totalizando 125 capítulos.


Walmor Chagas e Elizabeth Savala (foto: Cedoc/TV Globo)

Sem ser informado sobre a unidade de tempo da história, o telespectador foi surpreendido no final ao descobrir que a trama toda se passou em uma única semana. O autor teve o cuidado de não deixar o público perceber esse detalhe durante os seis meses de exibição.

O recurso temporal foi explicado em um diálogo no roteiro do último capítulo: “Estava me lembrando… Já pensou quanta coisa aconteceu nesta semana! Foi sexta-feira passada, exatamente há uma semana, que o síndico participou o roubo do interceptador. E quantas coisas não aconteceram em apenas seis dias!”.

Como exemplo dessa compactação de tempo, toma-se o episódio do sequestro da adolescente Estela (Lídia Brondi). O sequestro dura dois dias na trama, mas estendeu-se por quinze capítulos em três semanas na exibição. (“O Grito de Jorge Andrade: a experiência de um autor na telenovela brasileira dos anos 1970”, Sabina Reggiani Anzuategui)


Lídia Brondi, João Paulo Adour e Françoise Forton (foto: Cedoc/TV Globo)

Além de Marta e seu filho doente, outros dois personagens chamaram a atenção: Agenor (Rubens de Falco), homossexual reprimido que morava com os pais conservadores e se travestia à noite escondido de todos; e Kátia (Yoná Magalhães), sobrevivente do incêndio real que destruiu o edifício Joelma, no centro de São Paulo, em fevereiro de 1974. Apesar do trauma, Kátia protagonizou uma cena polêmica: fez um striptease na sacada de seu apartamento, causando um engarrafamento no Minhocão.

O diretor Walter Avancini implantou a novela e dirigiu o início, passando depois o comando a Gonzaga Blota e Roberto Talma, que estreava em direção na Globo. Talma declarou em entrevista ao Projeto Memória Globo sobre as dificuldades com O Grito e sua ambientação claustrofóbica: “O processo dela era absolutamente existencialista. […] Ela tinha uma metodologia de repetição de texto, que era uma coisa bonita do Jorge Andrade, mas leva-se um tempo pra perceber isso. […] Eu tinha dificuldade em algumas coisas, ficava às vezes perdido, tinha que estudar muito pra sair daquela ostra. […] era uma novela absolutamente hermética, muito fechada. Ausente de grandes voos com relação ao que nós fazemos hoje […] o respiro que a gente normalmente faz”.

AQUI tem tudo sobre O Grito: a trama, os personagens e seus núcleos, o elenco, trilha sonora e mais curiosidades de bastidores.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor