Nunca tive contato com nenhuma espécie de curandeiro espiritual, mas, desde criança, histórias sobre Zé Arigó e Dr. Fritz me assombravam. Os fatos mostrados na série documental Em Nome de Deus – recente lançamento do Globoplay em parceria com o Canal Brasil – são igualmente assombrosos, pela crueza e pelas proporções que tomam. O programa acompanha a trajetória do médium João de Deus, famoso pelas curas espirituais, até sua prisão por abusos sexuais e a desmoralização pública. Eu pouco havia ouvido falar sobre ele antes da prisão. E nunca conheci alguém que o tivesse consultado.


João de Deus (reprodução)

O fato gerador foram as primeiras denúncias feitas, no final de 2018, no programa Conversa com Bial, por mulheres que relataram terem sido abusadas sexualmente por João Teixeira de Faria, o João de Deus, durante sessões de tratamento espiritual. A grande repercussão do programa foi o estopim para que várias outras denúncias viessem à tona, o que causou enorme perplexidade, já que o denunciado era uma figura pública idolatrada por inúmeros seguidores no Brasil e no exterior, inclusive por muita gente famosa que o tinha como amigo.

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Ao longo de seis episódios, Em Nome de Deus revela, muito além das primeiras denúncias, a rede de crimes nos quais João de Deus estava envolvido. Respeitando o formato documentário, a série é apresentada por Pedro Bial e pela roteirista Camila Appel por meio de entrevistas, como se eles próprios contassem a investigação para outra pessoa. O protagonista, claro, é João de Deus. Porém, são os relatos emocionantes e emocionados de sete mulheres vítimas que conduzem a narrativa.

O resultado da investigação do programa desvenda entrechos não só assombrosos, mas também angustiantes, ultrajantes e repugnantes. Cada episódio revela uma nova faceta monstruosa de João de Deus, varrida para baixo de um tapete de adoração coletiva e supostos milagres. A série acompanha os 18 meses de investigação, no Brasil e no exterior, exponenciando a cada episódio a vida paralela do médium e a ampla rede de proteção que o cercava das denúncias onde quer fosse – muito além da cidadezinha goiana de Abadiânia, onde fica sua sede e quartel general.


Conversa entre as vítimas (reprodução)

A condução da narrativa é instigante. Confesso que fiquei chocado com o gancho (ao final) do primeiro episódio. Não imaginava o que estaria por vir. Entre os vários depoimentos, o de Xuxa Meneghel é bastante contundente. O que mais intriga é o tempo que João de Deus permaneceu impune, o que mostra a forte influência que exercia, inclusive sobre o poder público. À primeira vista, pode parecer inacreditável que as vítimas não tivessem força para denunciar ou que as denúncias feitas tivessem sido, por tanto tempo, tão eficientemente abafadas.

Muito mais do que abordar o fascínio que os mitos exercem sobre as massas, a série é sobre o quanto as mulheres ainda são desacreditadas por causa do gênero. Em Nome de Deus é, acima de tudo, um documentário sobre o alcance que a união feminina pode reverberar. Pedro Bial complementa: “Em Nome de Deus é a história de mulheres e de sua coragem de reagir. Mais do que resistir, de agir, a partir do sofrimento, da humilhação e do massacre que sofreram. É um documentário sobre a voz das mulheres“.


Camila Appel | Pedro Bial (reprodução)

O ponto alto do programa é a reunião de sete vítimas em uma roda de conversa, mulheres de diferentes idades e regiões que mostram seus rostos pela primeira vez: uma advogada, uma atriz, uma fisioterapeuta, uma professora, uma costureira, uma dona de casa e a coreógrafa holandesa Zahira Mous (que havia participado do Conversa com Bial). Elas ouvem a história de cada uma, todas com pontos em comum: a crença na busca por um milagre do médium, o padrão nos abusos, a vulnerabilidade, o sentimento de indignação, medo e vergonha, e o desejo de justiça.

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Ficamos mais de oito horas ali, em dois dias diferentes. Foi uma experiência emocionante e, apesar do nível de terror de tudo aquilo, uma experiência muito mais bonita do que triste. De esperança“, contou a roteirista Camila Appel, que conduziu a conversa.

Imperdível, muito mais por ser resultado de uma investigação jornalística de grande relevância. Com 6 episódios, Em Nome de Deus estreou no Globoplay em 23/06 e, no dia seguinte, no Canal Brasil. Argumento e criação de Pedro Bial, roteiro de Camila Appel e Ricardo Calil, direção de conteúdo de Fellipe Awi e direção de Monica Almeida, Gian Carlo Bellotti e Ricardo Calil.

SOBRE O AUTOR
Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira.

SOBRE A COLUNA
Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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