Nilson Xavier

Lícia Manzo escreveu uma novela antifolhetim. Uma antinovela. Claro que o público não gostou.

A Globo concluiu, nessa sexta-feira (25), a exibição de Um Lugar ao Sol, novela de estreia de Lícia Manzo no horário mais nobre da emissora. Apesar de sempre ter figurado entre as atrações mais vistas na TV aberta, a obra amarga um título nada agradável: a pior audiência da história na faixa – média de 22 pontos no Ibope da Grande São Paulo.

Andrea Beltrão

Todos buscam uma explicação, afinal são inegáveis as qualidades da novela, da direção ao elenco bem escalado. Principalmente o texto da autora, reconhecido como um dos melhores de nossa TV, com diálogos ricos que levam à reflexão, tramas repletas de dilemas humanos, personagens de várias camadas e discussões de interesse da sociedade.

Relaciono 7 fatores que ajudam a explicar a rejeição do público e, por fim, as qualidades da novela.

Excesso de drama

Um Lugar ao Sol

O primeiro fator é a ressaca do período de pandemia. Talvez Um Lugar ao Sol fosse a novela certa no momento errado.

Sua trama densa, com personagens sofredores e convites à reflexão não correspondia à expectativa do público por escapismo. Muitos aderiram, mas a maioria ainda queria a fantasia exacerbada em vez da realidade pouco atraente nesses tempos difíceis.

Por mais que a história central partisse da manjada trama da troca de gêmeos, a autora logo diluiu o folhetim em discussões sobre injustiças sociais somadas a alcoolismo, depressão, violência doméstica, racismo, etarismo, homofobia, gordofobia, relacionamentos tóxicos, doenças etc.

Talvez ainda não fosse o momento para tanto.

Tapa-buraco

Muito se falou sobre a negligência da Globo na divulgação de sua novela. Verdade! A emissora sempre tratou-a como um tapa-buraco para o “grande lançamento” de 2022, o remake de Pantanal.

Tanto que, mesmo antes da estreia de Um Lugar ao Sol, Pantanal já recebia os holofotes em grande estilo, muito mais que a novela de Lícia Manzo. Pareceu filho enjeitado.

Contudo, novela é hábito. Se fosse para o público se afeiçoar a Um Lugar ao Sol, isso teria acontecido em algum momento, independentemente da divulgação. Não aconteceu.

Falta da opinião popular

Um Lugar ao Sol

A novela foi ao ar já totalmente escrita, o que a levou à contramão de um dos pilares do folhetim: a aferição do público.

Se no século 19, José de Alencar já consultava seus leitores para saber se aprovavam suas histórias parceladas publicadas em rodapés de jornais (os folhetins), quem dirá nos séculos seguintes, em que os grupos de discussão tornaram-se necessários, às vezes imprescindíveis.

Por outro lado, Lícia Manzo conseguiu manter-se fiel à originalidade de sua obra – o sonho de todo roteirista.

Fica a pergunta: o que a autora teria mudado se pudesse ouvir a audiência? Teria feito concessões a casais “shippáveis“? Teria adicionado mais humor? Teria mudado rumos de personagens contrariando sua ideia inicial?

Falta de humor

A autora é famosa por tramas e personagens densos com pouco (ou nenhum) alívio cômico, características de suas novelas anteriores, A Vida da Gente (2011-2012) e Sete Vidas (2015). Já afirmei em texto anterior que não sinto falta de núcleos de humor quando a proposta da novela é o drama. Nesta, eu senti.

Sabemos que alívio cômico não precisa ser torta na cara ou humor infantilóide, mas Lícia subverteu outra regra do folhetim: o humor entremeado do drama, como ensinava Janete Clair.

Um Lugar ao Sol entregou meses de sessões de terapia e discussões dramáticas em que nem mesmo bonitas frases de efeito e personagens leves e sutis foram capazes de aplacar o peso das abordagens.

A novela até tinha um núcleo que cumpria bem essa função: o casal de trambiqueiros Elenice e Alípio (Ana Beatriz Nogueira e Ísio Ghelman). Porém, não estava nos planos da autora levar Alípio até o final da novela. Um erro. Quem sabe, se pudesse ouvir o público, Lícia teria mantido o personagem.

Reedição maluca

Um Lugar ao Sol

Um Lugar ao Sol estava quase na metade de sua exibição quando desceu uma ordem da alta direção: a novela precisaria ficar mais uma semana no ar, para atender às gravações atrasadas de Pantanal.

Quando a obra é “aberta”, ou seja, é escrita à medida em que é exibida, o impacto não é grande. Porém, a trama de Lícia Manzo já estava fechada, com capítulos editados.

Por duas ou três semanas, o que se viu foram a reedição de cenas e cortes malucos com o objetivo de fazer a novela render mais.

Isso prejudicou outro princípio do folhetim: o “gancho“, o clímax ao final do capítulo que dá continuidade à trama no dia seguinte, pelo qual é despertada no público a curiosidade em continuar a acompanhar a história. Sem o gancho, não há fidelidade da audiência.

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Falta de apelo popular

Um Lugar ao Sol

Outra característica da autora: suas tramas e personagens não têm apelo, “pegada” popular.

Até surpreendeu o fato de Lícia apresentar um ponto de partida tão folhetinesco: gêmeos que trocam de lugar, um clássico do folhetim. Porém, o que prevaleceu foi o sofrimento ético e moral do protagonista em arcar com seus atos. O folhetim serviu apenas para impulsionar a reflexão que a autora propunha.

Há uma máxima em televisão que afirma que “pobre gosta de ver rico na TV“. Gilberto Braga e Manoel Carlos foram os que melhores a absorveram. A questão é que Gilberto e Maneco eram populares, com personagens cativantes e tramas folhetinescas e dinâmicas.

Na comparação, Lícia perde muito. Apesar do texto profundo, a autora escorrega no pedantismo aqui e ali, pondo na boca de personagens elitizados expressões nada usuais ou desconhecidas do grande público. Soa pernóstico e cria uma má vontade da audiência com a novela.

A autora não está falando apenas a uma elite, mas ao povão. Outra regra do folhetim: a novela precisa ser popular – de preferência, sem abrir mão de um texto de qualidade, o que Lícia já tem.

Soma-se a isso um protagonista nada carismático, vivido por um Cauã Reymond sisudo, sempre cabisbaixo, passivo demais ante seus inimigos. Com a transformação do protagonista em vilão, definitivamente não havia como torcer por ele, a não ser esperar por sua punição.

Lícia foi mais uma vez contra o folhetim no último capítulo, quando negou ao público a catarse sobre a revelação de que Renato é Christian.

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Trama que dá voltas

Um Lugar ao Sol

Quem acompanhou Um Lugar ao Sol religiosamente, desde o início, percebeu uma grande perda de qualidade na trama de sua metade em diante.

No início, a novela era dinâmica, com várias frentes se revezando: os dramas de Rebeca em sua relação com o namorado, a filha e o marido; as artimanhas de Renato com a família Assunção; Bárbara e o caso do roubo da autoria do conto; as reflexões de Noca; as armações de Elenice e Alípio; etc.

De repente, após o período da edição bagunçada (janeiro para fevereiro), a história entrou em um looping intragável. As tramas começaram a rodar, as cenas foram se repetindo e a paciência de quem assistia se exaurindo.

Até Rebeca, que considerei “a protagonista moral da novela“, parou de olhar para a câmera (quebra da quarta parede) e seu drama começou a cansar.

O ápice aconteceu na penúltima semana, em que a autora repetiu a trama de Joy matando Stephany, personagem com a qual discutia-se a violência doméstica, e surpreendeu negativamente em capítulos do mais puro sofrimento, com personagens descobrindo doenças graves.

A autora pesou a mão tornando sombria uma novela que se chama Um Lugar ao Sol.

Restou a sensação de que a obra de Lícia Manzo não rendia uma novela. Talvez, enxugando personagens dispensáveis, uma novela curta, de 50 capítulos, para o Globoplay ou para um horário mais tardio. Ou uma série dramática, em que o alívio cômico pode ser dispensado.

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As qualidades

A tradicional faixa das 9 da noite da Globo está sedimentada em alicerces que precisam ser respeitados. A novela de Lícia atropelou tantas bases do folhetim que pôs o público para correr. Esses problemas e percalços, contudo, não desmerecem ou invalidam as qualidades da obra.

Outra característica do folhetim – e que Lícia Manzo usa muito bem a seu favor – é a capacidade de emocionar o público. Foram inúmeros personagens, cenas e diálogos que não só emocionaram, como também fizeram refletir, que esclareceram ou ajudaram a compreender, que divulgaram ou alertaram sobre temas importantes.

A sequência do antepenúltimo capítulo em que Rebeca dá uma entrevista discursando sobre o preconceito com pessoas mais velhas (etarismo) é uma das melhores já mostradas na televisão.

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A pluralidade do ser humano

Um Lugar ao Sol

A maior qualidade da autora – já vista em seus trabalhos anteriores – esteve presente durante toda a novela: a representação da pluralidade do ser humano. Um Lugar ao Sol trouxe os dilemas éticos e morais que todos enfrentam, às vezes sem perceber, nos quais todos se refletem e se reconhecem.

Também a complexidade das relações, dos interesses e dos desejos versus as demandas sociais; a capacidade de despertar a empatia, de desenvolver o olhar sobre o outro; e a disposição em aderir às concessões que a vida impõe, vistos em personagens como Christian, Renato, Lara, Ravi, Bárbara, Rebeca, Noca, Nicole, Elenice, Joy, Ilana, Breno, Júlia, Cecília, Stephany e outros.

No mais, aplausos para todo o elenco, com destaque para as interpretações de Andrea Beltrão, Alinne Moraes, Marieta Severo, Andreia Horta, Juan Paiva, Ana Beatriz Nogueira, Lara Tremouroux, Denise Fraga, Mariana Lima, Marco Ricca, Ana Baird, José de Abreu, Fernanda de Freitas e Renata Gaspar, entre outros.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor